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Andre Stangl
Publicado em 3 de dezembro de 2023 às 09:23
Postar ou não postar, eis a questão. Se vivesse nos dias de hoje, talvez esse fosse o dilema de Hamlet. Está cada vez mais comum ouvir alguém dizer que ficou surpreso em ver que tal artista está vivo, depois de vê-lo na TV. Já que ele não aparecia muito, então deveria estar morto. No caso das celebridades, a grande mídia ainda é um indicador de sobrevivência, mas, entre as pessoas comuns, a presença nas redes é cada dia mais usada como indicativo para lembrar que alguém existe.
É quase impossível resistir a postar fotos dos principais episódios de nossas vidas, sejam festas, shows, viagens, nascimentos ou mesmo falecimentos. Se não postarmos, é como se não tivéssemos passado por aquela experiência. Mas, nas redes digitais, tudo o que fazemos pode ser percebido de forma distinta da nossa intenção. O sentido é dado pelo coletivo. Uma conversa no grupo do zap da família ganharia um sentido totalmente distinto se fosse postada no Face. Muitas confusões estão acontecendo por não prestarmos mais atenção às diferenças de contexto. Aquilo que era conversado nas mesas de bar, se perdia no ar. Bobagens que poderiam ser esquecidas sem maiores consequências. Mas, hoje, essas “bobagens” podem ser gravadas, compartilhadas e, uma vez eternizadas nas redes, destruir a imagem pública de uma pessoa.
Como lidar com isso? E porque devemos nos importar com isso? Alguns falam em censura e intolerância, dizem que vivemos a era dos cancelamentos. Não se pode negar a importância das reivindicações dos grupos historicamente excluídos. Nem toda piada tem graça. Mas a questão é como conseguiremos conviver sem fazer bobagens. É parte das nossas vidas falar besteiras e nos arrepender. Como crescer e amadurecer sem esse aprendizado? Imagine um jovem de 12 anos tendo que explicar uma postagem preconceituosa no RH de uma empresa daqui a 10 anos.
Direito ao esquecimento
Em 2014, o Tribunal de Justiça da União Europeia reconheceu o direito ao esquecimento. Ou seja, as pessoas podem solicitar aos sistemas de busca, como Google, a exclusão de informações negativas para sua imagem pública. A solicitação é avaliada levando em conta o interesse público. O debate jurídico sobre esse direito é complexo e atravessa questões da ética, liberdade de expressão, direito internacional e aspectos técnicos. Mas, em geral, a lei olha apenas para a informação publicada em jornais ou instituições consolidadas. Pois é quase impossível regular o que usuários comuns fazem nas redes.
Assim, voltando ao exemplo do rapaz acima, que estava tentando explicar uma postagem preconceituosa ao RH, é muito provável que ele não consiga solicitar a exclusão dessa postagem. Mas o que ele poderia fazer? Não resta dúvida que precisamos ser mais cuidadosos com o que compartilhamos nas redes. Principalmente quando são postagens relacionadas a assuntos polêmicos ou que envolvam pessoas em situação de fragilidade.
Pense bem
Uma boa dica é esperar um pouco antes de postar, reunir mais informações, confirmar se não se trata de fake news ou informação desatualizada. No caso das piadas e ironias, experimente se colocar no lugar do alvo da chacota. Será que o tom está pesado? Se você estivesse na presença de outras pessoas, faria essa brincadeira do mesmo jeito? Esse exercício, em geral, nos faz desistir de postar a piada, pois muito da graça está no calor do momento. Mas não precisa radicalizar e virar o chato da timeline. Esse cuidado pode até ajudar a melhorar a qualidade de suas postagens e, quem sabe, atrair mais curtidas.
Outra dica útil é levar em conta a diferença de contextos. Na vida off line, a gente já tinha esse cuidado. Não usamos o mesmo tipo de roupa em casa e nas ruas, não nos comportamos do mesmo jeito em uma reunião familiar e no trabalho. Nas redes, os grupos e os contextos sociais tendem a se misturar, somos seguidos por professores, colegas, familiares, clientes e desconhecidos. Nem sempre conseguimos controlar quem tem acesso ao que publicamos. Assim, a melhor estratégia é buscar uma forma de internalizar um comportamento ético, cuidadoso e construtivo desde cedo.
Ilusões virais
Em 2020, o documentário O Dilema das Redes, disponibilizado na Netflix, ajudou a ampliar o debate sobre os riscos psicológicos de nossas vidas digitais. Usando uma linguagem didática e com depoimentos de pesquisadores e desenvolvedores, podemos ver um pouco do bastidor das estratégias de engajamento usadas pelas grandes empresas de tecnologia. O documentário apresenta dados assustadores sobre os impactos na saúde mental, principalmente dos mais jovens, e de forma ainda mais dramática no caso das garotas.
A forma como os algoritmos das redes sociais estimulam o consumo de postagens sobre alguns poucos temas, falando sempre da mesma coisa, usando vídeos, imagens e textos diversos, dá a impressão de que todos estão falando sobre aquilo também. Por exemplo, você pesquisa na internet sobre uma música. Depois começa a ver na sua timeline pessoas que estão escutando aquela música, criando assim uma falsa impressão de que aquela música é um sucesso. Mas pode ser apenas um recorte operado pelo algoritmo para prender sua atenção, pois ele sabe que esse é o seu interesse agora. Por outro lado, isso pode acabar fazendo você postar algo sobre aquela música e, dependendo do interesse de seus seguidores, ela pode de fato acabar virando um sucesso viral.
Bolhas de exclusão
Nesse exemplo, estamos falando apenas de uma música. Mas a questão fica mais séria quando falamos de questões identitárias, políticas ou emocionais. A forma como configuramos nossas timelines - ou seja, a forma como educamos os algoritmos para excluir aquilo que não nos interessa, curtindo ou descurtindo coisas -, gera uma construção narrativa uniforme que não representa a diversidade de opiniões e gostos que são o colorido da nossa vida em sociedade.
Aqueles que pensam de forma diferente acabam sendo empurrados para redes paralelas ou para outras bolhas sociais. Isso tem implicações políticas, culturais e emocionais profundas. Por exemplo, no caso dos supostos padrões de beleza e de gênero. Uma jovem que não corresponde a esses padrões pode se sentir excluída e desenvolver problemas com sua autoimagem. Como ela vai conseguir se inserir e sentir-se aceita com o seu corpo e sua aparência? Mudar o corpo não é tão simples como customizar um avatar.
Emoções em rede
Não é mera coincidência a quantidade absurda de jovens com quadros de depressão e ansiedade atualmente. É muito comum começar nossa vida digital adicionando amigos e parentes, ou seja, pessoas com as quais compartilhamos algumas coisas em comum. Uma experiência escolar, o gosto por um time de futebol, um estilo de música, etc. Mas, à medida que crescemos, podemos ir descobrindo outros gostos, ou mesmo mudando de opinião sobre coisas que são muito importantes para nossa rede de relações. E então, depois de uma postagem, que pode ser interpretada como desinteressante pelo algoritmo para os membros de nossa rede, começamos a sumir da timeline deles.
Às vezes esse processo pode ser muito triste. As pessoas com as quais você cresceu e compartilhava uma visão de mundo já não cabem em seu horizonte. O carinho permanece, mas você não curte mais o que eles postam e nem eles curtem o que você posta. O que fazer agora? Buscar uma nova rede com estranhos que pensam como você? Muitos fazem isso, mas esse elo identitário nem sempre supre os elos afetivos da nossa antiga rede.
Consciência digital
Não se pode negar a importância política e cultural das redes digitais, mas se a sua relação com esse universo anda meio tóxica, você pode reduzir o consumo diário e fazer outras coisas, até mesmo sem celular (sim, isso é possível). Às vezes, a gente acaba esquecendo que a internet não é só rede social. E que existem outras inúmeras possibilidades de entretenimento. Que tal começar mapeando a quantidade de horas que você passa por dia nos seus aplicativos favoritos? Existem apps de “Bem-estar digital”, assim você pode identificar o que está usando mais e tentar distribuir o tempo de forma mais equilibrada. Pense no seu cotidiano digital como um tipo de dieta, portanto, quanto mais diversificada for sua experiência, melhor será para a sua saúde. Descobrir novos hábitos com ou sem o uso das tecnologias pode ser interessante e caminho mais saudável para superar os desafios da vida contemporânea.
No caso dos mais novos, é muito importante não ter pressa para entrar nesse mundo. A lei inclusive recomenda o mínimo de 13 anos. Mas sabemos que eles estão entrando cada vez mais cedo. Se isso acontecer, é importante aconselhar, para evitar um uso descuidado e exagerado. Ainda não existem estudos conclusivos sobre as consequências dessa precocidade, por isso o bom senso ainda é uma virtude. Nesse sentido, a Educação Midiática e Digital pode ser uma aliada importante nesse aprendizado, mas ela não pode ser uma tarefa exclusiva das escolas e instituições. Enquanto não encontramos formas jurídicas de regular de forma eficiente a influência dessas plataformas em nossa saúde, é preciso que pais e familiares também demonstrem esse cuidado em suas postagens e em sua presença digital.
André Stangl é professor e educador digital, cresceu em Brotas, estudou Filosofia e fez doutorado na USP. [email protected] - oficinadelinguagensdigitais.com