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Donaldson Gomes
Publicado em 29 de março de 2024 às 05:00
A música é uma das grandes consolações da vida, disse Carlos Drummond de Andrade no livro Confissões de Minas. Mas, no caso de Salvador, além de alimentar a alma, os sons, quase sempre festivos, são responsáveis por levar comida para milhares de famílias. Principais atrativos para a maior festa popular do mundo, os cânticos da capital baiana – sejam em ritmo de axé, samba, pagode, arrocha, ou qualquer outro – permeiam 63 atividades econômicas diferentes, que vão desde a hotelaria e agências de viagens, mas mexem também com o comércio atacadista de bebidas, transporte, segurança privada, produção musical, etc.
Assim como acontece em diversas áreas englobadas no conceito de economia criativa, há poucos estudos que indiquem adequadamente a importância da música para Salvador. Mas o que uma série de exemplos aponta, com bastante clareza, é que a indústria musical exerce um papel central no desenvolvimento da cidade. E isso não vem de agora. Em 1940, quando cantou Samba da Minha Terra, Dorival Caymmi já deixou explícita a importância das canções para a sua sobrevivência: “Eu nasci com o samba, no samba me criei. Do danado do samba nunca me separei”.
De lá para cá, outros ritmos, novos nomes, maneiras diferentes de produzir e consumir música, mas tudo isso só fez aumentar a importância econômica do canto e dos toques para a Cidade da Bahia. Os eventos de interesse turístico, quase todos movidos a música, são o motor para 3.837 empreendimentos em Salvador, de acordo com dados da Secretaria Municipal de Desenvolvimento, Emprego e Renda (Semdec), e geram uma massa salarial de R$ 69,8 milhões. Tomando como exemplo o Festival da Virada, enquanto milhares de soteropolitanos e visitantes se despediram de 2023 e deram as boas vindas a 2024, quase 60 mil pessoas estavam trabalhando – 46 mil com carteiras assinadas e quase 13 mil, como microempreendedores individuais.
O Carnaval, maior evento musical da Bahia, este ano contou com 1225 atrações, que produziram 2,7 mil horas de música, de acordo com a Empresa Salvador Turismo (Saltur). Nos circuitos oficiais (Dodô, Osmar e Batatinha), foram 714 atrações e 1,8 mil horas de música. Os 22 espaços alternativos, que envolveram palcos temáticos e torres eletrônicas, foram 511 atrações e 900 horas de música.
No período de pré-carnaval, com as apresentações do Furdunço, Fuzuê, Melhor Segunda-Feira do Mundo, Pipoco e Circuito Sérgio Bezerra, foram 95 atrações. Ao todo, a Prefeitura contou com apresentações musicais em 22 espaços alternativos, sendo 11 deles apenas no Centro Histórico da Capital e as outras 11 em bairros fora do circuito oficial. Mais de 500 atrações subiram nesses espaços, que teve mais de 900 horas de música, ao todo.
Cartão de visitas
Isaac Edington, presidente da Saltur, traz o Carnaval para a conversa quando vai demonstrar a importância da música para a economia de Salvador. “Nós somos a Cidade da Música, reconhecida pela Unesco, sabemos da importância cultural que ela possui, mas precisamos dizer também que temos o maior evento musical do Brasil e um dos maiores do mundo”, pondera. Para sustentar suas afirmações, ele diz que os dados recebidos pela Secretaria de Segurança Pública (SSP) indicaram 11 milhões de pessoas no último Carnaval.
“Claro que temos um patrimônio histórico de valor inestimável, praças maravilhosas, porém o que mais traz visitantes para Salvador são as atrações musicais”, destaca. “Nós temos a consciência de que a cidade não pode viver somente de música, temos que diversificar. Entretanto, do mesmo modo, não podemos virar as costas para a importância que a música tem economicamente”, completa.
Isaac Edington destaca a importância do calendário de eventos para a geração de empregos e renda. “Quando nós pensamos que cada artista contratado tem, pelo menos, dez pessoas lhe dando algum tipo de apoio, seja como banda ou bastidores, eu lembro que só nos carnavais de bairros nós assinamos 500 contratos este ano. Posso pensar, muito por baixo, em 5000 mil pessoas trabalhando”, afirma.
A música costuma exercer um papel de destaque na vida das pessoas. A pesquisa Hábitos Culturais, da Fundação Itaú e Datafolha, divulgada em dezembro de 2023, indica que 60% dos brasileiros praticam, como profissional ou amador, alguma atividade artística. Desses, 29% indicaram “música, canto, banda ou grupo musical”. Quatro em cada cinco pessoas entrevistadas afirmaram ter ouvido música online pelo menos uma vez no último ano.
Entre as atividades presenciais, shows de música também tiveram importante destaque e aparecem como a quarta atividade mais realizada e com 31% dos entrevistados afirmando ter ido a shows em 2023 – quando o recorte é entre o público na faixa etária entre 16 e 25 anos, a média aumenta para 41%.
Dados do Observatório Itaú Cultural, que faz o acompanhamento do Produto Interno Bruto (PIB) da Economia da Cultura e das Indústrias Culturais (Ecic), no Brasil, indicam que existem apenas 402 empresas dedicadas à música no país – algo em torno de 0,3% do total de empresas que compõem a Ecic. em relação ao mercado de trabalho, 65% dos trabalhadores são informais e recebem salários médios de R$ 2.696.
Quando o axé surgiu no cenário musical baiano, o coração de Irá Carvalho já tinha sido tomado pelo pop rock e a MPB. "O primeiro show que eu assisti foi de (Gilberto) Gil e Jimmi Cliff", lembra. Em 40 anos de carreiras, entretanto, foram muitas as parcerias com artistas que representam o mais típico gênero musical baiano. "Eu sou a prova de que o mercado musical de Salvador é tão rico que tem espaço para todos os gostos", diz.
Mas não apenas para uma diversidade em termos de estilos, como também em termos de tamanhos de apresentação. "Temos que entender que mesmo um artista de barzinho é relevante, ele está ali mantendo 50 pessoas entretidas em um restaurante", analisa. É claro que grandes shows e festivais respondem por movimentações econômicas gigantescas, completa, mas apresentações de pequeno ou médio porte também ajudam a movimentar a indústria da música, garante.
"Tem artistas e tem públicos que até preferem ambientes mais intimistas, porque se sentem mais confortáveis. Mas mesmo uma pequena apresentação, movimenta um grande número de artisas, de profissionais de apoio, segurança, recepcionistas", enumera.
Uma apresentação na Concha Acústica, por exemplo, demanda profissionais de segurança, portaria, carregadores, além da equipe de apoio dos artistas. "Quando pensamos nos profissionais que estão ali no bar e no entorno do show, podemos pensar tranquilamente em 100 pessoas que estão ali gerando receitas", afirma.
"A Bahia é uma festa, é uma cidade cultural, todo mundo vem para cá ver a música baiana. Tem um mercado gigante que vive desta cultura", destaca. "Salvador precisa se reconhecer como uma cidade que depende da música também do ponto de vista econômico, não apenas cultural", acredita.
Considerado um ícone na área de sonorização, João Américo, 79 anos de vida e 48 de música, acredita que a importância econômica da música não é percebida como deveria. “Quando a gente pensa que investimentos bilionários no Polo de Camaçari geram menos de mil empregos e que um show de Carlinhos Brown no Candeal gerava renda para 300 pessoas, fica claro que precisamos cuidar melhor da música”, compara. Américo conta ainda que um grande show ou festival ultrapassam facilmente a casa das mil pessoas trabalhando.
Por muitos anos, responsável pelo som de nomes como Caetano Veloso, Gilberto Gil e João Gilberto, João Américo, há alguns anos, decidiu investir numa fábrica de auto falantes de altíssima fidelidade – alguns já podem ser encontrados nos melhores trios elétricos, diz. Na nova empreitada, ele repete o caminho que traçou para se tornar referência em sonorização: muito estudo e paciência. “Tem caixas que eu levei quatro anos para desenvolver. Agora mesmo, estamos prestes a lançar uma destas”, conta.
Mulheres nas paradas de sucesso
Quando Joyce Melo e Beatriz Almeida decidiram criar o Pagode por Elas, pensavam criar um novo espaço para um ritmo musical que é a cara da Bahia, com o protagonismo feminino. A partir do trabalho de conclusão no curso de Jornalismo, decidiram investir numa série de conteúdos, com podcast, reportagens e influência nas redes sociais, além da realização de eventos, como o Festival Pagode Por Elas, e a frente de educação e selo musical, Som Por Elas.
Iniciativa pioneira, a PPE realizou diversos feitos inéditos sobre o protagonismo das mulheres neste gênero musical: o primeiro artigo científico sobre o tema, "As transformações provocadas pela presença de mulheres vocalistas na cena musical do pagode baiano"; A primeira realização audiovisual, a minissérie "Pagodão: A cena por elas", lançada com patrocínio da Skol e em parceria com a Diver.SSA; O Podcast Pagode Por Elas; O primeiro festival com line 100% composta por pagodeiras; A primeira reportagem especial "As donas da zorra toda”, além de uma assessoria de imprensa que mudou o resultado das pesquisas no Google sobre "Mulheres no Pagode Baiano".
“Estamos falando de uma música muito popular e que se escuta em todos os lugares. Quando a gente começa a estudar o tema, percebemos que a mulher é colocada sempre em um papel secundário, é a piriguete, com o corpo objetificado”, diz Joyce. “Nós queríamos trazer a mulher para um lugar de destaque”, conta.
Desde então, novos nomes foram descobertos e diversas iniciativas discutem o lugar delas no pagodão. “Nós entramos neste universo cientes de que havia uma lacuna muito grande de visibilidade para as artistas. Nós não éramos do mercado da música antes, mas tivemos que entrar para entender como funciona”, conta Beatriz.
“Quando falamos em um mercado da música, precisamos entender que há muitas camadas envolvidas. É importante ter a música para o turista vir se divertir. Nós sabemos fazer isso, porque somos um povo musical, criativo e que historicamente consegue alcançar outras pessoas. É um movimento importante para a cidade e para quem faz música”, analisa Beatriz. Por outro lado, acrescenta, este potencial poderia traria bem mais benefícios se houvese mais apoio a artistas independentes, acredita.
Até aqui, o Pagode por Elas vem alcançando sucesso no objetivo de dar mais espaço para a mulherada na cena musical. A plataforma tem um time fixo com seis pessoas, mas durante os ciclos criativos, entre 50 e 60 mulheres recebem oportunidades de lançar canções através do selo. Durante o festival musical, oito carreiras musicais, artistas ou bandas, foram contratadas, sem contar uma equipe técnica com mais 20 pessoas, para dar suporte. O balanço do último ano mostrou que dos 80 contratos firmados, 96,3% foram com mulheres. “Esperamos que em 2033, quando completarmos 10 anos de atuação, tenhamos uma década de pagodão completamente diferente”, torce Beatriz.
Desde que cantou pela primeira vez, ainda na infância, Ju Moraes nunca mais parou. Soteropolitana, ela chegou a viver dos oito aos 15 anos em Berimbau, no interior da Bahia. Quando retornou, passou a conviver com amigos que também tinham paixão pela música. O tempo passou, Ju chegou a desenvolver uma carreira no Direito, mas a paixão pelo canto e pelos acordes foi mais forte.
Mesmo nos holofotes em projetos como a Samba de Ju, ou após a participação no The Voice, a cantora lembra que teve algumas dificuldades para encontrar o seu lugar no mercado. “Tive várias oportunidades para sair, ir para o Rio e São Paulo, mas entendi que meu trabalho era aqui em Salvador. Sei que a minha grande qualidade é o meu sotaque, algo que só Salvador me fornece”, avalia.
Em 2019, resolve enfrentar o que considera uma das grandes dificuldades para quem vive de música por aqui: a falta de espaços culturais. Com a vontade de ter um lugar onde pudesse não só fazer shows, mas encontrar outros artistas, promover conexões e realizar outros sonhos de produzir conteúdos audiovisuais, Ju criou junto com sua esposa e sócia, Thiciana Zaher, a Colaboraê. “Queremos gerar renda e lucro, mas não apenas para os donos, é para a comunidade artística como um todo”, diz. “As pessoas valorizam muito o que acontece em Salvador, existe uma grande mística e uma grande magia”, acredita.
Ju Moraes lembra que estão acontecendo mudanças muito grandes no mercado da música e que isto traz demandas de formação de novos perfis profissionais. “Ainda existem muitos artistas que têm dificuldades de entender o funcionamento das plataformas de streaming. Se o artista ficar parado esperando alguém o procurar, pode acontecer, mas também pode não acontecer”, exemplifica.
Mesmo ainda distante do que espera alcançar com o Colaboraê, Ju comemora os resultados obtidos desde a reabertura, pós-pandemia. “Desde que reabrimos, em maio de 2022, a gente nunca mais fechou e a casa se paga. Para mim, isto é um sucesso”, acredita.
Streaming
Roni Maltz Bin, CEO do Sua Música, maior streaming de música brasileiro, conta que diversos artistas de Salvador tem conseguido acelerar os seus processos de desenvolvimento de mercado através da plataforma. Segundo ele, por mês, mais de 8 milhões de fãs acessam a plataforma para ouvir forró, arrocha, piseiro, pagode e outros gêneros. Ele cita nomes como Heitor Costa, Unha Pintada, Toquedez, Thiago Aquino e Chicabana, entre os mais acessados. “O mercado da música se adaptou muito bem às plataformas de streaming, que vieram para ‘salvar’ a indústria que estava em declínio”, acredita.
“Salvador sempre foi um polo cultural, referência para a música brasileira. Seria legal ver um movimento crescente de incentivos e investimentos nesse setor para atrair cada vez mais empresas e profissionais qualificados, e Salvador seguir se destacando e irradiando cultura e alegria”, acredita Roni.
O projeto especial Som Salvador é uma realização do Jornal Correio, com patrocínio da Unipar, apoio institucional da Prefeitura Municipal de Salvador e apoio da Wilson Sons e Salvador Shopping.