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Da Redação
Publicado em 25 de dezembro de 2021 às 05:00
- Atualizado há 2 anos
Há 13 anos, a baiana Neuza Maria foi diagnosticada com Mal de Parkinson e começou a usar remédios pesados para controlar a doença. Em 2017, uma amiga falou com ela sobre o uso da cannabis medicinal no controle dos sintomas. Então, Neuza decidiu procurar especialistas que pudessem prescrever o medicamento, mas cadê o médico? Não encontrou nenhum em Salvador e precisou ir até o Pará para ser atendida por um neurologista, que finalmente receitou o canabidiol. Ela não é a única a encontrar barreiras na área médica quando o assunto é a cannabis. Falta de conhecimento ou limites culturais na hora de prescrever? Um pouco dos dois.
A saga de dona Neuza em busca de um tratamento com a cannabis é digna de filme, mas está longe de ser um caso isolado. Chegaremos lá. É preciso falar sobre os meios antes de chegar aos fins. A aposentada de 65 anos ouviu de médicos que a cannabis era enganação, ineficaz e que, por isso, não dariam a prescrição que ela pediu. Assim como Neuza, muitos pacientes descobrem os benefícios do tratamento com a planta por amigos, notícias ou internet, mas quase nunca pelos seus próprios médicos. Os números comprovam que a prática da medicina nem sempre acompanha a ciência ou as escolhas dos pacientes.Leia também: Eles assinam embaixo: veja lista de 46 médicos que prescrevem cannabis
Segundo a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), responsável pela liberação dos fármacos, até novembro deste ano foram 33.793 solicitações para importações de medicamentos com princípio ativo da cannabis. Ano passado, 19.074. Em 2015, primeiro ano de liberação, foram 896 pedidos. Não precisa ser um gênio da matemática para perceber que o número só cresce. E muito. Contudo, o número de médicos que receitam o canabidiol não aumenta na mesma proporção.
Na última demografia médica no Brasil, em 2020, o país tinha 523.528 médicos regulares, segundo o Conselho Federal de Medicina (CFM). Dentro deste universo, apenas 2.100 doutores ou doutoras já prescreveram, pelo menos uma vez, produtos oriundos da cannabis no país, entre 2015 e 2020, segundo dados da Anvisa. Não chega a 0,5%. O número até cresceu este ano, mas não ultrapassa os 4 mil.
Na Bahia, são 24.413 médicos. Solicitamos à Anvisa e ao Conselho Estadual de Medicina os números de prescrições no estado, mas não obtivemos resposta do Cremeb até o fechamento da edição. A Anvisa disse não ter esses dados na Bahia. Algumas associações que ajudam pacientes na utilização da cannabis possuem listas de médicos que prescrevem ou já prescreveram no estado (confira na próxima página). Encontramos 58 profissionais. Mesmo que não seja um número oficial, concluímos que apenas 0,002% que já receitaram.“O problema é que o assunto ainda é tratado como uma questão sobre droga e não de saúde. A ciência comprovou os benefícios, mas existe uma falta de acesso à informação. Eu só conheci sobre a cannabis medicinal [na faculdade] num fórum que teve na Ufba em 2017. Só depois de formada eu me aprofundei e hoje sou médica voluntária. Era preciso que a cannabis estivesse na formação curricular básica do médico”, disse a doutora Mariane Ventura, que trabalha também como voluntária na Associação Para Pesquisa e Desenvolvimento da Cannabis Medicinal no Brasil (Cannab), em Salvador. Se o uso medicinal da cannabis ainda não se tornou assunto básico na faculdade de medicina, cursos sobre essa utilização da planta são comuns no país e abertos para todos. A Unyleya, por exemplo, tem uma pós-graduação EAD Cannabis Medicinal que dura 11 meses, para qualquer formação de nível superior. Recentemente, a Universidade de São Paulo (USP) também passou a oferecer um curso sobre cannabis, mas exclusivamente para médicos.“Sou professor de neurologia da USP e, pensando nesta barreira, abrimos um curso buscando um conhecimento científico e técnico exclusivo para o médico, desde a prescrição até o conhecimento aprofundado da cannabis. Já existem cursos abertos para todo público, mas é preciso preparar o médico sobre o tema”, disse o coordenador do curso Medicina Canabinoide, Renato Anghinah.Especialização O curso, que está formando a primeira turma, é ministrado pela USP e o Hospital das Clínicas, com carga horária de 15 horas. Por se tratar de um curso online, qualquer médico, inclusive da Bahia, pode participar. A especialização abordará temas importantes para quebrar a barreira entre o profissional de jaleco, seus pacientes e a cannabis.
Na grade, estão disciplinas como bases fisiológicas e farmacológicas da medicina canabinoide, indicações clínicas em adultos e crianças, cuidados paliativos, prescrições, dosagens, efeitos, discussão de casos, entre outros. O curso custa R$ 1.900 e está aberto para dentistas também. Vale lembrar que a Anvisa não obriga uma especialização do médico para a prescrição, salvo em casos em que o paciente seja criança ou adolescente.
“O curso tem tido uma boa procura, o que é animador. Não tem um mês que abrimos a inscrição desta primeira turma e já temos mais de 20 inscritos. O tabu da cannabis na área da medicina é muito grande. Por incrível que pareça, o paciente tem menos preconceito que o próprio médico para prescrever”, assegura Anghinah, que dá um exemplo bastante interessante. Coordenador do curso Medicina Canabinoide, da USP, o neurologista Renato Anghinah “Alguém questiona quando um médico receita corticoide? Pois bem. Nas Olimpíadas, o canabidiol deixou de ser doping, mas o corticoide continua como substância proibida. Entende? O corticoide tem uma reação psicoativa maior que o canabidiol isolado. Existe um preconceito e precisamos mudar esta cultura avessa no país. Só mudamos esta cultura, de médico e paciente, com muita informação”, completa. Renato Anghinah também é presidente da área medicinal da HempMed, primeira empresa autorizada pela Anvisa para importação e venda da cannabis medicinal.
Para conseguir um medicamento com princípio ativo da cannabis, é necessário passar por três etapas. Na primeira, é preciso o bendito médico prescritor. O profissional da saúde vai examinar a aplicabilidade no caso, verificar a dosagem necessária do medicamento, além de acompanhar o tratamento. Passando dessa etapa, é necessário um cadastro na Anvisa, que autoriza (ou não) a importação. A aprovação leva, em média, cinco dias e pode ser feita no site da instituição. A espera já foi mais longa, chegando a 75 dias, mas a agência resolveu simplificar os pedidos este ano, justamente pelo aumento da procura. Só depois disso tudo é possível importar o produto especificado pelo médico.
Existem empresas especializadas na importação, pois ainda é proibido cultivar e produzir o medicamento em solo nacional, exceto em casos específicos com autorização judicial. Essa burocracia custa caro, pelo menos para o bolso do consumidor, que pode comprar produtos que chegam a R$ 2 mil em algumas importadoras, pois o remédio acaba vindo a preço de dólar. Mesmo assim, a procura só cresce. Em 2021, a HempMed registrou 1.500 novos clientes, acumulando o total de 45 milhões de miligramas de canabidiol vendidos neste ano. A empresa também oferece conteúdos técnicos para médicos e clientes, de forma gratuita (hempmedsbr.com).
O alto custo também é um fator decisivo para os entraves nos medicamentos derivados da cannabis no Brasil. Para ser mais acessível, além da especialização entre os profissionais de medicina, é preciso que o congresso se movimente. O Projeto de Lei 399/15, que libera o cultivo da maconha para fins medicinais, teve parecer favorável no Congresso, em junho deste ano, e deveria ter sido votado no senado, mas ainda está travado pela atuação de políticos conservadores. Enquanto isso, associações como a Cannab fazem sua parte.
“O médico precisa estudar sempre. Por incrível que pareça, até mesmo os médicos que prescrevem a cannabis, boa parte faz isso por causa da demanda de pacientes. Porém, não são apenas os médicos que precisam entrar no tema. O PL está avançando e o deputado Arthur Lira prometeu que os deputados votarão ainda este ano. A votação seria levada diretamente para o senado, mas um recurso impediu. Isso, sim, vai abrir nossos horizontes”, disse o presidente da Cannab, Leandro Stelitano, que visitou recentemente o Uruguai, primeiro país a legalizar o uso da maconha, inclusive para fins recreativos. Doutora Mariane Ventura acredita que a cannabis ainda é tabu na medicina A Cannab, junto com a Associação Brasileira de Apoio Cannabis Esperança (Abrace), conseguiu, na justiça, a autorização para plantio e cultivo da cannabis para uso medicinal. Com mais de 900 pacientes atendidos todos os dias, a Cannab consegue vender medicamentos mais baratos, chegando a R$ 100 em remédios que, de outra forma, custariam mais de R$ 2 mil. Foi justamente graças à associação que Neuza, a senhora do início da matéria, conseguiu manter seu tratamento com o canabidiol e descobriu algo surpreendente.
“Eu também sofria de ansiedade e o canabidiol resolveu. Deixei de tomar antidepressivos, inclusive. Mas não pude continuar, pois era um absurdo os preços dos remédios e não achava médicos em Salvador para me receitar e acompanhar o tratamento. Até que consegui ser atendido pela Cannab e fui examinada por um neuro especialista em Parkinson. Ao me examinar, o médico comprovou o que outros não neurologistas vinham me dizendo: eu não tinha Parkinson”, revela Neuza. “Estou no processo de desmama daqueles remédios pesados. A cannabis está ajudando nisso também. Muita gente não conhece os benefícios da cannabis, pois falta conhecimento dos médicos. Cadê a legalização? A cannabis não é coisa de drogado”, finaliza.
A cannabis dentro de nós
Princípios ativos Foram encontradas evidências da utilização da planta há 2.500 anos, na China. Com 400 tipos diferentes de componentes, ela cura, alivia, bate onda e está longe de ser uma novidade. Entre as substâncias presentes na erva, duas estão em evidência.
Tetra-hidrocanabinol: Conhecida como THC, a substância é responsável pelo efeito psicotrópico. Sem ela, o uso recreativo da erva não faria sentido. Principal componente psicoativo da maconha, ela vai direto ao cérebro, "ligando" seus neurônios. Ela também é a principal causa da dependência, mesmo que baixa em comparação com outras drogas e medicamentos. Utilizado de forma controlada e medicinal, o THC trata falta de apetite em doentes crônicos, alivia os efeitos da quimioterapia e auxilia no tratamento de distúrbios do movimento, glaucoma e doenças cardiovasculares. Em alguns medicamentos, só é permitido 0,3% de THC, principalmente para uso de crianças e jovens.
CBD: É o canabidiol propriamente dito, a substância mais usada na cannabis medicinal e não causa dependência. É, inclusive, a base dos medicamentos aprovados pela Anvisa. Não existem estudos científicos conclusivos de que o canabidiol cure doenças. Contudo, seus efeitos terapêuticos e anti-inflamatórios aliviam sintomas de diversas doenças, inclusive a ansiedade.
Prescrições Alguns casos em que se pode usar a cannabis, de acordo com pesquisa disponibilizada pela HempMed (hempmedsbr.com/sobre)
Epilepsia: CBD e THC já mostraram efeitos anticonvulsivos
TEA - Autismo: Melhoria da interação do paciente, trata o transtorno do déficit de atenção (TDAH), além dos distúrbios do sono, ansiedade e agressividade
Ansiedade: THC e canabidiol podem melhorar sintomas de forma menos agressiva do que medicamentos tradicionais
Parkinson: Melhora sintomas como variações de humor, distúrbios do sono, ansiedade e depressão
Alzheimer: Ajuda com os sintomas
Câncer: Ameniza efeitos colaterais do tratamento, além dos sintomas causados pela própria doença.
Outros: Fibromialgia, esclerose múltipla, distúrbios do sono, dor crônica, depressão, paralisia cerebral e enxaqueca.