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Variações de uma mesma obsessão

Acho que foi Gabriel García Márquez quem afirmou que um autor escreve sempre o mesmo livro, ainda que esse livro tenha diferentes títulos e enredos

  • Foto do(a) author(a) Paulo Sales
  • Paulo Sales

Publicado em 25 de maio de 2024 às 05:00

Pouco antes de começar este texto, minha filha veio até mim e perguntou qual seria o tema da crônica. Ela mesma adiantou, sorrindo: “Já sei, alguma coisa sobre memória, finitude, passagem do tempo, não é?”. Respondi que sim, também sorrindo, embora ainda nem soubesse direito sobre o que iria escrever. Sou um monotemático assumido e ela conhece bem as obsessões que me movem, daí sempre me provocar com essas brincadeiras. Minha filha voltou para o seu quarto, me deixando só com a tela em branco e Glenn Gould tocando as Variações Goldberg de Bach no som. Nesse momento, me vieram à mente, em sequência vertiginosa, momentos da nossa vida juntos.

Lembrei do dia em que ela chegou em casa, recém-nascida, e de como apareceram na mata em frente ao prédio uns macaquinhos de pelo esverdeado que só vi por lá nesse dia. Era como se tivessem vindo saudá-la e de certa forma abençoá-la. Lembrei também de quando, ainda bebê, ela chorava no berço e eu a coloquei na cama com a cabecinha em meu braço, fazendo com que adormecesse logo. Lembrei, ainda, da noite em que assistimos ao filme Procurando Nemo. Eu chorava tentando esconder dela os soluços, sentindo falta do meu pai que morrera semanas antes. Ela então me abraçou distraída, como se me acalentasse, e disse: “Papai, eu te amo”.

Acho que foi Gabriel García Márquez quem afirmou que um autor escreve sempre o mesmo livro, ainda que esse livro tenha diferentes títulos e enredos. Eu, mero escrevinhador, componho sempre a mesma crônica a cada 15 dias, ainda que os assuntos versem sobre tragédias ou poemas, injustiças ou alumbramentos. São variações de um mesmo tema captadas pelas lentes do espanto permanente e das reminiscências pessoais (como as do parágrafo anterior), filtros que revelam um jeito muito peculiar de enxergar a vida.

Em um de seus Cadernos, José Saramago escreveu: “Fisicamente, habitamos um espaço, mas, sentimentalmente, somos habitados por uma memória. Memória que é a de um espaço e de um tempo, memória no interior da qual vivemos, como uma ilha entre dois mares: um que dizemos passado, outro que dizemos futuro. Podemos navegar no mar do passado próximo graças à memória pessoal que conservou a lembrança das suas rotas, mas para navegar no mar do passado remoto teremos de usar as memórias que o tempo acumulou, as memórias de um espaço continuamente transformado, tão fugidio como o próprio tempo.”

Curioso o que diz Saramago, pois quando converso com minha mãe, já octagenária, percebo que as rotas que ela traça rumo ao passado mais remoto estão perfeitamente desobstruídas, feito um catamarã singrando um mar plácido com vento a favor. Já as incursões pelo passado mais recente parecem tortuosas, como um barco desafiando ondas e rochedos em noite de tempestade. Seu mundo de hoje é habitado por um ontem longínquo, inacessível para mim e anterior ao dia em que nasci, mas vívido dentro dela: uma casa grande, sombras cambiantes nos quartos, bichos no quintal, cheiro de comida e pairando sobre tudo a ternura do pai que a amava.

Será que repito involuntariamente com minha filha o amor que minha mãe recebeu do seu pai? Estamos condenados a replicar ao infinito o afeto e o sofrimento dos que vieram antes? Recebemos no berço uma mesma carta náutica, com as navegações que iremos empreender ao longo da vida já previamente definidas? São indagações cujas respostas minha mente ordinária não consegue conceber. Sei que muito do que somos vem de longe: uma tendência à melancolia, uma introspecção, um cruzar de pernas e um jeito de amar que não brotou em nós, assim como herdamos um nariz adunco, um coração frágil ou uma doença reumática.

Glenn Gould gravou as Variações Goldberg em diferentes períodos da sua vida: a primeira em 1955 e a segunda, que escuto agora, em 1981, um ano antes de morrer. Tinha respectivamente 23 e 49 anos. A ensandecida versão da juventude é sobretudo um prodígio de técnica, fruto de uma entrega física e mental que dá a impressão de esgotá-lo. Já a da maturidade, serena e contemplativa, provoca uma valorosa sensação de transcendência. É a minha preferida.

A distância de 26 anos entre as duas Variações soa como uma amostra da breve eternidade contida em cada ser humano. Parecem dois músicos distintos a navegar sobre as intrincadas rotas deixadas por Bach. O ímpeto irrefreado em um, aquele que tinha a vida pela frente, acaba sobrepujado pelo comedimento no outro, que talvez vislumbrasse o fim se avizinhando. Ouço neste momento um trecho particularmente comovente das Goldberg. Imagino Gould debruçado ao piano, tentando em vão driblar a própria morte. Raríssimos são aqueles que se despedem da vida de maneira tão sublime.