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Doris Miranda
Publicado em 29 de março de 2024 às 11:00
Você ainda está nessa de achar que a Bahia só é terra de música carnavalesca? Ou que o rock baiano só gerou Raulzito, Camisa de Vênus e Pitty? Se saia dessa lenda, cara. Essa ideia errada ficou lá atrás, quando a indústria da axé music ditava as regras nas rádios e nos grandes shows produzidos da cidade, reproduzindo a ideia de que Salvador não tinha espaço para sustentar nada além do que valia para os dias de folia.
Eu já andei muito na night dessa Salvador e sei, até pela função de tantos anos neste jornal, que há vida pulsante, muito produtiva e bem articulada nos palcos e redutos do rock soteropolitano - e não só do rock, mas dos demais gêneros que extrapolam o porradão sonoro do trio elétrico. E que bandas bacanas, de estilos muito diversos, com instrumentistas excelentes e letristas idem, nunca faltaram por cá.
Cabe, isso, sim, ter curiosidade pra buscar o que há de novo, cavucar os eventos, escutar os discos, formar opinião e procurar entender a cena. Porque, na moral, os discos estão aí, disponíveis nas plataformas de streaming. Outra dica bacana é se perder no site da Trinca de Selos, iniciativa massa do Brechó Discos, BigBross Records e São Roque Discos. Ouça as coisas e fale do que você gostou pra seus amigos. É, no mínimo, um trabalho de formação de plateia.
Quando ainda era mato
Tudo muito diferente, é claro, dos desbravadores dos anos 80, como o próprio Camisa e outras bandas como Gonorréia, Espírito de Porco e Delirium Tremens, por exemplo, que articularam shows históricos nos circos Relâmpago e Troca de Segredos.
Como se sabe, o Camisa alcançou outro patamar e o resto é história - Marcelo Nova e seus companheiros foram parar em rede nacional na onda boa do rock brazuca. O engraçado era perceber que, apesar de estar em programas populares, a banda sofria a ‘censura’ de ter seu nome não dito na televisão. Coisas do Brasil recém-saído do conservadorismo da ditadura.
Encorajada, a leva posterior conseguiu atenção da mídia de rádio. Uma emisssora, num feito inédito (até hoje, diga-se de passagem) lançou uma coletânea com o trabalho de grupos como Elite Marginal, Diário Oficial, Ramal 12, Cravo Negro, Via Sacra, Utopia e Faróis Acesos, possibilitando que o som do rock soteropolitano oitentinha fosse escutado no conforto de casa.
Éramos felizes e sabíamos
Quem viveu o rock dos anos 90 em Salvador sabe que nunca fomos tão felizes. Primeiro de tudo: já havia internet e as informações, finalmente, puderam ser acessadas em tempo real. Depois porque podíamos contar com diversidade de propostas musicais, vários espaços para curtir shows e festivais, clipes, fitas K7 e CDs gravados aos montes, intercâmbio com artistas de fora e lojas especializadas, como a Kaya, a Colemerma e a Maniac.
A cada fim de semana, uma farra em diferente espaços. O mais famoso? O Calipso, de Jean Claude, claro. Mas, tinha também a Faculdade de Economia (onde o Garage Rock foi realizado durante anos), o Hotel Pelourinho (shows inesquecíveis), o Idearium, o Casablanca e até o Palco do Rock a cada carnaval.
Úteros em Fúria, Meio Homem, Dead Easy, Circus, Dr. Cascadura, The Dead Billies, Inkoma, Saci Tric, Crac!, Mercy Killing, Headhunter DC, Lisergia, Dois Sapos e Meio, Injúria, Maria Bacana, Catapulta, Mutter Marie, Bosta Rala, Ataraxia, Zambotronic, Arsene Lupin, Penélope Charmosa, Dinky Dau. A lista é muitíssimo maior do que isso e atendia a vários gostos. Do punk mais cru ao psychobilly, do indie rock ao metal, do psicodélico ao hardcore, do rock de pular ao rock triste.
Os anos 2000 chegaram com o rock mais diluído, mas ainda assim pulsante. Se a tríade da década anterior era fincada na pegada impressionante de Úteros em Fúria, Cascadura e Dead Billies, o novo século surgiu apontando para o trabalho excelente de Retrofoguetes e Ronei Jorge e Os Ladrões de Bicicleta, mas também revelou Nancyta e Os Grazzers, The Honkers, Alex Pochat, Brinde, Canto dos Malditos, O Círculo, Radiola, Scambo, A Sangue Frio, Sangria, Matiz.
Era da informação
Hoje, embora, com menos espaço para shows, há bem mais possibilidades. Bandas muitas que a gente nem dá conta de acompanhar. Mas há um destaque, sem dúvida, para Maglore e Vivendo do Ócio, que vêm navegando muito bem fora de Salvador.
A cena local continua com tanta diversidade quanto há 30 anos, firmando essa como a maior característica do rock baiano. Exemplos? Ivan Motosserra, Vendo 147, Velotroz, Falsos Modernos, Os Jonsóns, Tangolomangos, Maré Vazia, Jardim Soma e Bagun.
Veja os álbuns que são indispensáveis para entender o rock baiano
O rock baiano gerou discos extremamente importantes, que revelam a diversidade de estilos que reina na roqueragem daqui e demonstram o alto nível de seus artistas. A editora de cultura Doris Miranda sofreu pra escolher apenas cinco álbuns que pode considerar indispensáveis para se compreender melhor o tipo de rock que se faz na Bahia. Ah, ela lembra que toda lista é muito pessoal. Confira o top 5, listado em ordem cronológica apenas, sem ranking de importância.
Wombs in Rage (1993) - Úteros em Fúria
Embora a qualidade da gravação seja questionável por motivos de que a produção foi feita de forma doméstica pelos caras, Wombs in Rage é uma porrada e dá a pista do que era a Úteros ao vivo. A banda abriu a porteira do que seria a fértil geração do rock baiano dos anos 90.
Heartfelt Sessions (1999) - The Dead Billies
Não é tão desbravador (ou selvagem) quanto Don't Mess With... (1995), mas o requintado segundo álbum da banda já vibra além do psychobilly furioso que caracteriza a obra dos caras. A energia, porém, que movimentava o quarteto ao vivo está lá. Pode crer.
Admirável Chip Novo (2003) - Pitty
Depois das coisas de Raul, esse deve ser o disco mais famoso do rock baiano. Nem precisa dizer o motivo, né? Pitty é, hoje, a artista feminina mais importante do rock brasileiro. E pensar que vimos tudo começar ali no palco-plateia do Calipso.
Frascos, Comprimidos, Compressas (2009) – Ronei Jorge e os Ladrões de Bicicleta
Pense num refinamento? É esse disco. Uma banda incrível, o maior letrista que esse rock baiano já viu. O segundo álbum do quarteto faturou o Prêmio Bahia de Todos os Rocks 2010 na categoria Álbum do Ano, e foi incluído na lista de melhores do país da revista Rolling Stone.
Bogary (2006) - Cascadura
Aqui, a Cascadura está no seu auge. A banda super azeitada. As letras de Fábio lindas de se ouvir. O rock maduro sem deixar de soar como a Cascadura que surgiu no início dos anos 90 com três virtuosos guitarristas.
O projeto especial Som Salvador é uma realização do Jornal Correio, com patrocínio da Unipar, apoio institucional da Prefeitura Municipal de Salvador e apoio da Wilson Sons e Salvador Shopping.