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Paulo Sales
Publicado em 14 de setembro de 2024 às 05:00
Morto em abril deste ano, Paul Auster discorre em seu derradeiro romance sobre perda, luto e saudade. Baumgartner é um pequeno e precioso ensaio que fala da incompletude do amor, por mais que tentemos protegê-lo, criar em torno dele um invólucro invulnerável. Segundo Auster, o sofrimento causado pela perda de alguém querido se assemelha a uma amputação. Pessoas que perdem braços e pernas continuam a sentir dores, coceiras e espasmos no membro inexistente, como se ele ainda estivesse preso ao corpo.
Essa foi a analogia encontrada por Sy Baumgartner, personagem que dá nome ao livro, para tentar compreender o próprio infortúnio. Já no outono da vida, ele se encontra esfacelado por uma ausência de mais de 10 anos. Qual o sentido de prosseguir sem Anna? Foi com ela que dividiu camas, mesas e casas e compartilhou conversas, planos, realizações, frustrações e tudo mais que compõe a vida em comum. Anna se foi de maneira banal, num último mergulho no mar bravio em um fim de tarde, surpreendida por uma onda que partiu sua coluna. A Baumgartner restou uma existência opaca, difusa, unidimensional, como dirigir na neblina.
“Num instante, os membros dele tinham sido arrancados, todos os quatro, braços e pernas juntos e ao mesmo tempo. E, se sua cabeça e seu coração haviam sido poupados do ataque, era apenas porque os deuses perversos e zombeteiros lhe tinham concedido o direito duvidoso de seguir vivendo sem ela. Agora ele era nada mais que o toco de um homem, um homem que perdera aquela metade de si que o fazia inteiro – e, sim, os membros perdidos ainda estavam lá, ainda doíam, doíam tanto que por vezes sentia que seu corpo estava prestes a pegar fogo e ser consumido ali mesmo.”
Auster/Baumgartner leva adiante suas reflexões: “Pensou nas mães e pais que choravam a perda de filhos, crianças que choravam a perda de pais, mulheres que choravam a perda de maridos, homens que choravam a perda de esposas – e como seus sofrimentos se assemelhavam aos efeitos posteriores à amputação, pois o braço ou a perna antes pertencia a uma pessoa viva, e quem ficava descobria que a parte que foi amputada, aquela parte fantasma de seu ser, podia ainda constituir uma fonte de dor profunda e impiedosa.”
Chico Buarque se vale da mesma analogia na canção Pedaço de Mim, embora se refira especificamente à perda de um filho. A metade afastada, exilada, arrancada, amputada, adorada. A saudade que é o revés de um parto e dói latejada, como uma fisgada no membro já perdido. Tanto Chico quanto Auster desvelam a magnitude da desdita que é ser a parte que ficou, e não a que foi embora. Permanecer é um padecer sem fim quando aquilo que nos faz florescer, nosso passaporte para a plenitude, se extingue. “Um barco sem mar. Um campo sem flor. Tristeza que vai, tristeza que vem”, como escreveu Vinicius em Samba em Prelúdio.
Mas Auster discorre também sobre a arte de sobreviver. Ainda que involuntariamente, Baumgartner encontra meios, prazeres e significados para prosseguir. Mesmo aos 72 anos, mesmo quando tudo parece carecer de motivação. Aos poucos reconstrói a sua vida, ou tenta reconstruir. Seu reerguer claudicante nos comove, comprovando que por vezes é possível ultrapassar um umbral e reencontrar um pouco de chama.
Na vida real nem todos conseguem. Lembro do filósofo francês André Gorz, que optou por não sobreviver à doença terminal da mulher, Dorine, com quem viveu por 58 anos. No breve e pungente Carta a D., seu testemunho final, ele relata: “Sinto em mim, de novo, um vazio devorador, que só o seu corpo estreitado contra o meu pode preencher”. Ambos deixaram o mundo por conta própria, porque a vida para ele era incompatível sem sua outra metade.
Já Julian Barnes fala, em Altos Voos e Quedas Livres, do luto espesso e intransponível que se seguiu à perda da mulher, Pat Kavanagh, com quem viveu por quase 30 anos: “Imaginamos que lutamos contra ele, que fomos objetivos, que superamos a tristeza, que limpamos a ferrugem da nossa alma, quando o que aconteceu foi que o luto foi para outro lugar, mudou de foco. Não fomos nós que fizemos as nuvens chegarem, para início de conversa, e não temos o poder de dispersá-las.”
Voltando ao terreno da ficção, penso em A Trégua, de Mario Benedetti. Difícil encontrar relato mais devastador. Ali estamos diante da dor suprema, infligida a uma alma cinzenta que, por um breve momento, se viu tragada pela luz: “É evidente que Deus me concedeu um destino escuro. Nem sequer cruel. Simplesmente escuro. É evidente que me concedeu uma trégua. A princípio, relutei em acreditar que isso pudesse ser a felicidade. Resisti com todas as minhas forças, depois me dei por vencido e acreditei. Mas não era a felicidade, era apenas uma trégua. Agora estou outra vez metido em meu destino. E é mais escuro do que antes, muito mais.”