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Paulo Sales
Publicado em 31 de agosto de 2024 às 05:00
Um garoto de 14 anos se matou no dia 12 de agosto em São Paulo. Seu nome: Pedro Henrique de Oliveira dos Santos. De origem modesta, filho de um auxiliar de almoxarifado e uma auxiliar de limpeza, era aluno bolsista do Colégio Bandeirantes, um dos mais caros e tradicionais da capital paulista. Inteligente e esforçado, Pedro era também preto, gay e um corpo estranho entre os jovens membros da tão decantada elite paulistana. Cometeu suicídio a caminho da escola por não suportar o bullying diário dos colegas. Não foi o primeiro e certamente não será o último.
Antes de morrer, Pedro mandou mensagens desesperadas para a família, tornadas públicas em uma acurada reportagem da revista Piauí: “Fizeram chacota de mim por eu ser gay”, “Me humilharam na frente da sala inteira. Eu não aguento mais”, “Eu fiquei trancado no banheiro por 50 minutos, chorando”. Era evidente que se tratava de uma tragédia anunciada, mas os pais e sobretudo a escola e a ONG responsável por fazê-lo ingressar no Bandeirantes (após um processo de admissão dificílimo) foram incapazes de se dar conta disso.
Penso em mim mesmo aos 14 anos. Um manancial de insegurança, introspecção e inadequação ao entorno, mascarado por certa arrogância típica da idade. Criado numa redoma de superproteção por meus pais, não teria escudos para suportar um décimo do que Pedro suportou no Bandeirantes. Seria mastigado e cuspido. Mas qualquer comparação acaba aí: sei que nunca precisaria enfrentar intimidações, humilhações e agressões tão cruéis. Eu não nasci preto, não sou gay e não vim de uma família pobre. Escaparia por ser capaz de me camuflar em meio à massa amorfa, como fiz muitas vezes. Esse escudo, essa capacidade de se metamorfosear no ambiente, Pedro não tinha.
Não deixei de sofrer (e eventualmente praticar) bullying, e creio que me saí relativamente incólume dessa experiência, apesar de algumas péssimas recordações. Tive colegas de escola que foram muito humilhados. Não esqueço de um deles. Seu nome era Lisédino. Nome estranho de um garoto muito magro e introvertido ao ponto de parecer invisível. Mas não era. Por ser física e emocionalmente vulnerável, foi vítima frequente dos bárbaros em formação que proliferavam no extinto Colégio Nobel. Encontrei-o dois anos depois em outra escola, para a qual também me transferi, e ele continuava do mesmo jeito e continuava sendo sacaneado, até sair novamente.
Lembro de uma vez em que esse garoto precisou ir até a frente da sala cantar uma música, como parte de um trabalho que valia pontos. A canção era Fruto do Suor, de um grupo de música latino-americana chamado Raíces de América, mas acho que só eu e ele a conhecíamos. Ele cantava mal, a voz rouca e sem ritmo saía após esforço e concentração exaustivos. Era nítido o sacrifício que fazia por estar ali. Os outros alunos riram e eu fiquei meio encabulado, porque afinal percebi que havia algo de mim em Lisédino. Admirei e me compadeci dele naquele momento. Era só um jovem mais culto e inteligente que a maioria, mas incapaz de se valer dessas virtudes num meio que as desprezava.
Não me tornei seu amigo, até porque, na nossa estúpida ética adolescente, não era uma atitude recomendável se juntar a supostos “perdedores”. Nunca mais o vi ou soube dele, como a tantos outros que passaram por minha errática vida de estudante, incluindo os cretinos que cometiam aqueles atos atrozes. Não duvido que tenha superado esses batismos de fogo e erguido uma trajetória à altura de sua erudição.
Há quem diga que o combate ao bullying nas escolas pode acabar destruindo a imunidade natural da criança, que em tese precisaria desenvolver uma couraça para se virar na escola e depois na vida adulta. Mas, e quanto aos que não conseguem desenvolver essa couraça? Ficam à míngua? Matam-se ou transformam-se em adultos retraídos e infelizes? Sei bem o poder destrutivo da violência moral (e às vezes física) praticada contra quem carrega, como chagas, características que os tornam particularmente indefesos à insânia coletiva. E com as novas tecnologias, que viralizam fotos e vídeos “comprometedores”, o efeito torna-se ainda mais devastador.
O bullying é gestado em ambientes contaminados por visões de mundo toscas e abjetas – e talvez por isso seja tão difícil reprimi-lo. Manifestações de cunho racista, homofóbico, misógino ou de discriminação social ouvidas na infância se propagam mais tarde. Preconceito é um troço terrível, e é na adolescência que ele desabrocha, após anos sendo inoculado em nós por pais, parentes ou pessoas com quem convivemos. Tudo isso é traduzido em brutalidade e covardia, causando lesões por maus-tratos repetitivos na mente e no corpo de milhares de meninos e meninas. Um fardo que nem todos conseguem suportar. Como Pedro, que deu fim à vida ainda em sua aurora.