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Os outros filmes da minha vida

Foi no Tupy que, ainda criança e levado por meu pai, assisti com meus irmãos aos primeiros filmes da minha vida numa tela grande: Tentáculos, sobre um polvo assassino

  • Foto do(a) author(a) Paulo Sales
  • Paulo Sales

Publicado em 8 de dezembro de 2024 às 02:00

Recentemente, um amigo comentou comigo que precisava ir à Baixa dos Sapateiros trocar um produto que ele havia comprado lá. E que aproveitaria para empreender novamente uma breve e nostálgica viagem ao seu passado, passando na porta dos cinemas que ele frequentou assiduamente na juventude: Tupy, Jandaia, Pax e Aliança. Dos quatro, apenas o Tupy permanece em funcionamento, embora seja hoje um reduto para encontros fortuitos na escuridão, enquanto a tela exibe “filmes adultos”.

A conversa com meu amigo desenrolou um novelo de reminiscências. Foi no Tupy que, ainda criança e levado por meu pai, assisti com meus irmãos aos primeiros filmes da minha vida numa tela grande: Tentáculos, sobre um polvo assassino que no final acabava morto por duas orcas, e Os Trapalhões no Planalto dos Macacos, paródia divertida com Didi, Dedé, Mussum e Zacarias. Lembro de sair embevecido da sala e estranhar a claridade lá fora. Lembro do meu irmão mais velho comentando que as orcas não eram páreo para o polvo gigante.

Passaram alguns anos e na aurora da puberdade fui barrado na catraca do Cine Bristol, no Politeama, que depois virou Art 1 e Art 2 e hoje, se não me engano, é uma igreja evangélica. Eu e um primo fomos ver A Lagoa Azul, com censura de 14 anos. Meu primo entrou e eu, prestes a completar 12 anos, fiquei para trás junto com umas garotas também novinhas. Por sorte, o porteiro acabou nos deixando entrar logo após o início do filme. Que alumbramento foi ver Brooke Shields na telona. Aqueles olhos, aquele sorriso, aquela nudez que mal se revelava. “Ai, a primeira festa, a primeira fresta, o primeiro amor”, canta Chico Buarque em Flor da Idade.

Pote até aqui de hormônios encarcerados, eu começava a desvendar os prazeres da idade adulta. Aos 13 anos, desfrutei junto com esse mesmo primo de uma experiência cinematográfica ainda mais extasiante: conseguimos entrar num cinema em Aracaju para ver Garganta Profunda, o clássico com Linda Lovelace. Até então, nunca havia visto um filme de sexo explícito, muito menos tivera qualquer experiência sexual. Recordo a excitação quase a explodir logo na primeira sequência, seguida por um certo enfado diante da repetição mecânica das cenas.

Nesse mesmo ano, ainda lá em Aracaju dei o meu primeiro beijo numa garota chamada Cristine, enquanto o elevador subia e descia do térreo ao 12º andar. O mundo se revelava em todo seu saboroso esplendor. Fiquei apaixonado e nunca mais a vi. “Ai, a primeira dama, o primeiro drama, o primeiro amor”. Vieram outras namoradas – Carla, Suzane, Trícia, Adriana – quase todas só poeira de memória. Com algumas fui ao cinema para não ver filmes: Duna, A Missão, A Joia do Nilo…

A vida prosseguia. Pornôs no Cine Astor, cruzando a cidade de ônibus até a Rua da Ajuda. Velhas pornochanchadas nacionais na TV Bandeirantes, que via sorrateiramente na sala quando meus pais iam dormir. Até que chegou o videocassete e tudo ficou mais fácil. Passou-se um par de anos. Já saía com amigos para beber nos bares e cultivar o meu apreço pela boemia. Aos 16, frequentava o Canteiros, na Pituba, onde vi uma Daniela Mercury linda e anônima se preparar para o estrelato, enquanto especulávamos sobre o sentido da existência entre cervejas geladas e porções de calabresa e batata frita. “Ai, o primeiro copo, o primeiro corpo, o primeiro amor”.

Decifrei os mecanismos do desejo, a matemática dos amantes, a química dos fluidos e a geografia das curvas femininas. Os tempos de “só se coça e se roça e só se vicia” ficaram para trás e comecei a frequentar muito os cinemas da cidade, agora a sério. Impossível esquecer de Betty Blue, no Cine Maria Bethânia, com uma namorada encabulada com a tórrida transa logo no início entre Beátrice Dalle e Jean-Hugues Anglade. E muito menos de A Insustentável Leveza do Ser, que assistimos no chão de uma sala lotada do Cine Iguatemi e do qual saí dilacerado. Binoche e Day-Lewis, Tereza e Tomas. Ainda hoje o filme da minha vida.

Junto com os livros que lia com fervor, o cinema descortinava para mim a obscuridade do mundo, muito mais incerto e devastador do que sugeria a frívola e fugaz juventude entre beijos, botecos e banhos de mar. Um mundo para o qual eu não estava minimamente preparado e que iria me pregar peças nos anos que viriam. Mas que eu encarava estoicamente, com o auxílio luxuoso de gente como Fellini, Lynch, Allen, Scorsese, Kieslowski, Coppola e companhia.