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Da Redação
Publicado em 7 de julho de 2019 às 14:51
- Atualizado há 2 anos
Foto: Zélia Gattai/Acervo da família Crônica de Domingo, 7 de julho de 2019: Joãozinho
Morreu João Gilberto, meu querido amigo de infância (a minha infância). Era como um filho de papai, uma pessoa gentil, querida, bastante atrapalhada e engraçada. Seu talento, imenso, todo mundo sabe.
Para homenageá-lo, no dia seguinte à sua partida, peço a papai um texto seu, publicado em Navegação de Cabotagem, assim ele também homenageia seu amigo e afilhado. Foto: Zélia Gattai/Acervo da família O Casamenteiro Fomos padrinhos, Zélia e eu, do casamento de João Gilberto com Astrud, o casal se separou nos Estados Unidos para onde Joãozinho viajara a fim de participar de um show, obteve tamanho sucesso que ficou por lá anos a fio. No dia de seu embarque, indo para o aeroporto, passou por nosso apartamento para o abraço de despedida, vestia roupa leve, própria para o verão carioca, em Nova York a crueza do inverno era manchete nos jornais. Ao vê-lo tão desagasalhado, retirei do guarda-roupa um sobretudo usado: vista-o ao desembarcar do avião senão vai morrer de frio, pegar pneumonia. Essa a minha contribuição para o êxito do cantor nos States, o sobretudo que o salvou da pneumonia dupla. Contribuí também para seu casamento com Miúcha: do primeiro matrimônio fui testemunha, no segundo funcionei de casamenteiro. Um dia recebi na Bahia telefonema de Joãozinho, ligava de Nova York, aflito como sempre, não mudara, continuava o mesmo: — Jorginho, você é muito amigo do Sérgio Buarque do Holanda, não é? — Sou sim, Joãozinho, por quê? Figura das mais fascinantes da comparsaria intelectual, Sérgio concedeu-me o privilégio de sua intimidade, coloquei-o de personagem em O capitão de longo curso, assim homenageio aqueles que mais estimo e prezo, pondo-os nas páginas de meus romances. Juntos, durante um congresso de literatura em Recife, fundamos na Igreja de São Pedro dos Clérigos a “Benemérita e Venerável Ordem do Hipopótamo Azul”, dedicada ao trato das donzelas, e criamos a teoria das baquianas, “as balzaquianas quando baqueiam”, baseada na agitação das literatas locais que cortejavam Eduardo Portella, o sedutor. Na época do telefonema o mestre historiador se vangloriava de ser o pai de Chico Buarque, compositor que estourara nas paradas de sucesso. — Jorginho, estou apaixonado pela filha dele, a Miúcha, irmã do Chico. Miúcha anda por aqui, ela também gosta de mim, queremos nos casar mas temos medo que Sérgio se oponha, você sabe como é, deve ter ouvido horrores a meu respeito. Queria que você falasse com ele, pedisse a mão de Miúcha em casamento, para mim. Diga a ele que não sou tão ruim assim como dizem por aí. Habituado a me envolver com a vida de Joãozinho, prometo interferir — “depressa, daqui a uma hora telefono de novo para saber o resultado”. Desligara agoniado, eu ainda procuro o número de Sérgio no caderno de telefones, Joãozinho volta a ligar: “Eu tava tão vexado que não mandei um beijo para Zélinha”. Vexado, Joãozinho. Disco o número paulista, Amélia atende, trocamos gentilezas, desejo falar com vosso ilustre consorte. Sérgio vem ao telefone, sabendo que sou eu começa a imitar sotaque holandês, é de morrer de rir mas eu me ponho sério para lhe informar: — Te telefono para pedir a mão de tua filha Miúcha em casamento. — Hem? Que história é essa? — abandona o acento batavo, coloca-se em posição de defesa, que peça estou querendo lhe pregar? — Não é para mim, é para João Gilberto, estão apaixonados, querem se casar, ele pediu que te dissesse que não é tão ruim assim, tão má pessoa como consta por aí, não deves acreditar nas más línguas... Falo a sério, relato a conversa de Joãozinho, telefonema em dólares de Nova York, repetida, esquecera o beijo para Zélia. Empolga-me a paixão dos dois cantores, coisa linda, faço o elogio do candidato a genro e o faço com amor. De Joãozinho sei o direito e o avesso, do menino de Juazeiro nas barrancas dos São Francisco ao músico ainda desconhecido, lutando no Rio em dias de aperto, sou seu parceiro, fiz a letra do “Lamento de Marta”, composto para o filme de Alberto D’Aversa. Quando solteiro, Joãozinho aparecia à noite no apartamento da Rodolfo Dantas, trazia o violão, ficava até a madrugada, cantando. Acontecia que Zélia e eu, cansados, íamos dormir. Joãozinho prosseguia em companhia de João Jorge, menino ainda, privilegiado. João Gilberto tocava, cantava, tendo como ouvintes apenas o moleque e o pássaro sofrê: vivia solto na sala e assobiava as músicas que Joãozinho dedilhava no violão. Sérgio escuta em silêncio minha lenga-lenga, a proclamação das virtudes de Joãozinho, gênio musical, amigo terno, pessoa amorável. No dia seguinte toma o avião para Nova York, vai estudar o assunto in locum, apaixona-se pelo candidato, só podia acontecer. Para terminar um post-scriptum: já levava João Gilberto vários anos residindo nos Estados Unidos quando um dia apareceu-me em casa um portador trazendo encomenda enviada pelo músico: um sobretudo novo em folha, soberbo, eu o usei longo tempo, ainda o tenho. Ou será que dei a João Jorge, o ouvinte solitário, o privilegiado?
Um bom domingo a todos. Domingo mais triste, menos bonito, domingo de silêncio sem a presença de Joãozinho.