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Ainda estamos aqui

A história nos ensina que não é fácil iniciar uma carnificina. Mas é ainda mais difícil encerrá-la

  • Foto do(a) author(a) Paulo Sales
  • Paulo Sales

Publicado em 23 de novembro de 2024 às 07:10

Conversava outro dia via WhatsApp com um grupo de velhos amigos. Mais uma dessas discussões que seriam bem mais proveitosas se ocorressem numa mesa de bar, olho no olho, entre iscas de peixe e copos de cerveja. Um deles refletia sobre a importância do filme Ainda Estou Aqui, de Walter Salles, como emblema da época atual, independentemente do seu valor estético: “É o filme certo na hora certa: uma declaração de que não esquecemos, não perdoamos, de que estamos atentos e não vamos aceitar outra aventura autoritária de forma alguma. Uma declaração de que, de fato, ainda estamos aqui.”

É possível que meu amigo tenha razão, embora eu considere um tanto forçada essa tentativa (não da parte dele, mas de maneira generalizada) de associar o filme ao espírito do tempo que estamos vivendo. Passados alguns dias da nossa conversa, eu vou mais além: será que temos, enquanto sociedade civil organizada, essa capacidade de não esquecer e não perdoar? De estarmos atentos a outra aventura autoritária que venha a ocorrer no Brasil? Temo por nossa passividade, por nossa desunião, por nossa tendência irrefreável ao apaziguamento.

Afinal, não há sequer um consenso sobre o grau de desdita que testemunhamos e vivenciamos entre 2019 e 2022. Parte significativa dos brasileiros ainda enxerga algo de positivo em tudo aquilo, incluindo aí a devastadora experiência da pandemia da covid-19 e seus 700 mil mortos. E não adianta chamá-los de “fascistas”. É preciso entender a essência conservadora do país e como ela foi, de certa forma, raptada por facções neopentecostais e personificada em “líderes” pusilânimes.

Alguém dirá que merecemos. Merecemos o descaso com o meio ambiente, a proliferação das armas, as conspirações subterrâneas, a estupidez institucionalizada, a boçalidade orgulhosa de si mesma. E, agora sabemos, as maquinações para assassinar um presidente e um vice-presidente recém-eleitos, bem como um ministro do Supremo Tribunal Federal. Quantos outros viriam depois? A história nos ensina que não é fácil iniciar uma carnificina. Mas é ainda mais difícil encerrá-la.

Do alto de minha insignificância, eu pergunto: esses indivíduos não tinham um limite moral? Não sentem vergonha, remorso, arrependimento? Provavelmente não. E quanto a nós? Creio que não nos indignamos o suficiente, que ocupamos as ruas menos do que era necessário, que fomos tíbios e ingênuos enquanto do outro lado havia uma determinação inamovível, felizmente acompanhada de uma incompetência risível. Como deixamos essa gente abocanhar tanto poder? Um outro alguém dirá: vocês perderam e o choro é livre. Mas quem foi mesmo que perdeu? Quando Hitler ascendeu ao poder em 1933, foram seus adversários políticos que perderam? Ou toda a Alemanha?

Há dois anos tentamos prosseguir, deixar para trás a ignomínia, mas ela nos persegue como um zumbi de filmes B. Imploramos pelo retorno à normalidade, por dias mais amenos e menos ásperos, despidos dessa corja que permanece nos assombrando. Que espécie de lama movediça, de bolha assassina, de teia gigante nos aprisiona a esse período hediondo? Viramos as páginas, mas o capítulo não se encerra, como a trama de um romance ordinário que não logramos largar ou concluir. Uma história contada por um idiota, cheia de som e fúria e sem qualquer sentido.

Mario Vargas Llosa inicia o magnífico Conversa na Catedral com uma indagação do seu protagonista, o jovem jornalista Santiago Zavala: “Em que momento o Peru se fodera?”. Velho jornalista, transponho a pergunta para a nossa realidade, embora um retalho de otimismo me faça subverter a ordem temporal da frase: “Em que momento o Brasil se foderá?”. A resposta me parece clara: no momento em que não punirmos rigorosamente os criminosos que tomaram o país de assalto nos anos terríveis descritos acima. Já fomos vacilantes antes, dando salvo-conduto para carniceiros que morreram impunes, e pagamos alto por isso hoje.

É a tal “passagem desbotada na memória das nossas novas gerações”, de que fala Chico Buarque em Vai Passar. Muitas pessoas não têm a dimensão do que representou a “página infeliz da nossa história”, seja aquela escrita entre 1964 e 1985 ou a mais recente e – para nossa sorte – mais curta. Que não venha outra tão cedo. Mas para isso é preciso recordar sempre, atiçar os desmemoriados e não deixar que o Mal se dilua em um Alzheimer coletivo. Declarar com todas as letras e aos quatro cantos, como sugeriu meu amigo, que ainda estamos aqui.