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Enquanto escalo o cume dos dias

Recordo os versos de Borges: “Dá-me, Senhor, coragem e alegria para escalar o cume deste dia”

  • Foto do(a) author(a) Paulo Sales
  • Paulo Sales

Publicado em 23 de março de 2025 às 05:00

Passo as manhãs no hospital, acompanhando minha mãe que se recupera lentamente. Sua vulnerabilidade me assombra. Foi uma mulher valorosa no seu auge e segue sendo. Já me acostumei à rotina: o café preto e sem açúcar na sala ao lado do quarto, observando nuvens, casas e prédios. A janela opaca que mal deixa entrever a luz do sol. Os botões que abaixam e levantam a cama de ferro. A profusão de enfermeiras, fisioterapeutas, fonoaudiólogas, nutricionistas e médicos de diferentes especialidades. São cordiais e atenciosos. As horas que passo lá subvertem minha percepção do dia. São como um tempo sem tempo.

Desperto a cada manhã mentalmente exaurido. Recordo os versos de Borges: “Dá-me, Senhor, coragem e alegria para escalar o cume deste dia”. Tenho tido sonhos estranhos, por vezes violentos e intempestivos. Tenho me sentido fragilizado, tenso, irritadiço. Escrevo estas frases com os olhos fechando, mas também com imperiosa necessidade de desabafar. Uma taça de vinho me acalenta agora, assim como as canções de Leonard Cohen. Acabo de escutar uma breve e linda prece: “Você me faz cantar, mesmo que as notícias sejam ruins”, “Você me faz cantar, mesmo que o mundo tenha desaparecido”, “Você me fez pensar que eu gostaria de continuar”.

Aguardo ansioso o momento em que poderei me deixar levar pelas águas do mar e descarregar a tensão das últimas semanas. Deixar que os diagnósticos, procedimentos e resultados de exames se afastem aos poucos da mente feito sargaço. Ficar impregnado de maresia. Lançar-me nas ondas brutais do Buracão e cavalgar um leão. Ir ao fundo e lá ficar, no mar do Porto da Barra, junto aos barcos e longe da areia, “olhando as gaivotas sob o sol brilhante”, como numa antiga e bonita canção de Lui Muritiba: “Entre o céu e o mar. E os maus intentos. Entre o céu e o mar. Extravasar.”

Estou lendo Meus Lugares Escuros, o doloroso acerto de contas de James Ellroy com a memória da própria mãe, morta quando ele tinha 11 anos. O assassino nunca foi descoberto. É um livro de escrita rude, quase agressiva, por vezes fria, relatorial e sem um átomo de autocomiseração. O mundo é um monstro, a julgar pelos sucessivos crimes que o autor norte-americano descreve. Como brota a brutalidade? O que a aduba? Quando ela deixa de ser mero devaneio de potenciais sociopatas para ser levada a cabo?

A ruptura e o vácuo afetivo moldaram o homem que Ellroy se tornou. Alcoólatra e viciado em drogas na juventude, encontrou na criação de romances policiais uma improvável saída de emergência que o livrou de ser enterrado em subúrbios miseráveis atulhados de vício, desesperança e misoginia. Movido pelo remorso e pela necessidade de empreender uma tardia redenção da mãe, deu forma a uma autópsia da ausência: “Sua morte define minha vida. Quero encontrar o amor que nunca tivemos e defini-lo em seu nome. Quero tornar públicos os seus segredos. Quero incendiar essa distância que nos separa. Quero lhe dar alento.”

Ao contrário de Ellroy, fui forjado em amor e superproteção. Ao contrário de Ellroy, tenho o privilégio de contemplar o suave anoitecer de minha mãe, enquanto acaricio seus cabelos e coço suas costas quando ela pede, costume que herdou do pai, meu avô que não conheci. Herdei dela o fascínio pelo mar e as noites de lua, bem como uma sensibilidade aflorada, assim como herdei do meu pai a introspecção e um caráter fugidio. Rebento de mais de quatro quilos, fui projetado como um estrondo para fora da sua barriga num hospital à beira da Baía de Todos os Santos. Ela tinha 28 anos. Hoje tem 83.

Ao longo desses 55 anos que nos unem, minha mãe se portou em vários momentos como essas feras que protegem a cria dos dissabores da natureza. Não esqueço do dia em que me colocou no carro, durante uma crise reumática aguda que tive aos 17 anos, e saiu dirigindo à toda rumo ao médico. E de como me acompanhou incessantemente a tantos outros médicos quando essa crise reumática recrudesceu anos depois, sem que nenhum deles fosse capaz de curá-la. Esteve comigo mais tarde, quando fiz uma cirurgia no quadril. Esteve comigo sempre. Agora, quando as posições no xadrez da vida se inverteram, cabe a mim dar o máximo para fazer o mínimo: retribuir.