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Marcela Vilar
Publicado em 17 de agosto de 2020 às 06:00
- Atualizado há 2 anos
Localizado no Centro Histórico - região considerada Patrimônio Cultural da Humanidade pela Unesco desde 1985 e tombada pelo Iphan - o Comércio é um dos bairros mais antigos de Salvador. Ali ficava o principal porto de mercadorias do Brasil, onde é hoje o Mercado Modelo. Portanto, era o centro das atividades econômicas daqui, quando ainda éramos colônia de Portugal. A partir da década de 1970, no entanto, com a expansão urbana, o bairro começou a perder seu prestígio para outros pólos empresariais, como o da região do Iguatemi e do Caminho das Árvores. Com isso, muitos prédios ficaram abandonados, subutilizados, sem manutenção e em ruínas. Um projeto da Fundação Mário Leal Ferreira (FMLF), órgão que comanda os projetos urbanísticos de Salvador, no entanto, quer fazer o Comércio recuperar seu papel histórico de principal centro comercial da cidade e também se tornar um novo bairro residencial. Após um estudo habitacional que observou o potencial construtivo dos edifícios, a Fundação catalogou 117 imóveis da região ociosos ou subutilizados - isto é, só com o primeiro andar ocupado - que podem ser recuperados para servirem de residência. Ao todo, são 882 apartamentos de um (30 m²) e dois quartos (45 m²), estimados em R$ 180 mil cada um.
A deterioração de boa parte desses prédios se explica, em parte, por alterações no padrão construtivo da região. Os primeiros prédios do Comércio foram erguidos próximos ao paredão de pedra. Com o passar dos anos e à medida que a região foi sendo aterrada, novos edifícios foram surgindo mais próximos do mar. Por isso, as estruturas que ficam nas ruas de trás são as mais deterioradas. São justamente elas que a prefeitura quer recuperar e transformar em moradias. O plano do município, que já transferiu 80% de sua administração para o Centro Histórico, é alocar os servidores públicos municipais no mesmo bairro, a fim de facilitar a mobilidade urbana e também evitar sobrecargas no transporte público. Por isso, ela vai subsidiar em cerca de 20% o valor do apartamento. Segundo a presidente da FMLF, Tânia Scofield, que coordena o projeto, a preferência será dos funcionários do município que ganham até R$ 2,5 mil por mês. Como estes equivalem a mais de 3 mil pessoas e não há apartamentos para todo mundo, a prefeitura vai eleger, a partir de critérios ainda não definidos, quem terá com a propriedade. Fases A revitalização ocorrerá em três fases: a primeira, mais avançada, vai da Igreja do Corpo Santo até o plano inclinado. Nesta localidade, 17 imóveis serão reformados para oferecer uma capacidade de 214 apartamentos. A segunda fase, que vai do plano inclinado até a Associação Comercial da Bahia (ACB), pretende requalificar 55 imóveis que totalizam 338 apartamentos. Já a terceira e última fase, que vai da ACB até a rua do Pilar, engloba 45 imóveis com 270 apartamentos.
Agora que os prédios foram identificados, a Prefeitura terá ainda que negociar a venda com cada proprietário e estuda desapropriar os terrenos daqueles que se encontram em dívida com o município. De acordo com Scofield, a maioria deles quer alienar o imóvel e dois já disponibilizaram os edifícios para doação.“A recuperação tem um custo muito alto e alguns imóveis, que têm uma localização excelente, estão escorados, já para cair, colocando em risco quem transita na região”, explica a arquiteta e presidente da Fundação Mário Leal Ferreira Tânia Scofield. O CORREIO esteve no local e observou a situação de imóveis em diversas vias. Nas ruas do Corpo Santo e Santos Dumont, por exemplo, que começam nas imediações do Elevador Lacerda e seguem até o pé da Ladeira da Montanha, é possível encontrar prédios em estado de calamidade. A maioria sofre com a ação implacável do tempo. As manchas de infiltração e a vegetação que cresce sem limites nas fachadas denunciam umidade e falta de zelo. Mas há também as estruturas que foram danificadas por incêndios. O mesmo acontece nas ruas Guindaste dos Padres e Algibebes, e nas transversais.
Em alguns dos edifícios mais deteriorados é possível ver o vazio por trás das fachadas. Os telhados mal se sustentam e estruturas de madeiras queimadas ou comidas por cupim tentam fragilmente manter o que resta do interior de pé. Nos menos danificados, aparece de imediato a necessidade de uma nova pintura, reboco em algumas partes da fachada e limpeza.
Juilson Silva, 44 anos, é comerciante informal no bairro do Comércio. Há 28 ele monta a barraca no mesmo ponto, na esquina da rua dos Ourives, transversal entre as ruas Miguel Calmon e Conselheiro Dantas. Em frente, fica a carcaça de um prédio que parece ter sido um endereço importante em algum momento da história.“Ele já está assim tem uns oito anos. Teve um incêndio e tudo. É uma pena, porque é um prédio muito bonito. Espero que eles [prefeitura] façam mesmo esse projeto acontecer, porque o movimento no Comércio está muito fraco. Com mais pessoas morando, terá mais gente nas ruas, e aí pode ser que isso melhore”, afirmou. Antes de iniciar a negociação para desapropriação dos imóveis, no entanto, a FMLF deve criar um fundo imobiliário, por meio de um contrato com a Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura), para captar recursos financeiros de investidores na bolsa de valores. A previsão é que o fundo seja registrado na CVM (Comissão de Valores Mobiliários), autarquia vinculada ao Ministério da Economia que regulamenta o mercado de ações mobiliárias, até outubro deste ano. Já a primeira fase do programa de habitação deve ficar pronta em junho do ano que vem, se a próxima gestão municipal levar o projeto adiante. Revitalização do Comércio Tânia Scofield, da Fundação Mario Leal Ferreira (FMLF), explica esse plano de habitação faz parte de um programa de revitalização muito maior, que objetiva dar uma cara nova para toda a região do Centro Histórico. Por isso que, nos últimos anos, a Prefeitura deu uma atenção especial ao bairro e trabalhou na requalificação das principais ruas, praças e monumentos, além de incentivar a mobilidade ativa, isto é, dando preferência para os pedestres e ciclistas.
Até agora, já foram reformadas a rua Miguel Calmon, as praças Cairu, Inglaterra, Marechal Deodoro e Terreiro de Jesus. Os próximos serão o elevador do Taboão, que estava desativado há mais de 50 anos, a Avenida Sete, a praça Castro Alves, o Mercado Modelo e a inauguração do Polo de Economia Criativa. “A perda da dinamização no bairro tem uma relação direta com a precariedade das áreas públicas. Se você requalifica e recupera esse espaço, dá outra dinâmica e é isso que a gente está trabalhando”, diz Tânia. Segundo ela, a intenção é expandir o plano habitacional para a cidade alta e contemplar todo o Centro Histórico.
Como o Comércio, como um todo, e divrsos imóveis são tombados individualmente pelo Iphan, as intervençõs lá precisam ser acompanhadas pelo órgão federal, visando a manutenção e preservação das características arquitetônicas e urbanístcias. Em nota, o Iphan informou que os critérios para aprovação dos projetos envolvem itens como "volumetria, gabarito e fachada, por exemplo, garantindo a manutenção dos valores que levaram os referidos bens ao tombamento, destacando-os como Patrimônio Cultural Brasileiro".
Bons olhos Os comerciantes mais antigos contam que nas últimas décadas houve uma debandada de empresários e moradores e que a região estava ficando abandonada. Antônio Chagas é proprietário de uma loja de roupas na rua Álvares Cabral. Ele tem 64 anos, 35 deles trabalhando no mesmo local. “Antigamente, havia mais lojas grandes e de marcas que funcionavam nas outras ruas, mas elas desapareceram. O movimento caiu e elas foram fechando. Agora, de um tempo pra cá, o movimento começou a melhorar um pouquinho. Abriram um barzinho aqui perto e sempre tinha movimento, mas aí veio a pandemia”, contou. Ele ficou animado ao saber do projeto de revitalização dos prédios antigos e acredita que com novos moradores no bairro as vendas possam aumentar. Quem trabalha há pouco tempo no Comércio também percebe os problemas. É o caso da promotora de vendas Débora Raquel Soares, 23. Ela está há três meses trabalhando em uma loja da rua Conselheiro Dantas.
“O projeto é interessante. Quem trabalha aqui sabe que o movimento é muito fraco, e desse jeito ninguém vai querer abrir novas lojas nessa região, por isso, eu acredito que o melhor é fazer desses prédios novas moradias mesmo”, disse.
Marcos Galrão Cidreira, vice-presidente da Associação Comercial da Bahia (ACB) - que atua nesse processo de revitalização do bairro há alguns anos - e superintendente da Fundação Instituto Miguel Calmon de Estudos Sociais e Econômicos (Imic) apoia as reformas feitas pela prefeitura. “A cidade ganha e a Bahia vai recuperando sua história”, diz. Porém, ele ressalta que outros órgãos, assim como os próprios proprietários, também têm que assumir as obrigações para preservar esses espaços. “Você tem reformas importantíssimas que estão sendo feitas, mas o projeto de revitalização do Comércio deve ser um compromisso e responsabilidade de todos. A Prefeitura não tem que assumir tudo sozinha”, pontuou Cidreira.Além disso, ele destaca que esse projeto de revitalizar o bairro, que é antigo, deve ser acompanhado de manutenção. “Ele deve ser definitivo, com manutenção do que foi feito. Construir e largar não pode”, afirma o vice-presidente da ACB. Atrair empresas Nesse sentido, o prefeito ACM Neto divulgou, na semana passada, um amplo pacote fiscal para retomar a economia soteropolitana após a pandemia. Dentre as medidas, que precisam ainda ser aprovadas pela Câmara de Vereadores, está o desconto de 50% no IPTU, válido por cinco anos, para as empresas de base tecnológica e startups que quiserem se estabelecer no bairro do Comércio. Além disso, elas serão isentas das taxas de TFF (Taxa de Fiscalização do Funcionamento), TLL (Taxas de Licença de Localização) e Taxa de Vigilância Sanitária (TVS).
Importância histórica
Dona de um dos maiores portos do mundo no século XVI a região do Comércio já foi uma das principais área da cidade. O CORREIO conversou com o historiador Rafael Dantas, que explicou os motivos das mudançasocorridas na área ao longo dos séculos, desde o surgimento da primeira capital do Brasil.
“Aquela região do Comércio era uma dos lugares de maior destaque da cidade. Salvador é uma cidade atlântica, de contato direto com o mar, e a região do Comércio retrata muito bem isso. O nome Comércio não é atoa, era alí que as mercadorias chegavam na região do porto, e tudo se desenvolvia em torno dessa sociabilidade muito intensa”, explica Rafael chamando atenção para a influência da presença humana na região. “Desde os primórdios da cidade, no século XVI, aquela região era a região das chegadas e partidas, de encontros de mundos e culturas”, completa
O historiador chama atenção, ainda, para a influência que o fato de Salvador ter sido capital do país surtiu na região. “O porto de Salvador, naquela região do Comércio foi um dos maiores do mundo nos séculos XVII e XIX. Ali no Comércio tínhamos sedes de bancos internacionais, o que mostra a relevância do lugar. Naquele tempo também era lugar de se morar, as atividades comerciais eram concentradas no térreo e nos primeiros andares e nos últimos andares haviam moradia também”, narra ele
A criação de outros vetores de desenvolvimento para a cidade começa a acontecer na metade do século passado e é uma das razões para que o Comércio fosse perdendo a relevância. “Entre as décadas de 60 e 70, no meio do século XX, Salvador passa por uma grande mudança com relação ao uso do seu solo, e outras áreas da cidade começam ser vistas, também, como atrativas do ponto de vista comercial e político, muito por conta da construção da Avenida Paralela, do Centro Administrativo da Bahia e do Shopping Iguatemi, e as atenções passam para outra área da cidade, repartições públicas saem de lá, o próprio comércio começa a ir para os shoppings”, explica Dantas.
O historiador ainda destaca que, apesar da desocupação, a importância histórica da região ainda é grande. “Cada um daqueles imóveis ajuda a explicar as transformações históricas da cidade ao longo dos anos. As fachadas falam da história”, diz ele, que ainda elogia a iniciativa de trazer de novo vida ao bairro. “Toda edificação histórica precisa estar ocupada, porque vazia vai se deteriorar. Ocupada, e especialmente por uma moradia, é uma forma de assegurar a manutenção do espaço, trazer uma série de atividades que vão parar lá por conta da participação e da residência das pessoas. Quem morar lá vai ajudar a manter todo um contexto de cidade que não tem estado presente. Quanto mais pessoas morando nas áreas históricas mais vida a gente devolve a lugar”, finaliza
*Sob orientação da chefe de reportagem Perla Ribeiro