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Da Redação
Publicado em 18 de junho de 2020 às 13:46
- Atualizado há 2 anos
Estátua fica na entrada do Santa Izabel, no bairro do Nazaré (Foto: GA/Arquivo CORREIO) A Santa Casa de Misericórdia da Bahia, responsável pelo Hospital Santa Izabel, decidiu, neste primeiro momento, não retirar a estátua em homenagem a Joaquim Pereira Marinho, que fez fortuna com o tráfico de africanos trazidos ao Brasil para serem escravizados. Um coletivo de entidades negras solicitou a retirada do monumento, que fica em frente ao hospital, após o CORREIO contar a história do conde Pereira Marinho em reportagem publicada no último dia 10.>
A matéria sobre a existência da estátua ocorreu após a repercussão mundial de imagens em Bristol, na Inglaterra, nas quais manifestantes derrubam uma estátua que homenageava um traficante de escravos durante protesto contra o racismo. A assessoria da Santa Casa informou que não irá se manifestar sobre o caso.>
No último dia 10, a instituição afirmou ter conhecimento de toda a trajetória do conde, mas ressaltou que, no fim de sua vida, o traficante se tornou um benfeitor, realizando vultuosas doações para a Santa Casa, possibilitanto a construção do Santa Izabel. No monumento, não há qualquer referência ao tráfico de pessoas que rendeu toneladas de ouro a Joaquim Pereira Marinho.>
Como o monumento possui mais de 100 anos e é tombado, qualquer alteração realizada nele precisaria ser aprovado pelo Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural do Estado da Bahia (Ipac).>
A instituição está esperando os desdobramentos para avaliar qual posicionamento irá tomar. A segurança, inclusive, já foi avisada da possibilidade da realização de protestos.>
Pedido das entidades negras O Coletivo de Entidades Negras (CEN), organização nacional do movimento negro, notificou extraoficialmente a Santa Casa de Misericórdia da Bahia e o Ipac para que as duas instituições retirem das dependências do Hospital Santa Izabel, no bairro de Nazaré, em Salvador, a estátua em homenagem a Joaquim Pereira Marinho.>
Segundo o próprio CEN, a notificação propõe o prazo de cinco dias para a retirada da estátua e promete adotar "outras providências cabíveis" caso a solicitação não seja atendida. O coletivo, que está colhendo as assinaturas para subscrever um abaixo-assinado público com a mesma reivindicação, também pede que a estátua seja destruída.>
A estátua em questão fica na entrada da unidade hospitalar e já está lá a mais de 100 anos. A história de Joaquim Pereira Marinho foi tratada em uma coluna escrita pelo jornalista Nelson Cadena em 2018, também no CORREIO, e voltou a circular no dia 8 após o também jornalista Levy Teles publicar uma “thread” no Twitter sobre o assunto.>
O grupo de ativistas argumenta que "Joaquim Pereira Marinho atuou como traficante de negras e negros escravizados(as), inclusive em flagrante violação da Lei Feijó, de 7 de novembro de 1831, que proibia, formalmente, a importação de pessoas escravizadas ao território brasileiro". Afirmam ainda que o monumento "sugere a prática de crime de racismo, previsto no Art. 20, da Lei n 7.716/89".>
"Precisamos considerar as lutas históricas da população negra brasileira que resultou na extinção formal da escravização no Brasil, mas sem deixar de frisar nunca que o processo de escravização por aqui deixou um legado de embargos ao exercício dos direitos democráticos pela população negra, o que estrutura as relações de poder em torno de um patriarcado branco e burguês. Além disso, Salvador é a cidade mais negra fora da África, com mais de 82% da sua população autodeclarada preta e parda. Ou seja, não há elementos que sustentem a manutenção dessa estátua de pé, ainda mais em um momento de intensos questionamentos internacionais sobre o racismo estrutural", afirma a coordenadora-geral do Coletivo de Entidades Negras (CEN), Iraildes Andrade.>
Relembre a história Em sua coluna, Nelson Cadena destacou a fortuna conquistada pelo conde Pereira Marinho, como era conhecido. Ao morrer, em 1887, o Conde deixou uma fortuna avaliada em 8 mil contos de réis. No livro 1808, o jornalista Laurentino Gomes fez uma conversão da moeda antiga para valores atuais. Com isso, é possível calcular que, em dinheiro de hoje, o patrimônio acumulado pelo traficante era de quase R$ 1 bilhão.>
No seu testamento, declarou 227 imóveis de sua propriedade, somente em Salvador. Quando vivo, o conde doou parte de seu dinheiro para a Santa Casa de Misericórdia da Bahia, incluindo uma ajuda no empréstimo que possibilitou a retomada das obras de construção do Hospital Santa Izabel. Por conta disso, em 1893, foi colocada uma estátua em sua homenagem na entrada principal do centro médico.>
Além do empréstimo, ele deu o dinheiro para a construção de um prédio no Asilo dos Expostos, a Pupileira. Ao morrer, legou à Santa Casa 80 contos de réis para o hospital, 10 para o Asilo dos Alienados e 10 para o Asilo da Mendicidade - num total de 100 contos de réis, equivalentes a cerca de R$ 13 milhões.>
Em seu testamento, o conde disse que morria em paz, sem arrependimentos. "Tenho a consciência tranquila de passar para a vida eterna sem nunca haver feito mal para o meu semelhante, e a convicção que a fortuna que deixo foi adquirida pelo meu trabalho perseverante. Com economia, honestidade, honradez em minhas transações comerciais, sem nunca ter deixado de fazer ao meu semelhante o bem que podia fazer", disse.>
Em nota divulgada a pedido do CORREIO, no último dia 10 (leia na íntegra no final do texto), a Santa Casa de Misericórdia da Bahia, responsável pelo Hospital Santa Izabel, diz ter conhecimento da trajetória do conde Pereira Marinho. A nota ressalta que a estátua foi lá instalada no dia da inauguração do centro médico, em 1893, e que ela representa "pontos da historicidade de uma época". Foto: GA/Arquivo CORREIO "O conde Pereira Marinho passou a se dedicar a obras de caridade durante os últimos anos de sua vida. Ele foi responsável pela doação que possibilitou a retomada da construção do Hospital Santa Izabel após 40 anos de obras interrompidas por falta de recursos financeiros. Por essa razão, em 1893, a estátua foi erguida", diz.>
Conde de Pereira Marinho Nascido em Portugal, no ano de 1816, Joaquim aportou em Salvador aos 13 anos. Órfão, ele começou a trabalhar como caixeiro e marítimo. Ainda adolescente resolveu se especializar no comércio de escravos e, aos 17 anos, trazia homens e mulheres africanos de países como Nigéria e Angola para o Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul, principalmente. A Bahia era uma rota secundária, apesar de morar por aqui.>
Trabalhou durante 30 anos no ramo e, em seu auge, chegou a ter 13 embarcações. A última leva de escravos foi transportada por ele em 1850, quando a escuna “Catota” desembarcou 450 escravos no Rio de Janeiro. Naquele ano, o tráfico negreiro foi abolido pela Lei Eusébio de Queiroz. >
Mesmo antes da abolição, já havia grande pressão dos ingleses pelo fim da escravidão no Brasil e embarcações de guerra britânico costumavam afundar os navios negreiros no Oceano Atlântico. Para driblar essa dificuldade, Pereira Marinho adotou a estratégia de fazer passar os negros transportados por funcionários do navio.>
Após a proibição, tentou ao máximo desvencilhar sua imagem do comércio de seres humanos e para isso contou com o apoio da nobreza soteropolitana, com quem tinha boas relações, como conta a historiadora Cristiana Ferreira Lyrio Ximenes, que escreveu uma dissertação de mestrado em História sobre o tema, na Universidade Federal da Bahia (Ufba), em 1999.>
As vultuosas doações faziam parte dessa estratégia para limpar a imagem, afirma a historiadora. Na época, acreditava-se que para ser "um rico de verdade" era necessário ajudar os pobres para, assim, encontrar o caminho dos céus. E esse era, de fato, o grande objetivo do Conde com as doações: parecer um homem justo e honrado. >
Na sua morte, em em 26 de abril de 1887, não havia sequer uma linha com referência ao seu passado como traficante. Seu corpo foi velado na Igreja da Misericórdia e sepultado em um mausoléu do Campo Santo, perante a presença de mais de 2 mil pessoas; no seu enterro, relatam jornais da época, viam-se as bandeiras, estandartes e insígnias de praticamente todas as confrarias e irmandades da Bahia.>
Todos os presentes exaltavam as benfeitorias e doações do conde para a Bahia. >
Outras atividades comerciais Após a abolição, direcionou seus capitais para o sistema financeiro. Fundou o Banco da Bahia e anos depois tornou-se um dos maiores acionistas do Banco Mercantil, também adquirindo lotes de ações de outros bancos. >
Como banqueiro, tinha o costume de realizar empréstimos a juros altos. Como quando o estado de Alagoas tomou emprestado 150 contos de réis, a juros de 8% ao ano, o dobro do cobrado no mercado e se encrencou de tal maneira que em 1886 cortou 20% da folha salarial dos funcionários públicos para acelerar o pagamento da dívida que se tornara insustentável, quitada em definitivo dois anos depois. >
Outra prática dele era a de comprar heranças por um valor abaixo de mercado. Com isso, ele poderia executar as hipotecas e lucrar em cima dos parentes dos falecidos. Esse modelo de negócios rendeu a ele o apelido de "explorador de orfãs e viúvas".>
Investiu em imóveis; fez negócios com a venda de carne oriunda do Rio Grande do Sul, uma das atividades mais rendosas, na época; comprou a fábrica de tabacos Boa Vista, em Portugal, provavelmente abastecida com matéria-prima do Recôncavo baiano.>
Como empreiteiro, construiu e explorou a estrada de ferro do Jequitinhonha, entre Bahia e Minas, através de parceria público-privada com os dois estados e ainda a estrada de ferro de Juazeiro. >
Com a sua firma Joaquim Pereira Marinho & Cia, constituída em 1851, atuou na compra e venda de madeira e investiu também em trapiches. Foi presidente e o maior acionista da Companhia Baiana de Navegação. Fachada do Santa Izabel em 1902, já com a estátua (Foto: Dugauy-Troin) Traficante baiano homenageado na África Apesar de sua relevância, o conde de Pereira Marinho não chega perto de ser o maior traficante de escravos do Brasil. Esse posto é ocupado por Francisco Félix de Souza, o Chachá. >
Nascido em Salvador, Chachá se mudou no final do século XVIII para a cidade de Ouidah, em Benim. Por lá, movimentou aquele que foi o maior porto de escravos do mundo, transportando mais de 1 milhão de africanos, em sua maioria Iorubás, para as Américas. >
200 anos depois, Chachá tem diversas estátuas espalhadas pela cidade africana e seus descendentes formam uma das famílias mais importantes do país, os “De Souza”. E, apesar de seu passado, hoje ele é considerado o patrono de Ouidah.>
Tira ou não tira? O jornalista Laurentino Gomes se posicionou contra a derrubada de monumentos, argumentando que são parte do patrimônio histórico. Laurentino se referia à estátua do bandeirante Borba Gato, em São Paulo, que percorria o interior do Brasil para sequestrar índios e os escravizar.>
“Estátuas, prédios, palácios e outros monumentos são parte do patrimônio histórico. Devem ser preservados como objetos de estudo e reflexão. Com dez metros de altura e vinte toneladas de peso, a atual estátua de Borba Gato no bairro de Santo Amaro, em São Paulo, é feia que dói. Ainda assim, deve lá ficar. Mas ao passar por ela, as pessoas devem saber quem foi o personagem e como foi parar no panteão dos heróis nacionais”, argumentou Laurentino.>
Professor de História da Universidade Estadual de Feira de Santana (Uefs) e Doutorando pela Universidade de Hull, na Inglaterra, Carlos Silva Jr acompanhou de perto as discussões que levaram ao que aconteceu em Bristol. O historiador conta que os movimentos sociais da causa negra estão há pelo menos uns 20 anos discutindo sobre o assunto no país, questionando o personagem da estátua, Edward Colston, e sua representatividade naquele local. >
Edward Colston construiu uma reputação como benfeitor até que os movimentos sociais começaram a apontar o seu passado escravizador. A situação pautou a Bahia e, para o historiador, a estátua do Conde Pereira Marinho também deveria ser retirada da frente do hospital. "Acaba sendo uma afronta à população negra", defende.>
Carlos Silva Jr. explica que o conde não era um traficante de menor porte. Durante o período da escravidão, ele foi responsável por pelo menos 33 viagens de navios negreiros da costa africana para a Bahia, segundo maior porto negreiro do Brasil na época. Nestas jornadas, o Conde pode ter trazido à força, em média, mais de 11,5 mil pessoas para serem escravizadas no estado, fora as viagens para outros portos."A estátua ignora essa passagem da vida dele, de que foi o dinheiro do tráfico que construiu sua fortuna. Quando se ignora isso, constrói uma memória que lança sombra sobre essa parte da vida dele que precisa ser discutida. Sou a favor da retirada. Nos falta um museu da escravidão, é lá onde ela deveria ser colocada porque você contextualiza o personagem, inclusive para compreender que ele construiu para si uma reputação positiva porque sofria críticas de adversários por ser agiota, por ter participado do comércio infame de seres humanos. O cara tinha que salvar a alma, ele não queria ir para o além carregando essa culpa. O investimento em caridade era uma forma de comprar passagem para o além", comenta o professor.Cadena explica que a estátua pertence a uma instituição privada e que cabe a ela decidir sobre o destino do monumento, diferente das obras como Monumento às Bandeiras e a estátua de Borba Gato, em São Paulo, que são públicas e também estão sendo colocadas em discussão.>