Vida, essa eterna loteria

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  • Da Redação

Publicado em 15 de abril de 2023 às 16:00

- Atualizado há um ano

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  É de Woody Allen essa frase que, de tanto repetida, já virou um pouco clichê: “Se você quer fazer Deus rir, conte a ele seus planos”. Não deixa de ser um aforismo certeiro, como tantos outros do cineasta. Fazer planos, seja para a próxima semana ou para a próxima década, é ignorar voluntariamente a imensurável força do acaso. É acreditar que temos algum controle sobre o desenrolar das nossas vidas. Não temos. Vidas são avalanches. Podem tanto desabar montanha abaixo e não fazer mal algum quanto levar a reboque pessoas, casas, vilarejos.

  Em todo aquele episódio devastador do ataque à escola infantil em Blumenau, a tragédia individual que mais me comoveu foi a da criança que havia sido adotada um ano antes por duas mães. Uma delas disse: “Nossa vida estava completa”. Enzo era o nome do garotinho. Provavelmente era muito amado e se poderia dizer que havia tirado a sorte grande, ao contrário de muitas crianças que não conseguem ser adotadas ou são destinadas a lares nos quais não se adaptam.

  Recordo o verso de uma canção recente de Caetano: “Enzo Gabriel, sei que a luz é sutil. Mas já verás o que é nasceres no Brasil”. Era mesmo preciso que o pequeno Enzo catarinense experimentasse da forma mais brutal o que é nascer no Brasil? O que significa nascer e viver no Brasil hoje? Como chegamos tão baixo? Mas não, não quero falar dos motivos que nos levaram a importar o pior dos hábitos norte-americanos. Todos sabem – ou deveriam saber – quem são os responsáveis por essa escalada de ódio. Basta fazer uma retrospectiva dos últimos 4 anos.

  Volto a me debruçar sobre a aleatoriedade dos acontecimentos que, feito carros desgovernados, desferem pancadas muitas vezes letais na vida que tentamos a muito custo edificar. O tal imponderável, que chega sem pedir licença e instala o caos onde antes havia um mínimo de ordem e previsibilidade: um câncer em estágio avançado recém-descoberto, um carro na direção contrária dirigido por um bêbado, um encontro indesejado com um estuprador ou um homicida. É quando descobrimos que a redoma com que tentamos proteger a nós mesmos e a quem amamos é feita, claro, de vidro.

  Philip Roth, um dos maiores escritores dos últimos 100 anos, foi um mestre em descrever essas vidas arruinadas por acontecimentos sobre os quais não têm controle algum. Como o Sueco Levov de Pastoral Americana, seu melhor romance, cuja trajetória bem-sucedida vai sendo aos poucos aniquilada pelos atos incompreensíveis da filha. Ou o zeloso Bucky Cantor de Nêmesis, derradeiro romance do autor, atormentado pela epidemia de pólio na América dos anos 50. Roth defende que não existe lógica na escolha dos que vão sofrer, a não ser a lógica perversa do acaso, tão aleatória e cruel como uma bala perdida.  

Tanto Levov quanto Cantor quiseram abarcar mais do que eram capazes de suportar. Não faziam ideia de que, como disse Borges, a máquina do mundo é complexa demais para a simplicidade dos homens. “Você acha que pode proteger uma família e não pode proteger nem a si mesmo”, lamenta o personagem de Roth nas páginas finais de Pastoral. Mas é ao final de Homem Comum, outro estupendo romance de um autor prolífico na arte de escrevê-los, que se encontra a essência da vulnerabilidade de todos nós que, em um breve intervalo no curso do universo, habitamos este vale de lágrimas.

  Com lucidez implacável, Roth narra o processo de declínio de um homem e sua luta contra a doença e a morte. Cada resultado ruim num exame implica um desânimo, uma sensação de impotência que não cessa, embora vez por outra pipoquem espasmos de entusiasmo. Até que, enfim, chega a hora de dar adeus: “Ele perdeu a consciência, sentindo-se longe de estar derrubado, de estar condenado, ansioso para realizar-se mais uma vez, e no entanto nunca mais despertou. Parada cardíaca. Deixou de ser, libertou-se do ser sem sequer se dar conta disso. Tal como ele temia desde o início”.

  Levando tudo isso em consideração, por que prosseguimos idealizando e compartilhando os nossos planos? Morar em outro país, trocar de casa, ter mais um filho, fazer um doutorado, escalar o Everest. Porque sem eles a vida simplesmente se exaure na mesmice e na ausência de sentido. Além do quê, muitas vezes alguns desses planos acabam por se concretizar. E se a vida é essa loteria eterna a que nunca nos acostumamos, ao menos há o consolo de termos conquistado o prêmio principal: estarmos aqui.