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Eles não sabem o que fazem

Simulando ou não nossa aparência, robôs trabalharão para nós, a princípio como serventes ou seguranças, até evoluírem para tarefas de alta complexidade

  • Foto do(a) author(a) Paulo Sales
  • Paulo Sales

Publicado em 26 de janeiro de 2025 às 10:02

Tenho acompanhado o avanço da inteligência artificial no nosso cotidiano. Uma avalanche que invade diferentes flancos da sociedade, como a medicina, a comunicação, as vendas via telemarketing e as redes sociais, além da onipresença daqueles assistentes virtuais que atendem por nomes como Alexa e Siri. Contemplamos com inquietação peças de propaganda nas quais simulacros de seres humanos nos sorriem. Homens e mulheres como eu e você, embora despidos de pele, músculos, ossos e neurônios. Existem apenas na imaginação dos algoritmos de programas de última geração.

Essas “pessoas” parecem perfeitas a princípio, mas sua construção virtual ainda primitiva deixa escapar deficiências que percebemos num olhar mais atento. Algumas têm dedos a mais ou dentes a menos. Em outras, faltam orelhas ou sobram braços. São que nem as falhas na Matrix, aquelas panes na realidade que vemos no filme homônimo dos irmãos Wachowski, a mostrar que o mundo de verdade não é o que imaginamos. Correspondem, penso eu, às aberrações contemporâneas que viraram moda entre nós, humanos: harmonizações faciais, preenchimentos labiais, barrigas negativas e outras intervenções que estão nos convertendo em seres postiços.

Volto à inteligência artificial. Um processo ainda incipiente, mas que se aperfeiçoa a cada minuto enquanto roncamos à noite e que provavelmente roubará nossos empregos e nos transformará em profissionais supérfluos. Do mundo virtual, essa tecnologia em breve vai migrar para a vida real cotidiana. Simulando ou não nossa aparência, robôs trabalharão para nós, a princípio como serventes ou seguranças, até evoluírem para tarefas de alta complexidade. Em breve, nos expulsarão dos escritórios de advocacia, dos laboratórios científicos, das igrejas e até da labuta solitária de conceber um romance ou uma sinfonia. Que tipo de inspiração moverá esses novos Beethovens, Joyces e Prousts?

Num futuro não tão distante, como eles serão? Crianças rejeitadas que sonham reencontrar a mãe, como no filme A.I., de Steven Spielberg? Brutamontes prontos para nos dizimar, como em O Exterminador do Futuro? Ou andróides atormentados por memórias que derretem feito lágrimas na chuva, como o Rutger Hauer de Blade Runner? Especulo também sobre a natureza das sociedades que prevalecerão até lá. As democracias liberais vão virar um retrato na parede, substituídas por impérios totalitários difusos e sem um comando central? Seria o oposto do prenunciado por George Orwell em 1984.

Vou ainda mais longe nessa minha distopia particular: e nós, humanos, quem seremos? Ou melhor: ainda seremos? Com tantas criaturas feitas à nossa imagem e semelhança circulando entre nós, como se dará essa convivência? Serão dotados de consciência e se revoltarão contra sua condição subalterna? Aprenderão o que temos de mais vil e abjeto? Surgirão, entre eles, protótipos de Hitlers feitos de titânio e ódio, com olhos esbugalhados e bigodinho à Carlitos, dispostos a exterminar a raça humana?

No trecho final de Partículas Elementares, na qual profetiza o fim do ser humano, Michel Houellebecq nos descreve assim: “Espécie dolorosa e vil, pouco diferente do macaco, que carrega, porém, aspirações tão nobres. Espécie torturada, contraditória, individualista e briguenta, de um egoísmo sem limites, capaz, às vezes, de explosões inusitadas de violência, mas que nunca deixou de crer, entretanto, na bondade e no amor”.

Houellebecq prossegue: “Espécie também que, pela primeira vez na história do mundo, soube considerar a possibilidade de sua própria superação; e que, alguns anos mais tarde, soube colocar em prática essa superação”. Seremos, portanto, os algozes de nós mesmos? É melancólico imaginar que deixaremos o mundo para máquinas, e não para seres vivos mais evoluídos do que nós. Bem diferente daquele futuro remotíssimo que H.G. Wells idealizou em A Máquina do Tempo, habitado por seres da superfície e do subterrâneo, mas ainda assim seres de carne que descendiam de nós.

Não bastasse o legado de destruição da natureza e das outras espécies, ainda faremos essa derradeira perversidade com o planeta. Desarmado e perseguido por exércitos de metal, no que pensará o último homem da Terra em seus momentos finais? É possível que num ato desesperado ele ponha as mãos para o alto, mirando o céu indiferente, e replique a velha frase dita milênios antes por um candidato a filho de Deus: “Pai, perdoai, eles não sabem o que fazem”.