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O Oscar dos humilhados e ofendidos

É como um conto de Cinderela invertido: afinal, na vida real não cabe final feliz para quem está na rabeira da pirâmide social

  • Foto do(a) author(a) Paulo Sales
  • Paulo Sales

Publicado em 8 de março de 2025 às 05:00

Veio o Carnaval, foi-se o Carnaval. Aproveitei o retiro, as ruas desertas, a distância do caos. Li livros, vi filmes e, mais uma vez, não assisti à cerimônia do Oscar. Numa outra encarnação, na qual escrevia sobre cinema aqui mesmo no Correio, era uma obrigação enfadonha acompanhar as piadinhas, gafes e cafonices em profusão de um evento que há muito não levo a sério como parâmetro estético. Nem deveria levar. Basta lembrar que a estatueta de melhor diretor nunca foi concedida a Alfred Hitchcock, Orson Welles ou Stanley Kubrick. E que Taxi Driver, Rede de Intrigas e Todos os Homens do Presidente foram nocauteados em 1977 por Rocky, um Lutador.

Acompanhei, de qualquer modo, a efusiva reação coletiva à escolha de Ainda Estou Aqui como melhor filme estrangeiro. Fiquei feliz com o Oscar, até por reverberar um tema infelizmente tão atual neste país que não se emenda: a saga trágica da família Paiva e a valorosa luta da matriarca, Eunice, para perpetuar a memória do marido assassinado pelo Estado autoritário. No entanto, considero o filme de Walter Salles apenas correto. É bonito, humano e oportuno, embora aquém das suas possibilidades, sobretudo tendo como matéria-prima um livro tão contundente.

Acompanhei, também, os impropérios desferidos contra Anora, de Sean Baker, principal vencedor da noite, e contra Mikey Madison, que teria afanado de Fernanda Torres a estatueta de melhor atriz.

Antes, o alvo da overdose de ofensas virtuais enviadas por “torcedores” brasileiros tinha sido Karla Sofía Gascón, do filme francês Emilia Pérez, então considerada favorita e que acabou se complicando por conta de postagens cretinas nas suas redes sociais. Refratário a tudo que rescende a patriotismo barato, confesso que fiquei enfastiado com a torcida ufanista, nível Copa do Mundo, desde o momento em que Ainda Estou Aqui entrou na disputa pelas principais estatuetas.

Os jurados da Academia chegaram a ser acusados de “etarismo”, por supostamente terem privilegiado uma moça de 25 anos em detrimento de Fernanda, com seus 59 anos, e Demi Moore, de 62. Mas quantas atrizes tão ou mais velhas que as duas já não foram agraciadas com o Oscar? Uma pista: Frances McDormand, 67, levou duas vezes a estatueta nos últimos sete anos. E não foi a única. Um argumento risível, em suma. Mas receio que eu mesmo acabe sendo acusado de etarismo ou de não ter “lugar de fala” por conta desses prosaicos comentários pós-carnavalescos.

Vale ressaltar que a atuação de Mikey Madison é um portento: pura entrega e dor, num registro quase esquizofrênico, que oscila o tempo todo da euforia ao desespero e por fim à resignação e à desilusão. A escolha de Anora como melhor filme também não é nenhum despropósito: ele é mesmo muito bom. Não por acaso, ganhou a Palma de Ouro em Cannes no ano passado. Estamos falando de uma obra que é difícil colocar numa prateleira de gênero. Trata-se de uma comédia dramática, mas também de um drama dilacerante.

Baker nos conduz simultaneamente pelo baixo meretrício e pela alta roda, num raro momento em que os dois universos se encontram. É como se um portal se abrisse, aproximando o submundo de Anora (Madison), garota de programa numa casa de shows meia-boca, do megamundo de Ivan (Mark Eydelshteyn), herdeiro abobalhado de um oligarca russo, capaz de torrar em uma noite mais do que um trabalhador comum ganha em um ano. Através de desdobramentos inusitados e uma edição ágil e vertiginosa, acompanhamos a ascensão e a derrocada quase simultâneas da jovem prostituta.

É como um conto de Cinderela invertido: afinal, na vida real não cabe final feliz para quem está na rabeira da pirâmide social. Moça de uma esperteza quase ingênua, que acredita ter encontrado a sorte grande, Anora é mais uma entre os milhares de “losers” que tentam pôr a cabeça para fora e vislumbrar uma nesga do sonho americano. Suas desventuras nos fazem rir. Mas depois nos perguntamos: estamos rindo do quê? O que fica além do sexo como meio de sobrevivência? O que há para além do sem-fim de programas com tipos repulsivos? O que resta para alguém tão novo e ao mesmo tempo tão sem horizontes?

Junto ao grupo de escroques russos que, como ela, são também insetos esmagados pela força da grana que mastiga e deglute aspirações, Anora é só mais uma engrenagem que move a civilização rumo a lugar nenhum. O contraste entre o seu mundo e o mundo do garoto trilionário é obsceno. Ao final, o que fica é uma história tristíssima. Como é também a história de Eunice Paiva, que se depara com algo muito mais vil e poderoso do que ela. Estamos falando aqui de humilhados e ofendidos. Mas, no final das contas, Eunice poderia se considerar – e foi – uma vencedora. Anora, nem isso.