Quadrilha sem par, arraiá sem santo, roça sem casamento: Como as escolas estão mantendo a tradição junina?

Escolas focam na cultura popular do  Nordeste e repensam  a forma de fortalecer a tradição, sem perder a autenticidade da festa

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  • Priscila Natividade

Publicado em 15 de junho de 2024 às 05:00

Na Escola Cresça e Apareça, as crianças plantaram milho e construíram uma casa de barro
Na Escola Cresça e Apareça, as crianças plantaram milho e construíram uma casa de barro Crédito: Marina Silva/ CORREIO

Todo mundo continua cantando 'Capelinha de Melão' e 'Cai cai balão'. A festinha vai ter bandeirola colorida. O traje caipira caprichado, também. E que bom que não vai faltar amendoim, o milho, o bolo e canjica (ainda bem). No entanto, já não tem mais o casamento na roça. Também não precisa de um par na quadrilha. Nem escolher uma Rainha do Milho. E não é mentira. A tradição está mantida, só que hoje vem passando por mudanças até mesmo na festinha da escola.

Abençoado seja o arraiá, mas sem a representatividade devotada a Santo Antônio, São João e São Pedro, mas sim, a cultura nordestina. Os desafios estão aí: são questões religiosas, de inclusão, diversidade, consumo e sobre como manter acesa a chama popular dos festejos juninos. Mas de que maneira a festividade vem se transformando sem deixar de celebrar as tradições?

“É preciso refletir sobre todos eles a cada ano. A escola é uma instituição viva, deve evoluir junto com a sociedade e ser significativa para o tempo que vivemos. Não é possível pensar em sustentar um modelo de escola de 50, 100 anos atrás, reproduzindo uma instituição que não reflete o presente. É preciso uma evolução. Ser algo vivido com sentido para as crianças”, destaca a diretora da Escola Cresça e Apareça (@escolacrescaeapareca), Mariana Morgenroth.

Os planos para a festa junina desse ano começaram lá atrás com a plantação do milho. Uma casa de barro e madeira também foi construída com as crianças nas aulas de marcenaria e artes. “Nossa proposta é fazer uma costura com nosso projeto anual. Este ano, nossas investigações giram em torno do que a natureza ensina. Estamos olhando e sentindo a natureza, principalmente do nosso entorno e refletindo que tudo está conectado a ela. A festa junina não seria diferente. Não há fogueira sem fogo, bandeirolas sem o ar para balançá-las, comidas típicas sem a colheita do milho que precisou da terra e da água e assim por diante”.

Com turmas do berçário até 3º ano do ensino Fundamental, na escola, a quadrilha como a gente conhecia se tornou uma grande roda. “Este ano, vamos realizar dança coletiva como uma grande quadrilha, com músicas escolhidas pelas crianças. As tradições culturais são um tesouro de cada povo e deve ser um compromisso da escola deixá-las vivas e potentes. Somos uma escola da infância, então, a escolha dos elementos que apresentamos levam em conta a idade delas e o que de fato é significativo para nossa comunidade escolar e percurso pedagógico”, ressalta.

"Este ano, vamos realizar dança coletiva como uma grande quadrilha, com músicas escolhidas pelas crianças. As tradições culturais são um tesouro de cada povo e deve ser um compromisso da escola deixá-las vivas e potentes"

Mariana Morgenroth
diretora da Escola Cresça e Apareça 

Cultura nordestina

Já nas unidades da Gurilândia (@escolagurilandia) na Pituba e Federação, os alunos do grupo 1 até o 5º ano do ensino fundamental também fazem a festa junina acontecer, porém, muito mais focada em elementos da valorização da cultura regional do que em referências aos santos católicos homenageados na época.

“Primeiro, é preciso dizer que não é uma festa obrigatória e quem não se sente confortável ou conectado com o evento não precisa ir. A festa junina está além da questão religiosa. Ela tem uma representatividade cultural e é isso que a nós focamos em abordar, até porque a Gurilândia é uma escola laica. Ou seja, todas as atividades são voltadas para a cultura nordestina”, afirma a diretora da Gurilândia Pituba, Bianca Begrow.

Na escola não se faz mais a quadrilha que termina em casamento como acontecia há anos atrás. “Existe todo um cuidado na criança não se sentir excluída. Não temos a rainha do milho para não acabar estimulando um padrão de beleza. As danças permanecem, porém, as músicas são escolhidas, priorizando elementos que as crianças realmente entendam. O desafio é trazer todo esse contexto sem perder a autenticidade da festa. Não podemos deixar a tradição morrer”.

A prioridade da Escola Lua Nova (@escolaluanova), na Pituba, também está na valorização da cultura Nordestina, como pontua a diretora Walkyria Amaral. “Isso se dá no próprio projeto curricular de música que a gente vem trabalhando perto do São João, com algumas músicas de Luiz Gonzaga, Alceu Valença, Zé Ramalho. E aí as crianças escolhem o que elas querem cantar no dia das apresentações. Agora, é muito forte o envolvimento das crianças com as brincadeiras. Fazemos questão de trazer as brincadeiras tradicionais: corrida de saco, de limão, bilhetinho, rabo do burro. Valorizar no ponto de vista cultural e da história, a tradição da cultura popular”.

Por outro lado, instituições de ensino como o Colégio Montessoriano (@colegiomontessoriano), na Boca do Rio, continuam preservando elementos tradicionais como a quadrilha, o casamento caipira e os concursos como a escolha de rei e rainha do milho, entretanto, com novas atividades e formatos. “Incorporamos músicas e danças contemporâneas, alternando as tradicionais com apresentações de novos artistas e estilos modernos, como fit dance junino e remixes de forró. Isso tem tornado a festa mais dinâmica e atrativa”, comenta a coordenadora do fundamental I, Luana Brasil.

São quase 1 mil alunos e 40 turmas do Grupo 3 Infantil ao 3° ano do ensino médio. “Sem dúvida é desafiador equilibrar a tradição com a modernidade. Precisamos garantir que os alunos compreendam e valorizem as raízes culturais da festa junina, enquanto adaptamos as celebrações às expectativas e interesses das crianças de hoje”, complementa a educadora.

Uma oportunidade de reafirmar o lugar, os valores e a identidade nordestina. O diretor do Colégio Miró (@colegiomiro) e presidente do Sindicato das Escolas Particulares (Sinepe), Jorge Tadeu Coelho, reforça que é preciso preservar o que nos identifica. “Aqui no colégio, conforme a capacidade do espaço, permitimos que os avós participem. A festa de São João é muito mais que um festejo. É uma festa visível de conteúdos que circulam nos currículos que falam da nossa posição na cultura brasileira e no mundo”.

Essa não é só uma realidade das escolas da capital. Nas instituições de ensino do interior existe uma preocupação em encontrar maneiras de adaptar as celebrações juninas às novas realidades sem perder a essência. Na Escola Pedro Kilkerry (@escolapedrokilkerry), em Santo Antônio de Jesus, a festa junina continua sendo importante. A educação tem vários motivos para permanecer uma fortaleza de disseminação dessa cultura.

“A valorização cultural, integração comunitária, o senso de pertencimento. O aprendizado multidisciplinar, o desenvolvimento de habilidades, a alegria e engajamento. Assim, a escola não só preserva a tradição, mas também fortalece o senso de comunidade, enriquece a educação e celebra a cultura local de maneira significativa”, defende a diretora Maria Bomfim. A instituição atende 526 alunos na creche, Educação Infantil e Fundamental I.

"A escola não só preserva a tradição, mas também fortalece o senso de comunidade, enriquece a educação e celebra a cultura local de maneira significativa"

Maria Bomfim
diretora da Escola Pedro Kilkerry

O samba junino, as quadrilhas, as feiras vastas, diversas e abundantes, os mutirões de agricultura familiar, as trocas de produtos da terra, a economia gerada por essa produção agrícola, a fogueira, os fogos, as músicas e culinária. Tudo isso compõe tradição, conhecimento e possibilidades de questionamentos a ser provocados pela escola, como aponta a professora da Faculdade de Educação da Universidade Federal da Bahia, (UFBA), Cilene Canda.

“O São João é tradição, mas não pode ser reprodução. Há uma verdadeira mistura entre a tradição de um povo e a indústria cultural que se apropria de aspectos da cultura popular para serem exportados do contexto de sua produção, muitas vezes, folclorizando toda uma pujança cultural e econômica. Que a gente possa traduzir as tradições de um país plural e festivo, sem reproduzir o que nos diminui e nos oprime. Que a cultura nos emancipe sem nos destituir”.

O Projeto São João 2024 é uma realização do jornal Correio com apoio do Sicoob.