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Divagações sobre jazz, longevidade e Eunice Paiva

A tragédia dos Paiva é fruto sobretudo de um aviltamento coletivo, uma corrosão moral

  • Foto do(a) author(a) Paulo Sales
  • Paulo Sales

Publicado em 28 de setembro de 2024 às 11:00

Soube por Ruy Castro, em sua coluna na Folha, que Benny Golson se foi. Mais do que um sax tenor dos bons, foi um compositor de primeira grandeza. É dele, entre tantos outros temas, o clássico I Remember Clifford, concebido em homenagem ao maior dos trompetistas do jazz, Clifford Brown, morto aos 25 anos num acidente de automóvel. Quem ouve não fica indiferente, sobretudo quando tocado pelo conjunto de Art Blakey, tendo Lee Morgan como solista ao trompete. Toda vez que escuto, como faço agora, sinto como se me arrancassem nacos do coração.

Morto com um tiro pela própria namorada com apenas 33 anos, Morgan é mais uma das tantas trajetórias trágicas e breves que alteraram o curso do jazz no século passado. Ascendeu e sumiu de maneira vertiginosa. Como Charlie Parker, Bud Powell ou o próprio Clifford. É curioso que todos tenham morrido tão precocemente – Bud, o mais velho deles, se foi aos 41 – enquanto o longevo Golson atingiu espantosos 95 anos. Chegou a participar daquele simpático filme de Steven Spielberg, O Terminal, como o último jazzista de uma foto histórica a dar o autógrafo ao personagem de Tom Hanks.

Ah, a longevidade. Que o vinho que sorvo agora, enquanto despejo na tela essas divagações aleatórias, me permita alcançar um patamar ao menos próximo do tempo em que Benny Golson pesou sobre a Terra. Desde, é claro, que tenha plena consciência desse tempo e do papel que desempenho nessa história cheia de som e fúria que é a vida. Ou melhor: que a velhice não signifique para mim um massacre, como a ela se referiu Philip Roth em seus derradeiros anos. E aqui já enveredo por um território bem menos empolgante que falar de jazz.

Assisti na semana passada ao filme Ainda Estou Aqui, que Walter Salles adaptou da obra de Marcelo Rubens Paiva. Permanece comigo a expressão de Fernanda Montenegro nos breves minutos finais, nos quais ela encarna uma Eunice Paiva já nos estertores do Mal de Alzheimer. É uma atuação tão pungente que obscurece o resto. Apenas silêncio, vazio e alheamento, traduzidos em um olhar parvo e indiferente. Esquecida do mundo, de si mesma e da sua imensa bravura, dignidade e capacidade de adaptar-se à própria desgraça.

Para quem não sabe, Eunice foi mulher de Rubens Paiva, morto com requintes de covardia aos 41 anos pela ditadura militar, essa página infeliz da nossa história que alguns obtusos ainda insistem em glorificar. Era pai de cinco filhos, incluindo Marcelo, que o descreveu como “homem calmo, bom, engraçado, frágil fisicamente”. Eunice precisou lidar com a ausência desse homem a quem amava e com a sobrevivência das crianças, que não entendiam o que acontecia em tempos tão ásperos. Reconstruiu-se pessoal e profissionalmente, criou seus filhos, batalhou de forma exaustiva para que emergisse a verdade sobre a execução do marido pelo Estado brasileiro.

Difícil mensurar o grau de crueldade a que foi submetida no final da vida. Quando morreu – em 2018, aos 86 anos –, não pôde sequer constatar que sua missão foi cumprida com louvor. Fez a diferença, lutando à sua maneira por um país menos vil. Acompanhou seus filhos crescerem e viu o Brasil se redemocratizar. Recebeu com alegria a certidão de óbito do marido, porque aquilo representava sim uma vitória, por mais irônico que pudesse parecer. Tudo isso lhe foi subtraído. Despida de consciência, era só um tronco oco sem direito à memória.

Mas, pensando bem, será que Eunice não tinha o direito de esquecer? É possível que a opacidade trazida pela demência tenha representado para ela um alívio. Afinal, não é fácil sobreviver ao desaparecimento de um amor, à dissolução do eixo familiar e, como se não bastasse, à tragédia do filho que bem jovem se viu paraplégico. Marcelo Paiva encerra assim o seu livro, abordando a decrepitude da mãe: “Sua vida tem muitos atos. Teremos mais um. Enquanto a morte do meu pai não tem fim.”

Ainda Estou Aqui – tanto o livro como o filme – tem o papel de reconstituir e reverberar essa trajetória, reparando em parte o esquecimento involuntário da sua protagonista causado pelo Alzheimer. É uma história de família como tantas outras, mas infeliz à sua maneira, como bem definiu Tolstói na clássica abertura de Anna Kariênina. A tragédia dos Paiva é fruto sobretudo de um aviltamento coletivo, uma corrosão moral institucionalizada, uma intromissão desmedida da História no cotidiano de pessoas comuns. Eunice e seus filhos passaram a maior parte de suas vidas convivendo diariamente com esse ferimento, que nunca sarou de todo.