Onde o passado pesa feito um fardo

Caminhar pelas ruas de pedra e paralelepípedo e pelas ladeiras íngremes de Ouro Preto me trouxe de volta a mesma sensação da primeira vez

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  • Paulo Sales

Publicado em 20 de julho de 2024 às 10:00

Há, em Ouro Preto, um antigo teatro chamado Casa da Ópera. Ainda funciona perfeitamente e recebe espetáculos, mesmo tendo sido inaugurado em 1770. O Brasil era então uma mera colônia portuguesa. Ao visitá-lo, fui tomado por uma valorosa sensação de transcendência. Estava só ali e meus passos ressoavam na madeira antiga. Enquanto caminhava pelos camarotes, sentava numa velha cadeira da plateia e subia ao palco, eu me sentia – guardadas as proporções – como um personagem de Os Maias ou de Anna Karenina frequentando faustosos teatros na Lisboa e na São Petersburgo do século 19. O mundo de ontem, tão parecido e tão distante do nosso.

Também lá, na antiga cidade de Vila Rica, há minas desativadas nas quais em outros tempos se utilizava mão-de-obra escrava para exploração de ouro e minérios. Entrei numa delas: espaço exíguo, úmido, claustrofóbico, sem luz natural e com ar contaminado. Garotos pretos imergiam lá dentro e choravam no breu. Tentei imaginar o pavor, o desespero, a sensação de sufocamento. Morriam muitos, provavelmente. Outros tornavam-se inválidos antes de atingirem a puberdade. Mas, para a Igreja Católica, escravos não tinham alma. Numa linha evolutiva, deviam estar na mesma prateleira dos animais e objetos.

Hoje, um guia simpático conta essa história para turistas com camisas de times de futebol e seus filhos de pele clara, que têm a mesma idade dos garotos que pereceram nas minas. Alguns sorriem embasbacados, outros tentam fazer comentários bem-humorados, mas é difícil encontrar graça num lugar como aquele. O ouro provavelmente foi parar na Europa ou orna algumas igrejas da cidade. Dos que extraíram esse ouro, não há registro. Não há nomes, retratos ou mesmo indícios do que imaginavam ser o mundo.

Demorei 32 anos para regressar a Ouro Preto. No início da década de 90, estive lá três vezes num intervalo de pouco mais de um ano. O retorno serviu para que me confrontasse com o meu próprio passado. Aquele mochileiro farrista e beberrão de 22 anos agora está casado e é pai de uma garota de 23, que ficou igualmente deslumbrada com a cidade. Restou alguma coisa desse jovem impetuoso? Talvez uma procura permanente pelo assombro, que conservo ainda hoje. Alguém já disse que não devemos voltar a um lugar onde fomos felizes, mas para mim foi muito bom retornar.

Lembrei das epifanias surgidas em noites enevoadas, do frio que acalentava, das queridas amigas mineiras com quem convivi naqueles dias. Uma delas cantava com tal delicadeza que poderia personificar os versos de Ferreira Gullar: “Sua voz quando ela canta/me lembra um pássaro mas/não um pássaro cantando: lembra um pássaro voando”. Eu ficava comovido ao escutá-la cantar, entre muitas outras, uma música de Paulinho Pedra Azul que até hoje adoro: “Onde estás, nas nuvens ou na insensatez? Me beije só mais uma vez, depois volte pra lá”.

Caminhar pelas ruas de pedra e paralelepípedo e pelas ladeiras íngremes de Ouro Preto me trouxe de volta a mesma sensação da primeira vez: a de que ali o passado pesa feito um fardo de pedra nas costas. Talvez por isso ame tanto essa cidade. Por sua ancestralidade, seu convívio harmonioso com espectros de outras eras, sua insistência em permanecer como foi em outros séculos, a despeito do barulho dos automóveis e do turismo de massa. Uma cidade assim nos ajuda a desvendar quem fomos e quem somos – como indivíduos e como povo.

Da mesma forma que os leões carregam a selva consigo, mesmo tendo nascido no cativeiro – mesmo os seus pais tendo nascido no cativeiro –, nós também carregamos no nosso íntimo uma herança que vem de muito longe e se manifesta em determinado momento de nossas vidas. Há em alguns de nós, acredito, uma nostalgia desse tempo sem tempo, desse desmundo que ficou para trás em algum período da linhagem à qual pertencemos.

Somos nós, brasileiros, herdeiros de um passado de sofrimentos, separações, diásporas, coitos forçados, casamentos arranjados, riquezas dilapidadas e sonhos aniquilados, por mais que desconheçamos tudo isso. Bandeirantes brutos, nobres falidos, imigrantes desterrados, silvícolas ingênuos, guerreiros negros expatriados. Esses são, salvo exceções, os nossos ancestrais. Três raças tristes, entre tantas outras que vieram depois, que se amalgamaram para dar forma ao que somos hoje: um povo que se julga cordial, mas é tremendamente violento. Alegre, mas terrivelmente sofrido. Pequenos heróis e anti-heróis sem nome, sem passado e sem futuro.