Terreiro de jarê retira assentamento de mais de 30 anos após ameaças de agentes do ICMBio
Ação de servidores da autarquia federal destruiu templo religioso no último final de semana
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Maysa Polcri
maysa.polcri@redebahia.com.br
Era para ser um dia de festa no coração da Chapada Diamantina, mas uma ação inesperada mudou os rumos do culto aos encantados. Cerca de 50 pessoas se preparavam para “bater jarê”, como a prática de saudar os caboclos e orixás é conhecida, quando agentes do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) realizaram uma inspeção no terreiro de Pai Gil de Ogum. A ação, até então inédita, violou o sagrado: um assentamento de mais de 30 anos foi retirado do templo após ameaças de multa. O caso ocorreu na manhã do último sábado (20).
No mesmo final de semana em que fiscalizaram o terreiro de Pai Gil, agentes do ICMBio demoliram parte do terreiro Peji da Pedra Branca, em Lençóis. Os templos ficam dentro do Parque Nacional da Chapada Diamantina, na parte norte, e são de tradição jarê, que mescla elementos do candomblé, cristianismo e indígenas. A religião é exclusiva da Chapada e ganhou projeção nacional com o romance Torto Arado, publicado em 2019, pelo autor baiano Itamar Vieira Júnior.
Os relatos de quem estava no terreiro de Pai Gil no momento da operação dão dimensão do ocorrido. O grupo do ICMBio era composto por dez servidores, pelo menos. Alguns deles estavam encapuzados e carregavam armas brancas, como facão e machado. Com o pretexto de que fiscalizavam denúncias de desmatamento ilegal e ocupação irregular, foram autorizados, pelas lideranças do templo, a entrar no local.
“Eles pediram para dar uma olhada, explicaram que estavam trabalhando e que precisavam realizar a abordagem. Sem ser muito invasivos, eles entraram no quarto onde o pessoal fica de resguardo e perguntaram se era um dormitório. Foram até a casa principal e começaram a chamar atenção para algumas irregularidades, na visão deles, que poderiam gerar multas”, contou Layra Silva, filha da casa há 13 anos.
Um assentamento de mais de três décadas, que fazia parte da história do terreiro, foi a irregularidade apontada pelos agentes da autarquia federal. Com medo das ameaças de multa, os filhos da casa e lideranças decidiram despachar o sagrado. “O assentamento tinha 33 anos e foi um dos primeiros que o meu pai de santo fez. Eles disseram que, diante do que tinha, era crime, e que nós poderíamos ser multados. Tivemos que tirar esse fundamento da casa, infelizmente”, explicou Layra Silva.
O pai de santo o qual Layra se refere é Gildasio de Oliveira, o Pai Gil de Ogum, que morreu em 2021, aos 58 anos. Naquele ano, o CORREIO fez uma reportagem especial sobre o futuro do jarê, na Chapada Diamantina, após a morte de um de seus maiores líderes. Os religiosos não revelam quais objetos faziam parte do assentamento - é um segredo da casa.
Para as religiões de matriz africana, os assentamentos concentram a força espiritual de uma divindade. Os objetos simbólicos utilizados variam a depender da casa e do encantado que será saudado. Materiais de porcelana e barro, alimentos e animais estão entre os itens mais comuns.
“Foi doloroso ter que tirar o assentamento. É uma ação que pode prejudicar o terreiro, porque nosso pai de santo não está mais aqui para executar o fundamento da casa. O assentamento é o coração do terreiro”, lamentou a filha de Pai Gil de Ogum. Essa não foi a única ação que causou revolta entre os praticantes do jarê no Parque Nacional da Chapada, no último final de semana.
Se no terreiro de Pai Gil de Ogum os servidores do ICMBio encontraram a casa cheia, ao chegarem ao terreiro Peji da Pedra Branca, a situação foi diferente. Uma caminhada de 30 minutos separa os dois templos religiosos, mas, o segundo imóvel teve um destino trágico. O Pedra Branca estava vazio e não houve quem impedisse a demolição de quase sua totalidade. O caso é investigado pela Polícia Civil.
Em nota, o ICMBio disse que a operação de fiscalização dentro do Parque Nacional da Chapada Diamantina teve objetivo de apurar denúncias de desmatamentos e ocupações irregulares. O órgão afirma que 16 imóveis em construção ou construídos a partir de 2020 foram identificados na região do Curupaiti.
“Os imóveis de moradores antigos foram mantidos, assim como os imóveis recém-construídos que contavam com a presença de ocupantes, sendo que esses receberam apenas autuação. As construções não ocupadas e sem autorização foram demolidas, conforme prevê a legislação ambiental”, pontuou.
Um dos imóveis foi o terreiro Peji da Pedra Branca. O ICMBio afirmou que “os fiscais iniciaram a demolição porque não identificaram, do lado externo, sinais de que era um imóvel com fins religiosos”. “Assim que os objetos de caráter religioso foram identificados no imóvel, a operação foi imediatamente interrompida”, concluiu o órgão. Para o presidente da Associação Brasileira de Preservação da Cultura Afro-Ameríndia (AFA), Leonel Monteiro, a ação teve cunho racista.
Apenas uma parede da casa, que contém imagens religiosas, ficou de pé após a ação. O ICMBio lamentou os danos causados e deu início a uma apuração interna para analisar os fatos. Três caminhões e armas de caça foram apreendidos na ação, segundo o órgão, que também determinou o fechamento de duas serrarias e quatro sítios rurais. Os equipamentos estariam envolvidos com a extração ilegal de madeira.
Em nota, o Ministério Público do Estado da Bahia (MP-BA) informou que "instaurou procedimento para cobrar do Poder Público a adoção de medidas eficazes voltadas ao reconhecimento formal da prática de Jarê enquanto patrimônio cultural e a implementação de um plano de salvaguarda no município". O procedimento foi instaurado pela Promotoria Regional Ambiental do Alto Paraguaçu, em colaboração com o Centro de Apoio Operacional de Defesa do Meio Ambiente (Ceama) e do Núcleo de Defesa do Patrimônio Histórico, Artístico e Cultural (Nudephac).
Operação inédita
A ação dos agentes da autarquia vinculada ao Governo Federal surpreendeu os religiosos e a prefeitura de Lençóis, que não sabiam que a fiscalização seria feita. A gestão municipal solicitou esclareciementos ao ICMBio, além da realização de uma audiência pública, segundo Uilami Dejan, diretor de Promoção da Igualdade Racial do município.
O Parque Nacional possui 152 mil hectares - o equivalente a mais de 140,7 mil campos de futebol. São mais de 38 trilhas de entrada que podem ser acessadas por seis municípios: Andaraí, Ibicoara, Itaetê, Lençóis, Mucugê e Palmeiras. Além das belezas naturais que atraem visitantes de todo o país, o parque abriga, ao menos, três terreiros de jarê.
É o que estima Sandoval Amorim, presidente da Associação dos Filhos de Santo do Palácio de Ogum e Caboclo Sete Serra. Ele é líder do terreiro homônimo, fundado em 1949, pelo seu pai, Pedro de Laura, uma das figuras mais importantes do jarê. O terreiro Palácio de Ogum também fica dentro do Parque Nacional. Segundo Sandoval, não há registros de ações como as que ocorreram no final de semana.
“Foi a primeira vez que fizeram uma ação como essa aqui. Chama atenção que o parque foi criado em 1985, muitos anos depois da função dos terreiros que existem aqui. Não tem justificativa nenhuma para esse tipo de ato, sem diálogo com a população”, disse Sandoval Amorim. O Palácio de Ogum foi fundado pelo seu pai em 1949, 36 anos antes da criação do equipamento de proteção ambiental. Já Mestre Damaré, líder do terreiro que foi destruído, afirmou que a terra pertence a sua família há mais de 40 anos.
O Parque Nacional foi criado a partir de um decreto do presidente José Sarney, em 1985. Entre os objetivos da criação do equipamento estão a “preservação de recursos naturais e de estruturas de interesse histórico-cultural existentes na área”. O documento não faz menção aos terreiros que precedem a criação do parque.