‘Ainda tem setores intensivos em carbono’, afirma especialista

Rafael Valverde  fala sobre importância das fontes renováveis para a descarbonização

  • Foto do(a) author(a) Donaldson Gomes
  • Donaldson Gomes

Publicado em 22 de julho de 2024 às 05:00

Rafael Valverde, diretor executivo da Sowitec Brasil Crédito: Arquivo Correio

Mesmo com uma matriz energética intensiva em energia renovável, o Brasil ainda precisa fazer muito para contribuir efetivamente com o processo de transição energética, que é fundamental para resolver um outro problema, o das mudanças climáticas. Para Rafael Valverde, especialista em energia, mesmo com uma média boa, o Brasil ainda possui setores econômicos altamente dependentes da queima de carbono. Recém contratado para liderar a operação brasileira da Sowitec, uma gigante alemã que atua no Brasil desde os anos 2000 no desenvolvimento de projetos em energias renováveis, Valverde reconhece que é inviável pensar num futuro sem emissões de carbono, mas defende que o uso deve ser racionalizado e apenas onde ele não puder ser substituído. O engenheiro eletricista baiano acredita que o país ainda pode evoluir muito no desenvolvimento de energias renováveis, mas destaca o processo de amadurecimento da indústria nos últimos 20 anos no país, tanto por parte dos desenvolvedores, quanto da regulação. “Já se sabe o que demanda maior zelo”, diz.

Quem é

Rafael Valverde é baiano, formado em Engenharia Elétrica e mestre em regulação energética. Atualmente, é integrante também do Conselho de Administração da Abeeólica – Associação Brasileira de Energia Eólica e das Novas Tecnologias e do Conselho de Infraestrutura da Fieb – Federação das Indústrias do Estado da Bahia. Tem passagem pela academia, governos e empresas de energia, além consultorias, vindo da Eolus, companhia que fundou há pouco mais de 10 anos.

O Brasil possui uma condição confortável na produção de energia renovável. Isso significa que o país já está pronto para enfrentar o desafio da transição energética?

Este é um ótimo ponto para a gente começar, mas a resposta é não. Se o Brasil estivesse pronto, a gente não teria setores da nossa economia tão intensivos em carbono. Há uma necessidade de descarbonizar da nossa economia e parte deste processo passa, invariavelmente, pelo setor energético. Seja por conta do consumo de energia elétrica em si, ou pelo consumo de combustíveis. A migração para uma base sustentável, tanto de eletricidade, onde, sim, o Brasil já tem um grande apelo por todo o seu histórico com a geração hidrelétrica, a expansão eólica e solar nos últimos anos, sem esquecer também da biomassa e pequenas centrais hidrelétricas e os biocombustíveis. A gente tem também uma nova vedete, que nem é tão nova, que é o hidrogênio verde, de baixo carbono, e que vai mudar toda a nossa forma de pensar os processos industriais, reforçando ainda mais a importância da renovabilidade da nossa matriz.

Você acredita em um futuro sem queima de carbono?

Não, mas eu acredito em um mundo neutro nas emissões. O carbono tem um papel importante dentro dos nossos processos, inclusive energéticos. Agora, nós temos condições de melhorar a nossa pegada de carbono, reduzindo a participação de termelétricas na nossa matriz. Ainda teremos a necessidade de emitir carbono, mas eu posso neutralizar isso. Agora, faz muito sentido que nós deixemos a emissão para setores onde ela seja indispensável, este é o principal pensamento dentro do setor elétrico.

Quais os principais gargalos hoje para a ampliação do mercado de energias renováveis?

Em primeiro lugar, demanda. O Brasil passou por um período muito difícil em termos de crescimento econômico, depois tivemos uma pandemia e depois ainda não tivemos a capacidade de retomar uma trajetória consistente de crescimento. A ausência do crescimento econômico forte fez com que a gente não tivesse uma demanda por energia crescente. Um outro aspecto é que a pequena parcela de demanda que cresceu acabou sendo atendida pela geração distribuída (quando o consumidor produz a própria energia). Apesar de não ser uma fonte em si, a geração distribuída cresceu mais do que qualquer fonte centralizada nos últimos anos. Um outro ponto muito forte é a questão da conexão. Ainda há uma necessidade de resolver o gargalo do sistema de transmissão. A nossa estrutura ainda é muito reduzida, se comparada com o potencial que nós temos. Tem um ponto que não é um problema, mas uma questão que precisa ser melhor endereçada, são os aspectos socioambientais. A expansão da matriz renovável vai provocar um acirramento de questões socioambientais.

A remuneração aos produtores de energia, até pela alta disponibilidade, não é tão atrativa atualmente. Por que então isso não aparece nas contas de energia?

A conta de energia que a gente paga vem com alguns itens. Tem o pagamento pela geração, que vai para o produtor, é para ele que o preço está baixo. Mas aí tem os encargos, que são valores referentes à transmissão e distribuição e aí vem a remuneração da comercialização. Pelo lado da prestação de serviços, nós temos estas quatro caixinhas e a geração é apenas uma delas. O problema é que nós temos um quinto elemento na conta, que pesa muito, os encargos setoriais e os tributos. Eles têm um peso de quase 40% daquilo que nós pagamos nas tarifas. Muitos encargos foram criados para resolver problemas específicos, acabaram tendo desvios de finalidade, e hoje custeiam boa parte das operações do setor. Não vou entrar no detalhe de dizer o que acho que está certo ou errado, o fato é que eles encarecem a conta de energia. Por isso que nós temos uma migração cada vez maior de consumidores para o mercado livre de energia. E por isso que se pleiteia tanto a abertura total do mercado, até chegar ao consumidor de baixa tensão.

Essa abertura para o mercado livre, teoricamente, deve se ampliar, não é?

Teoricamente, mas estão acontecendo movimentos em sentido contrário. O Ministério de Minas e Energia tem dado sinais de que considera uma assimetria muito grande entre o mercado livre e o regulado. O mercado livre não paga muitas coisas que estão previstas no regulado, porque é uma transação bilateral. Alguém vai lá e compra a sua própria energia e o fornecedor entrega o que foi comprado. Quando nós olhamos para todo este contexto, o que se paga pela geração não é algo significativo na conta. Hoje a gente fala de projetos a R$ 180, R$ 260, enquanto na conta que nós pagamos o custo chega a ser de R$ 1 mil por megawatt hora. A geração está muito longe de ser a responsável pelo peso na nossa estrutura tarifária. Um aspecto a ser levado em conta é que nós tivemos um cenário hidrológico nos últimos anos extremamente favorável, o que fez com que os reservatórios se enchessem e fez o preço ficar muito barato. Quanto mais água no sistema, mais barata a energia. Isso dificulta o avanço de muitos projetos porque muitos projetos não se viabilizam com um preço tão baixo. À medida em que eu vou acionando termelétricas, seja por necessidades operacionais, ou redução do regime pluviométrico, a energia começa a ficar mais cara. O consumidor enxerga isso quando a bandeira muda de verde para outra cor, o que acabou de acontecer em julho, significa que há uma taxa adicional para custear mais termelétricas. Se isto fosse uma situação pontual, menos mal.

Voltando para a questão socioambiental, estamos falando de algo capaz de comprometer o desenvolvimento da matriz?

Com certeza. A gente sabe que existem regiões socioambientais extremamente sensíveis, seja por questões de ocupação ou de preservação, e todas essas questões são observadas com muito cuidado pelo empreendedor. É necessário desenvolver uma relação mais próxima dos territórios, visando a sua proteção e tentando enxergar nesta relação com a comunidade de que modo o projeto pode servir aos seus interesses. Um complexo de energia renovável vai ser um vizinho da comunidade por mais ou menos 30 anos, entre o início dos estudos até a sua desativação. Quando você tem um compromisso de longo prazo, o ideal é procurar o melhor vizinho que possa ter e também ser o melhor vizinho possível. Regiões com conflitos mais exacerbados são menos atrativas do que outras. Todos os empreendedores sabem que há uma dificuldade crescente para o desenvolvimento de novos projetos, isto é normal porque as áreas que não tinham problemas foram ocupadas primeiro. É natural que se comece a olhar para lugares com maior volume de cobertura vegetal e até outras que não tenham recursos para geração de energia tão bons, mas que estejam distantes das tensões socioambientais. Mas veja, voltamos para a questão do preço, é um desafio desenvolver um projeto que já não é tão bom com uma expectativa de remuneração mais baixa. Qual é o ponto positivo? Nunca se investiu tanto na questão socioambiental quanto agora. A própria Abeeólica (Associação Brasileira da Indústria de Energia Eólica), no caso do setor eólico, teve o cuidado de produzir e divulgar um guia de boas práticas socioambientais.

A gente vê mais notícias envolvendo projetos mais antigos. Houve um aprendizado em relação aos erros do passado?

Houve um aprendizado gigante. Não acho que caiba falar de erros, essa não é a palavra. Se fosse algo errado, não teria sido aprovado. A gente precisa entender que há 20 anos a tecnologia dava os primeiros passos no país, mas a regulação também. Muita coisa foi aprendida ao longo do caminho. Evoluímos em questões como a distância mínima entre os aerogeradores e áreas habitadas, o que impacta nos ruídos e efeitos de sombreamento, para citar exemplos. Isso foi aprendido com o desenvolvimento. Os antigos apresentam maiores índices que chamam atenção de maneira negativa, mas precisamos entender que o contexto era diferente e que eles atendiam às regras daquele momento. Hoje não seguiram este caminho, do mesmo modo que os projetos que são apresentados hoje estão atentos a essas questões. Eu acho que este processo é de evolução contínua. Quando vamos avaliar um projeto solar, por exemplo, sempre realizamos um estudo de microclima, em que apresentamos uma modelagem de variação térmica na região onde aquele projeto será inserido. Isso tem tudo a ver com o contexto de mudanças climáticas, com as preocupações em evitar a desertificação de áreas, mas se voltarmos dez anos, ninguém pensava nisso. Há muito aprendizado, tanto dos empreendedores, que desenvolveram novos processos e tecnologias – hoje, por exemplo, se suprimem muito menos áreas para instalar uma mesma potência – e houve uma evolução por parte dos poderes legisladores e reguladores. Já se sabe o que demanda maior zelo.

A Bahia se tornou uma potência na geração de energia renovável, mas uma crítica que se faz, não especificamente ao estado, mas também a ele, é que o retorno em termos de desenvolvimento é pequeno. É realmente pequeno, ou não estamos sabendo aproveitar?

As duas coisas. Temos a percepção errada em algumas questões. Quando pensamos em desenvolvimento, em legado, a primeira métrica que nos vem à cabeça é a arrecadação. As obras estão associadas diretamente ao ISS, o Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza. Durante a construção, você tem um aumento, e como os projetos costumam ser faseados, você tem um período de dois, três , até cinco anos, normalmente, as pessoas se acostumam com esse padrão. Mas a obra acaba e aí surge a crítica de que a empresa chegou, está aproveitando o potencial e não está deixando nenhum legado. Eu acho a pergunta é o que os gestores públicos fizeram com este recurso adicional que tiveram durante um determinado tempo? É importante trazer isso, não é de responsabilidade do empreendedor substituir o Estado, mas ele pode trazer, junto com o Poder Público, uma agenda positiva, fortalecendo políticas públicas. Existem diversas iniciativas deste tipo. Outro aspecto é que o pico de empregos acontece na construção, muitas vezes com 3 mil pessoas bem remuneradas em cidades muito pequenas. Isso gera uma movimentação econômica significativa. Com o fim das obras, o entendimento é que acabaram-se os empregos, mas não é verdade, existem ali 150, 200 posições ligadas à operação e manutenção. Temos também alguns legados, como melhorias em rodovias, desenvolvimento do comércio local, um incremento na qualidade de serviços e que só acontecem por conta destes empreendimentos. E nem incluí os arrendamentos de áreas, que permanecem desde a pré-operação e estimulam a economia local. Nem mesmo nós do setor de infraestrutura sabemos como divulgar isso tudo adequadamente, mas o setor traz um legado, sim.

O Projeto Transição Energética é uma realização do Jornal CORREIO, com o patrocínio da Unipar, Tronox e Energy Fuels, apoio institucional da Braskem e do Sebrae Bahia e parceria da AC Consultoria.