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Famílias resgatam velhas tradições contra a carnavalização do São João

Em Seabra, mulher de 97 anos deixa portas abertas e fogueira acesa o mês inteiro para as festas juninas, hoje marcadas por mega eventos

  • Foto do(a) author(a) Fernanda Santana
  • Foto do(a) author(a) Donaldson Gomes
  • Fernanda Santana

  • Donaldson Gomes

Publicado em 15 de junho de 2024 às 05:00

Netas de Amélia se preparam para o São João em família
Netas de Amélia se preparam para o São João Crédito: Anderson Barreto/Acervo pessoal

Na casa da família Barreto, a fogueira é o símbolo do retorno. O fogo, aceso no dia 20 de junho, é alimentado por toras de eucalipto no ritmo da chegada de filhos e netos vindos de outras cidades. Com todos de volta a Seabra, na noite de São João, o fogaréu atinge seu ápice e só se apaga com a despedida do último parente, até três semanas depois.

Aos 97 anos, Dona Amélia é a voz por trás de cada um desses detalhes, que seguem a ordem de manter as tradições juninas fortes. Os familiares são encarregados de diferentes funções. O genro e um dos cinco filhos da aposentada trazem a madeira da fazenda de eucaliptos que possuem, na Chapada Diamantina, para montar a fogueira. Há duas décadas, ali não se queima madeira nativa.

O fogo pode ser riscado no início da novena de São João, no dia 15 de junho. Para que a chama seja alimentada por mais lenha, noite após noite, Amélia antes reza a João Batista, o santo que, para o catolicismo, foi quem batizou Jesus Cristo e outros seguidores. "Que ele permaneça em nossas vidas e nunca falte alimento", roga. 

Depois de quase uma semana de orações, chega o ponto alto da festa. É a noite da véspera de 24 de junho, quando é celebrado o nascimento de São João e o momento dos batismos de fogueira.

Amélia, à esquerda, e as três gerações juninas da família
Amélia, à esquerda, na festa da família Crédito: Anderson Barreto/Acervo pessoal

Nesses ritos, pessoas selam laços de compadrio em uma peregrinação ao redor do fogo. Neste ano, duas pessoas de Seabra já avisaram que serão batizadas, avisa Mirian Barreto. Filha de Amélia, ela é quem atende à maioria das vontades da mãe, que elogia o que gosta, mas manda refazer o que não lhe agrada.

A lista de batizados pode chegar à marca das centenas, mas só um deles é inédito, e fez de Amélia comadre de São João. O primogênito da família, Marialvo, foi batizado direto do santo católico, em um elo místico firmado nos anos 50.

Naquele tempo, a consagração no fogo era tão válida para a Igreja Católica quanto o batismo tradicional. O santo foi evocado por Amélia para abençoar a criança na ausência do padrinho humano, que não pôde aparecer no dia e local programados da cerimônia.

Esses momentos acontecem às vistas de quem quiser ver. As portas da casa ficam abertas para os parentes, os amigos de uma vida, ou gente que a anfitriã nem conhece. "São João é a alegria da vida da gente", metaforiza Amélia. São servidos amendoim, licor e outros pratos típicos. Dispostos em duas mesas na varanda, eles lembram uma hospitalidade mais rara entre os vizinhos.

Do topo da rua onde ela mora, um vale polvilhado pelas luzes das fogueiras surge à noite. Mas o mais comum, ultimamente, é que os vizinhos do bairro, por receio da violência, tranquem os portões e curtam o São João na festa organizada pela Prefeitura. Na área do mercado municipal, tocarão atrações como Dorgival Dantas, Mastruz com Leite e Limão com Mel.

Já na casa dos Barreto, dois netos de Amélia, Adriane e André, tocam sanfona para sonorizar as noites. Os irmãos aprenderam a tocar o instrumento com esse propósito. “Tem quem prefere vir para cá do que ir para a festa lá em cima”, orgulha-se Mirian. No quintal, bandeirolas colorem a casa desde o início de maio, quando Amélia exige o pontapé nos preparativos.

Até meados do século 20, as festas juninas eram assim, eventos íntimos, limitados a famílias e comunidades locais. Havia, sim, uma dimensão do São João como espetáculo. A partir dos anos 60, Luiz Gonzaga, o rosto e voz do forró, deu às festas juninas o reconhecimento nacional ao musicar as imagens, histórias e sons que lhes eram próprias.

O que aconteceu é que, ao perceberem o potencial econômico dessas festas, governos e empresários elevaram essa face espetacular, em um movimento que cresce desde a década de 90. Neste ano, cidades baianas gastarão R$ 195 milhões na contratação de artistas, de acordo com o Ministério Público da Bahia.

A matriz afetiva e estética das festas de junho, no entanto, permanece as famílias, a união, permanece o desejo de retornar para casa para partilhar a fartura germinada pelo trabalho. “Sonhava para a data chegar, tirava nota boa na escola porque era o requisito para essa viagem”, conta Jurema, uma das netas de Amélia, sobre a espera na infância, já que o mês de junho combina com as férias escolares. Esse desejo permaneceu. 

Gonzaga, inclusive, eternizou a dimensão familiar das festas juninas. Na música, "Festa do Milho", ele rima: "O sertanejo festeja|A grande festa do milho| Alegre igual a mamãe|De ver voltar o seu filho".

Como as festas juninas surgem nas casas? 

Amélia veste a casa de junho desde que ela chegou às terras de São Sebastião, o padroeiro de Seabra. São João é o protetor da cidade natal da aposentada, Ipupiara, e a imagem dele fica em um altar na entrada do imóvel de dois andares, seja qual for o mês.

Mas as celebrações que se concentram neste mês ultrapassam o catolicismo. Elas são uma exaltação às próprias raízes e denotam o que se tornou, na verdade, um ciclo junino.

Mesa montada na família Barreto
Mesa montada na família Barreto Crédito: Anderson Barreto/Acervo Pessoal

Na Europa, as tradições juninas faziam parte de rituais pagãos que celebravam o solstício de verão, quando o dia é o mais longo do ano. A Igreja Católica incorporou alguns desses ritos, como a fogueira, com novos alvos de devoção: os santos católicos Santo Antônio, São Pedro e São João, o mais famoso deles.

Trazidos pelo português para o Brasil, esses rituais foram adaptados aos moldes locais. Aqui, é tempo do inverno e da colheita da mandioca e do milho, a base das comidas típicas desse período. Os vínculos familiares e afetivos se entrelaçam com a tradição junina também nesses detalhes.

“As festas chegam aqui com essa incorporação feita pela igreja católica, acontecendo mais dentro de casa que nas ruas. Se o carnaval é da rua, o São João é o contrário. Todas as religiões têm essa ligação com a 'família', assim como o 'comer junto' traz um aspecto familiar forte'”, explica Milton Moura, historiador e professor aposentado da Universidade Federal da Bahia (Ufba) que pesquisa festas populares e construções de identidade.

“O aspecto familiar, por exemplo, pode ir perdendo um pouco mais de força", continua Moura", "com a entrada dos festejos juninos nos circuitos pop de produção e circulação da música, o desejo de reunir-se com a família e amigos divide espaço com a motivação dos festivais. É o festejo para reunir, que é muito bom, mas é diferente”.

No número 461 da Rua Democrata, em Vitória da Conquista, a família Silva Souza reúne esses dois elos. No início, eram só eles – mãe, pai, filhos e os amigos mais próximos – na festa junina. “Aí foi aumentando, aumentando", conta a anfitriã Leda Maria, 76, "e tomou a casa”.

Hoje, dois toldos já estão montados na frente da casa dela para receber as 200 pessoas que, em média, aparecem no dia 24. A prefeitura autoriza o fechamento da rua para que caiba tanta gente. Com o respaldo burocrático, a família ajuda nas minúcias, como o ponto certo do licor. “Gasto uns R$ 10 mil para que tudo isso aconteça”, estima a aposentada Leda.

O casamento junino é o ponto de partida para esse dia. Os noivos sobem na carroça para um passeio nas vielas próximas, e voltam uma hora depois para que a união seja selada por uma pessoa que, em junho, ganha o poder casamenteiro de um padre. Os personagens, que vestem roupas a caráter para o papel, ainda não foram escolhidos.

Casamento junino na casa de Leda Crédito: Acervo pessoal/Leda Maria

Ano passado, a noiva foi uma das netas de Leda, e o noivo um jovem desconhecido que apareceu na hora. “Quem quiser pode chegar”, diz ela. “O que me move é o São João, o forró. É meu momento favorito do ano, quando mais me emociono. Fica muita gente me agradecendo, todo mundo falando comigo de São João, e graças a Deus dá certo”, conta Leda.

O São João do futuro

As famílias brasileiras só diminuem, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). A queda acontece desde 2010 e, hoje, cada casa tem menos de três membros por família — só a festa junina na casa de Dona Amélia, em Seabra, envolve diretamente o triplo desse número de pessoas.

“Mas as pessoas vão encontrando outras saídas para celebrar o São João, é uma memória muito enraizada”, explica Clóvis Ramaiana Oliveira, doutor em História pela Universidade de Brasília (UNB) e nativo de Tanquinho, na região metropolitana de Feira de Santana.

“Vejo, sim, muitas diferenças com o São João que conheci na infância, mas também uma semelhança, esse fio condutor, sem cair no romantismo também, que é essa capacidade de juntar. Tenho certeza de que a festa vai se reconfigurando por outros caminhos. Há equipamentos mentais (o historiador Jacques Le Goff chama de tecelagens mentais) que vão sendo equipados."

Na Tanquinho onde o pesquisador cresceu, por exemplo, a prefeitura injeta dinheiro na festa pública. “Mas se a menininha da escola não fizer a bandeirola…”, imagina o pesquisador. “Então, o que vejo de semelhante, ontem e hoje, é esse estar junto".

Família Duarte e amigos no São João Crédito: Acervo Pessoal/Darcio Duarte

É esse laço que Darcio Duarte, 42, e dois irmãos querem manter firme. Eles moram em cidades diferentes, mas se reencontram em junho, no município de Bravo, para realizar uma festa junina que reúne os parentes, amigos e amigos dos amigos, inspirados no passado. Há comida típica, forrozeiros e uma fogueira queimando, no haras da família.

Na infância, os Duarte pegavam uma carroça para perguntar de casa em casa: “São João passou por aí?”. Ao ouvirem o "sim", desciam para comer, brincar e rever amizades. Não tinham hora para voltar. O hábito de alugar carroças acabou, mas não a possibilidade de criar memórias.

“Queremos viver essa tradição de São João, para que ele não se torne parecido com um carnaval”, explica o empresário Dárcio Duarte, também movido por outro desejo.

“Quero que meus dois filhos entendam o São João como um sentimento bom”, acrescenta. O primogênito mostra que compreendeu.

Na semana passada, Pedro perguntou ao pai por que ele fazia questão de frequentar uma novena de Santo Antônio. Dárcio respondeu que essa tradição o conectava à infância. O garoto disse também estar ansioso pelo São João. Dali a duas semanas, afinal, reveria os amigos e soltaria fogos diante da fogueira.

O Projeto São João 2024 é uma realização do jornal Correio com apoio do Sicoob.