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Cantos para os orixás: com toques próprios, musicalidade permite conexão com o sagrado

Orixás são reverenciados e saudados por cantigas; entenda como a música dos terreiros influenciou a música popular produzida em Salvador

  • Foto do(a) author(a) Thais Borges
  • Thais Borges

Publicado em 29 de março de 2024 às 08:00

Pai Pretinho de Iroko,  babalorixá do Ilê Axé Iroko Sun, ressalta como os atabaques
Pai Pretinho de Iroko, babalorixá do Ilê Axé Iroko Sun, ao lado dos atabaques Crédito: Marina Silva/CORREIO

O encontro do aniversário de Salvador com uma das mais importantes datas móveis do calendário teve um resultado singular. Nesta mesma Sexta-feira Santa (29) em que a cidade completa 475 anos, os principais terreiros locais guardam seu último dia do ano em silêncio. Durante o período da quaresma, pela tradição religiosa, muitas das casas de candomblé não cantam nem tocam para os Orixás.

Mas já neste Sábado de Aleluia (30), elas serão reabertas para os rituais religiosos e para a musicalidade que é tão presente nas rotinas das filhas e filhos de santo. É assim que vem sendo desde a chegada dos primeiros cultos de matriz africana à primeira capital do Brasil, quando música e candomblé passaram a andar juntos.

Sem a música, dificilmente a conexão com os orixás aconteceria. São as sonoridades produzidas por atabaques e pelas vozes do povo de santo que ajudam a promover esse elo. Não é à toa que todas as atividades no terreiro costumam ser embaladas por música, segundo Pai Pretinho de Iroko, babalorixá do Ilê Axé Iroko Sun.

"As cantigas dos orixás são uma forma de reverenciar e saudar todos eles. Cada cantiga tem um sentido, um significado. Tem a cantiga em que o orixá diz o que ele gosta, o que ele quer; tem a cantiga para o orixá quando está comendo, a cantiga para quando está recebendo suas homenagens dentro do Axé", explica.

Ao longo dos séculos, os ritmos e toques dos terreiros se tornaram ritmos e toques da cidade. Não foi inesperado, portanto, que gêneros típicos daqui como o axé, o samba de roda e o pagode tenham surgido a partir dessa influência - ou bebido amplamente dela.

Para o professor Iuri Passos, mestre em Etnomusicologia e docente do Departamento de Música da Universidade Federal da Bahia (Ufba), é do candomblé das nações ketu, angola e jeje que nasce muito da música popular brasileira. “Já parte pelos mestres, que saem do terreiro, e, com toda essa musicalidade, começam a influenciar a forma de se tocar os instrumentos de percussão da Bahia”, pontua ele, que é alabê do Terreiro do Gantois e idealizador do projeto social Rum Alagbê da casa.

Individuais

Assim como cada ritual tem um ritmo próprio, cada orixá tem seu toque e sua musicalidade específicos. Cada um desses toques têm sua vibração com os respectivos orixás. "A representatividade da música para o culto aos orixás é muito grande. O som tem uma importância muito grande na vibração, porque é esse som quem movimenta as energias", diz Mãe Angela Ferreira, yakekere (mãe pequena, um cargo que representa a segunda pessoa mais importante na hierarquia) do terreiro do Gantois.

As diferenças estão na forma como cada cantiga é tocada. "Iansã é um santo mais acelerado, quente. O toque para ela é o Ilu. Já para Oxalá, que é um santo mais velho, cansado, toca-se o Igbin. É um toque mais pausado", explica Pai Pretinho de Iroko.

Ele continua: Xangô tem o Alujá, que tem ritmo mais acelerado e com coreografias. "Para Oxum, temos o Ijexá, que é aquela coisa dócil, porque ela é a deusa do amor, da fecundidade. Iemanjá também é das águas, mas como também pode ser guerreira, os toques dela variam. Não são tão lentos quanto os de Oxum, são mais acelerados e com coreografias diferentes". O toque de Iemanjá é conhecido como Jicá.

Oxóssi, por sua vez, tem o Agueré. Como caçador que é, o orixá tem sua coreografia dialogando com o ritmo e com sua função. Enquanto isso, Omolu, orixá das doenças e da cura, tem o Opanijé, toque acompanhado por uma dança que tem intensidade rítmica.

Essas cantigas são tão poderosas que são uma das razões para que os filhos de santo entrem em transe. Quando a música toca, quem recebe o orixá sente o corpo vibrar, o coração acelerar e perde os sentidos, segundo o professor Iuri Passos, da Ufba, e alabê do Gantois. Ele explica que essas sensações começam a acontecer antes mesmo de a pessoa se iniciar no candomblé.

"A música, na verdade, é o que faz com que o orixá se manifeste na pessoa. O orixá começa a responder mesmo antes de a pessoa ser iniciada. Essa relação é complexa e é muito forte".

Instrumentos

Já o toque dos instrumentos é a entoação para chamar as entidades. Através dele, é possível convidar o orixá para perto ou para dentro do terreiro. E, assim, há desde as cantigas que só podem ser cantadas dentro da casa, entre os iniciados, até aquelas que podem ser performadas no barracão, em festas públicas e eventos abertos.

Para cada situação, há uma música - assim como uma melodia, um ritmo e um significado. "Todos nós temos toques na vida para tudo. Os orixás também têm os toques deles", explica Pai Pretinho. Em um evento, é certeza que as cantigas e ritmos estarão lá. "Ninguém faz festa sem música", acrescenta.

Para tanto, há os instrumentos de fundamento - chamados assim por representarem a força dos orixás e terem seu conhecimento transmitido entre as gerações - e os tambores. "Com esses adereços, se chama o orixá. Se sacode o adjá para chamar o orixá. Quando é para chamar um orixá como Oxalá, não se usa ele, usa o sininho. E Xangô, por ser rei, tem o xeré, que só quem segura são os obás de Xangô", diz o babalorixá.

Pai Pretinho mostra o xeré e o adjá, instrumentos sagrados
Pai Pretinho mostra o xeré e o adjá, instrumentos sagrados Crédito: Marina Silva/CORREIO

Há, ainda, os três atabaques e o agogô. Os atabaques dividem-se em rum (o maior e mais grave); rumpi (o médio) e lé (o menor e mais agudo). O agogô, que é uma espécie de sino (ou um grupo de sinos) de ferro, se tornou comum em gêneros musicais como o samba e o pagode.

"Todos esses instrumentos são sagrados e levam preceitos. Eles ficam guardados em um quarto, cobertos de branco. Só folgamos o couro para não deixar apertado", completa.

A comunidade tem momentos em conjunto em que todos no terreiro cantam. Por outro lado, há cargos especiais para cantar para os orixás. Ogãs em geral, homens que têm esse cargo e permanecem lúcidos durante os rituais, também podem entoar cantigas. Mas há uma pessoa definida - o alabê, um tipo de ogã -, que faz parte da casa, mas que também tem esse título para a música e pode tocar os instrumentos.

De acordo com Mãe Ana de Xangô, ialorixá do Ilê Axé Opô Afonjá, esse indivíduo é alguém que foi consagrado para chamar os orixás para a terra e conduzir tanto para a dança quanto para o toque.

"Ele vai desenvolver esse toque, esse ritmo, essa melodia. É a pessoa que tira a cantiga e canta também o refrão, acompanhado por todos ali, juntamente com os que são simpatizantes da religião, cantar e homenagear", explica, citando também a festa para cada orixá.

Aprender as cantigas é algo que acontece a partir da vivência. Mãe Ana destaca que, para que alguém saiba acompanhar ou responder às cantigas de cada contexto, deve ter convivido com as tradições do terreiro, inclusive as hierarquias.

"Se você vivencia a sua casa, você vai aprender as tradições, os comportamentos, a troca de reverência, o respeito. E a cantiga, que é a música para nós, é essencial para todo esse processo. Você vai aprender desde criança. Ela é educada, ela é preparada para aquilo e o aprendizado gradativamente. Essa cantiga nada mais é uma característica da nossa casa".

Mãe Ana de Xangô, do Ilê Axé Opô Afonjá
Mãe Ana de Xangô, do Ilê Axé Opô Afonjá Crédito: Marina Silva/CORREIO

Mas, de fato, não é um processo fácil. As cantigas são em iorubá (no caso do candomblé ketu) e, para completar, há cada vez menos famílias morando nos terreiros, o que permitia uma vivência maior das rotinas da religião, por parte das crianças. De acordo com o professor Iuri Passos, da Ufba, pode levar até 20 anos para formar um alabê.

Nesse tempo, a pessoa precisa aprender as cantigas para todos os orixás, além das que são cantadas e tocadas durante os outros processos de cada casa.

"Vem tendo uma uma dificuldade justamente porque a mão de obra está cada vez sendo menor. Muitos conhecem o terreiro já adolescente ou adultos, então com o avanço da tecnologia, temos outras informações que tiram nossa atenção e direcionam nosso olhar para outro lugar", analisa.

Foi sentindo essa tendência na dificuldade do ensino dos ritmos do candomblé que ele criou o projeto Rum Alagbê no Terreiro do Gantois, em 2001, que coordena até hoje. "Quando não está tendo festa, apesar de a música ser constante, nem sempre a gente pode tocar nos instrumentos sagrados, então você vai tocando aqui e ali, mas não é a forma correta. Você aprende mesmo e pega no tambor quando você está no calendário litúrgico, quando está tendo festa".

Um dos músicos que aprendeu o ofício no terreiro é Ricardo Costa, que toca para artistas como Marcia Short e Lazzo Matumbi além de dar aulas na Fundação Cultural do Estado (Funceb).

Hoje com 50 anos, ele começou a tocar percussão aos três anos, no Terreiro Tombenci, onde é xicarangoma (como é chamado o alabê nas casas da nação angola). "A música é minha religião, modo de vida e profissão. A música me transmite paz", diz.

Continente

As bases para essa relação com a música ser tão forte com as religiões em Salvador, contudo, vêm de muito antes de a cidade sequer existir. Para alguns, inclusive, essa musicalidade pode ser considerada uma das características fundantes do município.

Isso porque, na África, as raízes do culto que deu origem ao que viria ser o candomblé no Brasil têm a mesma proximidade com a música. No Ifá, religião tradicional iorubana, as cantigas têm função espiritual e social, como explica a sacerdotisa ìyánífá Anikeade Ayoh'Omidire, doutora em estudos literários afro-brasileiros, lusófonos e de gênero e orientadora pedagógica do curso de língua, literatura e cultura iorubá da Ufba.

Vivendo entre a Nigéria e a Bahia, Anike consegue ver as semelhanças entre o que é cantado aqui e lá. Para ela, as mães e os pais de santo aqui são os principais responsáveis pela preservação da herança de matriz africana. Isso porque, como ressalta Anike, os orixás na Nigéria são os mesmos do Brasil.

"Já passei a festa de Xangô em uma casa de candomblé em São Cristóvão e vi que todo o processo, todos os elementos, os tambores, estavam presentes. Eu me arrepiei mesmo. Falei: 'meu Deus, quando a gente começa a cantar para nossa mãe Oxum é a mesma coisa”.

As canções são também uma identidade cultural. Assim como acontece em Salvador, elas estão presentes em processos como o batismo e a iniciação. "Tem a função de mostrar a nossa vivência, também de edificação espiritual para alinhar com os nossos orixás e de preservação da cultura. Todos os elementos e as palavras nas canções são iguais aos valores tradicionais da nossa cultura", explica.

Além dos mesmos orixás cultuados aqui, a religião tradicional iorubana também toca para Ifá, mensageiro que é porta-voz dos orixás e de Onrumilá, o orixá da profecia. Suas cantigas são sempre acompanhadas pelo agogô, o que também revela que os instrumentos são semelhantes.

Cantiga para a cidade

Salvador já se comunicava com quem aqui vivia ou chegava desde sua fundação. Mãe Ana de Xangô acredita que a vista da Baía de Todos os Santos e do mar foi determinante quando os portugueses chegaram aqui. A relação com as águas - sejam doces ou salgadas -, portanto, não pode ser desprezada.

Por isso, ao pensar em quais cantigas para orixá poderiam se relacionar com a cidade, ela não teve dúvidas. "Tem a conexão de Oxum e Iemanjá, então Salvador é uma cidade que vejo, por exemplo, caminho de uma miscigenação, de convivência, vivência e tradição. A resposta disso vem até mesmo pelo nosso turismo. Vou acreditar que é uma cidade mãe, que acolhe aqueles que procuram".

Pai Pretinho de Iroko acredita que a cantiga de presente para Salvador também é referente a Oxum. "Gerônimo fez aquela música de Oxum porque quem trouxe nossa vivência foi Oxum, porque se atravessou o mar", diz, mencionando a canção É D'Oxum, considerada uma das principais obras da música baiana.

Para a yakekere do Terreiro do Gantois, Mãe ngela, Salvador está muito vinculada ao Senhor do Bonfim. Por isso, é possível pensar em uma sintonia com Oxalá. “Embora cada um seja cada um, podemos pensar em cantar para Oxalá e também para Oxum”, opina.

Popular

Se Salvador é uma cidade negra, para Mãe Ana, do Ilê Axé Opô Afonjá, essa representatividade vem da musicalidade da África. Dela e de seu conjunto, viria a energia que torna Salvador tão festiva. Nas festas populares tradicionais, não há como ignorar a presença do toque da percussão, do agogô e da cabaça.

O fato de que muitos cantores e compositores dos gêneros musicais baianos seguirem religiões de matriz africana é citado por ela como um dos principais responsáveis para essa unificação.

"Se eu tenho algo da essência do axé, posso fazer uma leitura dessa linguagem e trazer para a música popular. Essa essência é levada gradativamente e se torna característica da gente, mas não deixa de estar presente em cada estilo, como o frevo, o maracatu do Maranhão, cita".

O ijexá, inclusive, que é o toque de Oxum, se tornou um dos mais conhecidos fora dos terreiros devido aos blocos afro e afoxés que saem no Carnaval de Salvador.

Para o professor Iuri Passos, da Ufba, a influência da música de terreiro na música popular é uma certeza. "Todos esses ritmos influenciam várias levadas e continuam influenciando como Timbalada, Olodum até o próprio até o próprio pagode".

O projeto especial Som Salvador é uma realização do Jornal Correio, com patrocínio da Unipar, apoio institucional da Prefeitura Municipal de Salvador e apoio da Wilson Sons e Salvador Shopping.