Cadastre-se e receba grátis as principais notícias do Correio.
Paulo Sales
Publicado em 10 de fevereiro de 2025 às 05:00
Mesmo passados alguns meses, a corajosa decisão de Antonio Cícero em tirar a própria vida permanece me assombrando. Porque sempre acabo me colocando no lugar dele, tentando entender suas motivações para além das que elencou em sua lúcida mensagem de despedida. Aos 79 anos, Cícero optou por morrer enquanto tinha as faculdades mentais preservadas. Poderia esperar mais? Possivelmente sim. Mas a ideia de se encontrar despido da consciência devia horrorizá-lo. >
Nos 15 meses que separaram o diagnóstico da doença do ato de suicídio propriamente dito, Cícero vivenciou os estragos do Alzheimer no seu cotidiano. Estava dando adeus ao que sempre prezou e cultivou: o prazer do conhecimento, da criação, dos afetos e da aventura de desbravar novas cidades ou desfrutar daquela em que vivia. “Não consigo me concentrar nem mesmo para ler, que era a coisa de que eu mais gostava no mundo”, escreveu em sua última mensagem.>
Poeta, filósofo e letrista, Cícero sorveu a vida como poucos e, naquele momento crucial em que tomou a decisão definitiva, deve ter feito um ajuste de contas consigo e concluído que o balanço final lhe era positivo. Ainda se deu ao luxo de, acompanhado do marido, se despedir do mundo com alguns dias perambulando por Paris antes de embarcar para Zurique, onde praticou a morte assistida na Dignitas, associação que o auxiliou em todo o processo. Despediu-se dos mais próximos e ingeriu a substância que o levaria suavemente à inconsciência em pouco menos de uma hora.>
Sua renúncia a enfrentar anos e anos de sofrimento, após uma vida longeva e produtiva, foi absolutamente legítima. Cícero foi um privilegiado. Afinal, poucos são aqueles capazes de determinar o momento em que a própria existência deixa de fazer sentido e é melhor abandoná-la. Ao fim da vida, a maioria de nós se vê engolfada por uma avalanche de obscuridade e mal se dá conta do que acontece: doenças graves e crônicas, depressão, decrepitude física, confusão mental, perda de parentes queridos e por aí vai. Faltam discernimento, capacidade intelectual e mesmo serenidade e sabedoria para dar o passo derradeiro rumo ao oblívio.>
Pedro Almodóvar aborda questões semelhantes em O Quarto ao Lado. Estamos no mesmo terreno da coragem, do estoicismo e da sensatez diante da morte e do sofrimento extremo que a precede. Diferentemente do que ocorreu a Cícero, a personagem de Tilda Swinton padece de um câncer terminal que provocará dores excruciantes e perda progressiva da qualidade de vida. Em ambos os casos, resta a certeza de que não há caminho de volta.>
No romance O Mar, John Banville escreveu: “Talvez a vida toda não passe de uma longa preparação para o momento em que devemos deixá-la”. Penso que a vida é muito mais do que isso, embora a afirmação de Banville faça sentido. Assistimos primeiro ao fim dos velhinhos da família, que aos nossos olhos nunca foram jovens. Depois, observamos a decrepitude de quem amamos: nossos pais, mães e parentes mais próximos. Então, em determinado trecho da viagem, chega a nossa hora de encarar o mais duro dos dilemas. Nesse momento, quem não se preparou entra em parafuso. Mas como se preparar?>
Completei 55 anos no início desta semana e não me sinto nem um pouco preparado. Espero, nos próximos anos, me manter o mais longe possível das UTIs de hospital, das salas de cirurgia, dos prognósticos sombrios, das sessões de quimioterapia e dos tratamentos invasivos e dolorosos. Creio que se tiver condições semelhantes, tomarei a mesma decisão de Antônio Cícero e da personagem de Swinton. Por que sofrer e fazer quem nos ama sofrer também, em nome de um apego a algo que, no fundo, sabemos que está se esvaindo a passos de lebre?>
Tudo se torna mais complicado, evidentemente, quando não há por perto uma associação como a Dignitas, que oferece toda assistência a quem deseja ir embora – e cobra um valor significativo por isso: morrer suavemente e com toda segurança custou a Cícero 11 mil euros. O suicídio assistido não é legalizado no Brasil e em muitos outros países, e não tenho opinião formada sobre o assunto.>
Em geral, enxergo a liberdade individual como um valor absoluto, mas esse é um tema que exige reflexão coletiva (desde que despida de preconceitos e pressões religiosas).>
Imagino um homem velho e doente sendo sustentado por uma família que não o estima. Um pai que nunca demonstrou afeto ou foi solidário com os filhos. Provavelmente seria coagido a aceitar o suicídio assistido, ainda que de forma velada. Ao contrário do livre-arbítrio a que Antonio Cícero teve direito, não há nada de libertário nesse ato.>