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Publicado em 22 de dezembro de 2024 às 08:31
Norman Mailer escreveu, em Os Nus e os Mortos, que o estado natural do homem do século 20 é a angústia. Curioso que seja assim. A despeito das carnificinas e dos totalitarismos, vivemos nos últimos 125 anos a consolidação do conceito de livre-arbítrio para grande parte dos homens e mulheres do planeta. Um processo obviamente desigual, mas que, ao menos nos países mais avançados, possibilitou a derrocada definitiva da escravidão, a redução das desigualdades sociais (ainda abissais) e o florescer das mudanças comportamentais, dando fim a casamentos arranjados e abrindo caminho para a revolução sexual.
Bem ou mal, o mundo globalizado e conectado permitiu que a mobilidade social se tornasse menos engessada e as democracias liberais se solidificassem, ainda que paire sobre tudo isso a sombra do retrocesso. Por que, então, a angústia converteu-se em nosso estado natural? Afinal, hoje temos os meios necessários para, em tese, tomarmos as decisões que julgamos acertadas e segurarmos com firmeza as rédeas do nosso destino. Qual a origem dessa angústia? Seria justamente o fato de sermos dotados de livre-arbítrio e não mais títeres nas mãos de deuses onipotentes? Sermos donos da nossa vida e, por outro lado, da nossa morte?
Talvez seja um fardo pesado demais para o homem comum suportar. Saber-se finito, ver-se à mercê da decrepitude, sentir-se incapaz de corresponder aos crescentes ideais de felicidade da vida contemporânea. Numa crônica publicada em 1972 no Jornal do Brasil, Clarice Lispector enumerou as mais diversas causas para esse mal: “Angústia pode ser não ter esperança na esperança. Ou conformar-se sem se resignar. Ou não se confessar nem a si próprio. Ou não ser o que realmente se é, e nunca se é. Angústia pode ser o desamparo de estar vivo. Pode ser também não ter coragem de ter angústia – e a fuga é outra angústia. Mas angústia faz parte: o que é vivo, por ser vivo, se contrai.”
Angústia que se traduz em depressão, eu acrescentaria. A grande enfermidade desse primeiro quarto de século tão pródigo em colapsos emocionais. Química desordenada que aniquila tudo ao redor. “Na minha alma chove todos os dias”, já escreveu Dalton Trevisan. Uma definição precisa, mas que não abarca ou desvenda as causas dessa tempestade ininterrupta. Há algo no mundo moderno que paralisa e corrói, nos impedindo de prosseguir. Estamos nos tornando cronicamente infelizes?
Parece evidente que a hiperexposição trazida a reboque pelas redes sociais desempenha um papel importante nesse processo. Onde inserir a melancolia nossa de cada dia naquela profusão de corpos esculpidos e sorrisos de hálito puro, viagens e carrões, relacionamentos ideais e carreiras bem-sucedidas? Mesmo que ao final tudo pareça tão postiço, as comparações podem gerar um efeito devastador em almas que se confrontam com o próprio vazio e a própria mediocridade. “De que me vale o livre-arbítrio se é para viver esta vida de merda”, devem confessar em seu íntimo.
Porque a vida é mesmo uma aventura no escuro. Raros são os que ganham o suficiente para uma existência confortável, têm relacionamentos harmoniosos e enriquecedores, viajam para os lugares que sonham conhecer ou se dedicam ao que consideram primordial. Tateamos sem saber como atingir a tal propalada felicidade, ou sequer compreendemos do que ela é feita. No livro póstumo O Sentido da Vida, o psicanalista Contardo Calligaris defende que a felicidade é um estado inatingível. E que o mais importante seria cultivar “uma vida interessante”.
Para Calligaris, “a vida é a obra de arte de cada um, a mais importante, a mais valiosa e talvez também a única. A experiência da vida é uma experiência criativa de uma obra de arte. A vida de cada um de nós é sua obra de arte”. E completa: “O sentido da vida é a própria vida concreta. A que vivemos e da qual faz parte também morrer”. Tendo a concordar com ele.
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Esta semana, uma leitora simpática e atenta me mandou uma bonita mensagem de fim de ano: “Mesmo que você não tenha apego à religião, quero desejar um Natal cheio de afeto junto à família. E um 2025 com excelentes leituras, inspiração para escrever e saúde”. Fiquei enternecido. Mesmo sendo ateu, compartilho alguns valores fundamentais pregados pelas religiões, como a compaixão, a humildade e o perdão. Tento exercitar esses valores nas crônicas que escrevo e na vida cotidiana, muitas vezes sem sucesso. Agradeço a essa leitora pela mensagem e aproveito para desejar a ela e aos que me leem neste cantinho uma “vida interessante”. No próximo ano e em todos os outros.
Paulo Sales é escritor e colunista do correio