Viva O Povo Brasileiro: De Naê à Dafé

Espetáculo musical reúne o que há de mais genuíno da nossa cultura

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Publicado em 1 de julho de 2024 às 13:46

Musical Viva o Povo Brasileiro estreia hoje em Salvador
Musical Viva o Povo Brasileiro  Crédito: Annelize Tozetto

O repentista é aquele sujeito que tira de onde não tem para encaixar onde não cabe. Essas palavras versam sobre o poder do artista em transformar do mais concreto ao mais abstrato em objeto de reflexão.

Esse ofício está longe de ser simples. Quando se trata de uma obra com a imponência de Viva O Povo Brasileiro, do imortal João Ubaldo Ribeiro, encaixá-la em qualquer formato que não seja o volume de 700 páginas, em média, é desafio dos mais arriscados.

Munido de muita coragem, o diretor de teatro André Paes Leme mergulhou nessa missão e dedicou oito anos de muito trabalho para levar aos palcos uma parcela breve, porém, significativa dessa radiografia baianocêntrica do Brasil. Viva O Povo Brasileiro — de Naê à Dafé — é um espetáculo musical que reúne o que há de mais genuíno da nossa cultura.

As 27 canções originais de Chico César, a direção musical eclética, o cenário vibrante, o texto vivo e dinâmico, além de um elenco que encarnou verdadeiramente cada uma das alminhas que dão vida a nós brasileiros, transformam o teatro em uma cápsula do tempo que conduz o público à Ilha de Itaparica dos anos 1600.

À bordo da lancha baleeira de Vevé, nos deparamos com esse Brasil pretérito, mas ainda tão latente, fruto de uma colonização violenta, opressora, tacanha e cínica, que é combatida, mas perdura dia após dia.

O espetáculo tem aquele poder de carregar a plateia para cima do palco. O povo que ocupa as cadeiras se enxerga no ode ao trabalho do Nego Leléu, nas palavras mutiladas de Feliciano, na cretinice “britânica” de Amleto, na perseverança conformada de Dadinha, na escrotidão de Perilo Ambrósio, mas, sobretudo, na catarse dos oprimidos frente à congestão visceral do algoz. “O barão morreu… antes ele do que eu”.

Da perspectiva técnica, a peça encontrou o refinamento que o texto pede. Os objetos de cena funcionam como brechas que nos convidam a espiar a história e fazer com que a mente construa o Brasil que cada um é capaz de ver.

Assim, meio que de repente, varas de bambus viram canoas, tamboretes se transformam em andores, surgem penicos de porcelana branca e a inenarrável fedentina pútrida da baleia descarnada povoa o ambiente.

As escolhas textuais também foram muito felizes. Aqui, ter lido a obra agrega à fruição do espetáculo. O discurso de despedida de Dadinha, por exemplo, e tudo o que ela ensina aos seus naquele sacro momento, chega em cena com carga dramática fiel às bem traçadas linhas de João Ubaldo. É como ver aquelas palavras tomando forma humana, se materializando pela batuta da dramaturgia.

Já na despedida de Perilo Ambrósio, a adaptação muito bem se utilizou da licença poética para levar a classe subalterna ao êxtase. Afinal de contas, essa história pertence às mãos e pés calejados que há cinco séculos sustentam esse país.

Aquela vingança rimada, ainda que breve, nutre a alma dos escravizados, dos trabalhadores uberizados e dos que não se conformam com as injustiças, ao passo que lhes injeta uma dose de adrenalina para seguirem em frente.

Assim, de ato em ato, de encarnação em encarnação, de Capiroba à Vu, De Vu à Naê, de Naê à Dafé pisamos sobre esse palco. Assombrados por estalidos, zumbidos e assovios que enchem as nossas cabeças desde que aquele povo estranho, de pelo na cara e sujeira na alma, desembarcou no Atlântico Sul.

De cópulas forçadas surgimos nós, brasileiros, bastardos de Perilos, criados por Vevés encontrando nas páginas dos Ubaldos uma história viva que, só pela graça dos orixás, segue sendo contada.

Publicado em saulomiguez.medium.com