Receba por email.
Cadastre-se e receba grátis as principais notícias do Correio.
Saulo Miguez
Publicado em 29 de março de 2024 às 08:01
Sabe a Fobica de Dodô e Osmar? Está mais popular do que nunca. A versão contemporânea do precursor do trio elétrico, no entanto, não tem aquela carinha de carro inocente da Corrida Maluca. O bicho mais parece um Transformer prestes a entrar em guerra. São dezenas de caixas empilhadas formando uma parede, ou melhor, um Paredão sonoro geralmente emoldurado por luzes neon que dão um toque futurista ao monstro acústico.
A aparência, por sua vez, não é a principal diferença entre esses elos musicais andantes. Comparado ao que sai dos seus alto-falantes, não é exagero dizer que em aspectos visuais a Fobica e o Paredão são imagem e semelhança um do outro.
Ao invés das marchinhas e frevos sustentados pela guitarra baiana, o som de agora é predominantemente estalado e grave – em todos os sentidos dos termos. O pagodão, muitas vezes monocórdico, é tocado em notas secas que atingem mais o estômago do que propriamente o coração.
Dessa maneira abrupta, que foge ao romantismo tradicional que ganhou as avenidas nos fevereiros dos anos 1960/70/80, que esse movimento se edifica dividindo opiniões, ao mesmo tempo que une milhares de pessoas nas comunidades soteropolitanas, se consolidando como um fenômeno dessa cidade que inspira, expira e quase sempre pira em música.
É importante frisar que, para além do equipamento sonoro e do estilo musical, o Paredão é um movimento cultural de massa que nasce da necessidade das pessoas se divertirem.
O produtor cultural e morador de Cajazeiras, Jamerson Silva, explica que as festas realizadas nas ruas, com música tocada em carrocinhas sonoras, estão diretamente atreladas aos rolês de comunidade.
“Salvador é uma cidade barulhenta por natureza, que vive da música. A música daqui é uma música alta e quem não tem alternativa de fazer as festas em locais privados, vai para rua e liga o som”, disse.
Esse barulho se reflete nos números do Balanço Geral de Ações de Combate à Poluição Sonora, da Secretaria Municipal de Desenvolvimento Urbano (Sedur). Só nos dois primeiros meses do ano, a pasta recebeu 3.131 denúncias de som alto, que tinham como fontes veículos particulares e residências.
Nas 2.040 vistorias realizadas no mesmo período, 63 equipamentos sonoros foram apreendidos. Entre os bairros mais denunciados estão Rio Vermelho, Pituba e Itapuã.
A lei municipal 5.354/98, que dispõe sobre a utilização sonora em Salvador, permite os níveis de sons e ruídos de até 70 decibéis, das 7h às 22h, e de até 60 decibéis, das 22h às 7h. Para o cidadão ou estabelecimento que for flagrado infringindo a lei, a multa varia de R$ 1.211,73 a R$ 201.788,90, além da possível apreensão dos equipamentos.
O Paredão, ainda segundo Jamerson, é uma festa espontânea, orgânica e sem grande produção prévia. Nostálgico, ele compara o Paredão da Fazenda Grande III com o que foi o antigo Mercado do Peixe, hoje Vila Caramuru, no Rio Vermelho, onde, sem marcar nada, as pessoas se encontravam no final da noite para tomar a saideira, comer o feijão e ouvir o que estivesse tocando.
Isso não significa que o evento seja uma terra de ninguém, sem as suas regras próprias. “A festa tem seus códigos de ética, música e vestimenta. É uma parada que faz parte da cultura do Paredão. As roupas, os penteados, como eram os bailes de favela nos anos 1970”, disse.
Música de Meme
Caso o Paredão tivesse uma Bíblia, o Livro de Gênesis se chamaria La Fúria e seria assinado por Bruno Magnata. Tio Roby que não me leia, mas de tão associado ao movimento, o La Fúria tornou-se “A” banda dos paredões.
Magnata conta que falar a linguagem do povo e estar ligado ao que vem sendo dito por esse povo nas ruas e redes sociais, são os segredos do sucesso dos inúmeros hits que embalam os bailes de periferia e as playlists das plataformas digitais.
Tudo começou com todo mundo querendo virar Fábio Assunção, depois veio a incomparável narração do Tele e Zaga e, mais recentemente, o gran finale da discussão de Davi e MC Bin Laden no BBB 24 e o nocaute sofrido por Bambam na luta contra Popó também viraram hits.
“O negócio é acompanhar a repercussão da internet. Também existe uma direção para a periferia de Salvador. A gente faz músicas para o Paredão, com a linguagem que a galera quer escutar. As pessoas gostam disso porque tem a resenha, o humor. Eu faço há seis, sete anos e graças a Deus vem dando certo”, disse Magnata.
O La Fúria colhe os frutos de ter sido um dos primeiros grupos a desbravar o território dos paredões. Os alto-falantes sobre rodas são os principais divulgadores da banda ao fazerem a ponte entre o povo que escuta a música e o contratante.
“Quando o prefeito vê o público cantando nossas músicas, ele nos contrata, porque sabe que é o que as pessoas querem ouvir. É como diz o ditado: a voz do povo é a voz de Deus”, completou Bruno.
Nessa estrada aberta pelo La Fúria, passam hoje muitos outros artistas conectados à comunidade e aos trending topics. Entre eles, Alessandro Aragão Carneiro, ou Lekinho, que há cerca de um ano herdou o posto de vocalista da banda Ah Chapa, já ocupado por John (O Poeta).
Estourado, só no mês de março a agenda de Lekinho contou com 15 shows em Salvador, Nazaré das Farinhas e outras cidades baiana, além de seis apresentações em Aracaju contratadas por casas diferentes.
“O povo já está brincando que vou morar lá em Sergipe”, disse. Ele também investe no linguajar popular e bordões para emplacar seus sucessos. “Canto do jeito que a galera conversa”.
Assim, ao musicar frases como “dedo nesse Paredão”, gíria usada para aumentar o volume do som, e “Calma, pai. Você é original”, que incentiva os motociclistas a fazerem manobras arriscadas apenas em locais seguros, reinou absoluto no topo do Viral Salvador no Spotify.
Dessa maneira, o ecossistema que une a favela e a web se mostra um importante meio de divulgação dos artistas que a rádio e a TV ignoram. É uma espécie de termômetro analógico do sucesso da vida real, que remete aos compartilhamentos da indústria musical pré-internet, quando fitinhas cassetes passeavam de mão em mão e faziam sucesso nos walkmans.
O Paredão do Arenoso
Da mesma forma que o Paredão tem os seus ídolos, ele tem seus grandes palcos. Em Salvador, sem dúvida, a Fonte Nova dos sons de carrocinha é o Arenoso. Localizado no miolo central da cidade, o bairro faz divisa com o Cabula, Tancredo Neves, Doron e Novo Horizonte.
De tão hypada que é a festa, uma busca no Twitter pelas tags ‘Paredão Arenoso’ lhe entrega desde listas de lugares “da moda” para se conhecer, até relatos de pessoas que levaram amigas gringas para o evento, passando por memes e desabafos de quem nunca foi convidado para o rolê.
Mas o microblog de Elon Musk também entrega a interrupção de uma das edições dessa festa no período pandêmico, com cerca de três mil pessoas, a maioria adolescentes e jovens de até 25 anos, devido as infringências das medidas restritivas.
Menos ortodoxo que o X, o Kwai relata em som e vídeo o que muitos usuários da rede e frequentadores do Paredão definem como “O Bailão do Robyssão da deep web”.
Nessa profundidade, o que se vê é o mais puro suco de Salvador. Uma fusão da terça-feira de Carnaval, com final do desfile do 02 de Julho e queima do Judas no Sábado de Aleluia. A aparente falta de juízo parece ser compensada pelas altas doses de barulho, agonia e cerveja.
Por motivos diversos, muitos adoradores e opositores desse Paredão específico preferem não se identificar ao falarem da festa. Quem corre dele, critica os excessos de decibéis e baixaria expressos em versos como: “Me bate, vai. Me bate, vai. Me bate, vai” e “Ela gosta de piroca, de piroca, de piroca”.
Quem corre atrás do Paredão, no entanto, está ali para fazer seu Carnaval fora de época, viver seu momento e abraçar sua galera. Faz isso na moral, de boné branco, gola polo, copo na mão e sem querer guerra com ninguém, mesmo reconhecendo que nem sempre o ambiente é dos mais pacíficos.
As engrenagens da máquina
Para estourarem nas redes e nas favelas, as músicas precisam passar por um processo de divulgação que, em síntese, envolve três atores: atualizadores de pen-drive, donos dos paredões e influenciadores/blogueiros.
De maneira bem objetiva, os atualizadores recebem os singles das bandas, copiam e vendem as “peças” para os donos de paredões manterem seus repertórios sempre atuais.
Os paredões, contratados por prefeitos, lideranças comunitárias, donos de bares, promotores de evento e quem mais estiver disposto, soltam o som em volume máximo e em repetições infinitas para as músicas chegarem (e grudarem) no público.
No arremate da divulgação, os blogueiros levam os hits para as suas postagens no TikTok, Kwai, Instagram e YouTube. Assim, as composições viralizam na internet e chegam forte no Spotify e outras plataformas de compartilhamento de áudio.
Enquanto o streaming pega o motorista de aplicativo e a dona de casa, gerando engajamento na web, o Paredão lida diretamente com o povo, impondo a música na comunidade. “A pessoa acaba aprendendo de tanto ouvir. Porque no Paredão, a música chega nele”, descreveu Bruno Magnata.
Lekinho conta que pular uma dessas etapas significa matar um sucesso. “Não adianta o cantor ser bom, se não tiver a parceria com o atualizador de pen-drive e com quem tem o Paredão”, revelou.
Por ser uma via de mão dupla, os cantores sempre mandam um alô para os operadores dos paredões e atualizadores durante as gravações. “A gente dá aquele salve. Aquele alô para o Paredão de não sei quem e não sei mais quem, para isso sair na gravação”, disse Lekinho.
O atualizador
Um dos principais nomes do segmento de atualização de pen-drive na Bahia, o empresário Felipe Brito, mais conhecido como Felipe Atualizações, é dono de números expressivos. Ele vende cerca de 150 peças por mês, a um valor médio de R$ 40 cada. No período de festa (fevereiro e junho), esses números chegam a dobrar. Os dispositivos têm de oito a 32 GB de puro suco musical.
Felipe tem a sua base em Salvador e entrega, via motoboy, em todos os bairros da capital. Além disso, conta com representantes em cidades da Região Metropolitana para atender Camaçari, Candeias e Lauro de Freitas. Ele também mantém operações em Feira de Santana. Pelos correios, envia pen-drives para o resto do Brasil.
“A maioria dos paredões de Salvador sou eu que atualizo, além de vários na Bahia. Hoje tenho contato direto com muitos cantores, mas antes fazia parte de grupos de artistas e foi assim que consegui estabelecer contato com as pessoas do meio”, explicou.
Ele ainda administra 80 grupos de Whatsapp, com mais de 300 membros cada, onde divulga os trabalhos dos artistas que o procuram. No site Sua Música, coleciona mais de 400 mil downloads. Felipe ainda utiliza contas no YouTube e Instagram para disseminar as playlists.
Para montar sua empresa, investiu cerca de R$ 15 mil em dois computadores potentes, um só para atendimento e outro para edição. Felipe também comprou um Paredão para fazer eventos e alavancar a divulgação do negócio.
“O trabalho é grande, mas o retorno chega. Com perseverança, fé e foco a gente vai conquistando. Hoje mesmo tenho dois carros graças a atualização dos pen-drives”, comemorou.
Paredão proibidão!
A gerente de fiscalização da Sedur, Marcia Cardim, não deixa dúvidas ao dizer que as festas de Paredão são proibidas. Segundo ela, há uma central de licenciamento na Prefeitura que reúne todos os órgãos vinculados a eventos e que ela não autoriza os paredões.
“A questão é o local onde o Paredão está tocando. Temos que viabilizar em espaços que não incomodem a sociedade porque, o que acontece é uma disputa de som”, disse Marcia.
Ela lembra que em Salvador já foram feitos testes em locais como o Alto do Andu, Wet'n Wild e Estádio Metropolitano de Pituaçu, mas nenhum deles se mostrou apropriado para sediar esse tipo de evento. Ou seja, as festas de acontecem em situação de ilegalidade.
Histórico desfavorável
Em 2016, a banda As Vingadoras invadiu o Carnaval com o hit Paredão Metralhadora. Uma das primeiras a evocar o termo, a música estourou e conquistou o Bahia Folia, além de ter chegado à 2ª colocação na lista das mais executadas no Spotify Brasil, superando Pillowtalk, do ex-One Direction Zayn.
Quis o destino que, no final daquele mesmo ano, um show da banda fosse marcado por uma tragédia que resultou numa morte a tiros no Coliseu do Forró, em Patamares. O episódio e uma série de outros diretos ou indiretamente ligados ao universo do Paredão alimentaram a narrativa de que o movimento é feito por e para bandidos.
Em maio de 2021, no auge da pandemia, a Sedur, através da Operação Sílere, realizou 255 vistorias e apreendeu 40 equipamentos sonoros em Salvador, em uma ação com o apoio da Polícia Militar e 50 fiscais. Em uma das ocorrências, lá no famoso Paredão do Arenoso, os fiscais foram recepcionados a tiros.
Neste mês de março de 2024, um homem foi executado com mais de 50 tiros na cabeça ao sair de um Paredão na Santa Cruz, em meio a uma disputa das facções Bonde do Maluco (BDM) e Comando Vermelho (CV). Enquanto em outubro de 2023, uma festa parecida foi cancelada no Bairro da Paz após mortes de líderes do BDM, com direito a card de pesar circulando em grupos de Whatsapp e redes sociais.
Quero a legalização
Natanael da Silva, mais conhecido como Chacal, lamenta que o Paredão ainda seja tão estigmatizado e enfrente tantas situações controversas. A bordo de seu potente equipamento, ele leva a vida tocando playlists nas mais variadas festas de Cachoeira e demais cidades do Recôncavo.
“O sistema não dá apoio para a gente. O Ministério Público está em cima fiscalizando. No período que mais trabalhava, chegava a fazer 12, às vezes 20 festas no mês, mas agora está complicado. Eu quero mesmo é a legalização, com apoio da polícia dando uma ronda. Porque hoje ou o cara faz clandestino ou ele fica parado”, desabafou.
Ele faz questão de destacar que o Paredão profissional, muitas vezes, é responsabilizado pelo som de carro que faz zoada em qualquer hora do dia e lugar. “Paredão é o som de carrocinha. Não é qualquer som de mala”.
Chacal investiu R$ 70 mil em seu equipamento, que pesa duas toneladas, tem potencial para “tocar qualquer banda” e é composto por quatro graves de 18, 10 médio-graves de 12, oito tuitas e 20 cornetas. Tudo isso alimentado por 15 baterias de caminhão.
A construção da máquina mobilizou soldador, ferreiro, marceneiro, eletricista, pintor, entre outros profissionais. Em cada apresentação, Chacal fatura em média R$ 500, a depender da distância que precise percorrer, época do ano e tamanho da festa.
Além de quem constrói e pilota a máquina, o movimento mobiliza vendedores ambulantes e donos de depósitos que comercializam bebidas nas festas. A nebulosidade que paira sobre os eventos, por sua vez, mascara o real impacto econômico dessa cultura nas comunidades e, principalmente, o que ela poderia gerar de renda.
Paredão pasteurizado
Apesar do cenário não ser dos mais animadores, há quem acredite que a fama de mau do Paredão vem se diluindo lentamente, à medida que a classe média adere ao ritmo.
Para Jamerson Silva, o processo de aceitação deve seguir um caminho semelhante ao que ocorreu com outros estilos musicais e movimentos de massa surgidos nas periferias brasileiras.
“O funk carioca sofreu a mesma pasteurização. As bandas de Paredão estão engatinhando para isso. À medida que a branquitude começa a dançar essa parada, ele começa a ser protegido. Está muito longe ainda, mas já está mudando”.
O projeto especial Som Salvador é uma realização do Jornal Correio, com patrocínio da Unipar, apoio institucional da Prefeitura Municipal de Salvador e apoio da Wilson Sons e Salvador Shopping.