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Alexandre Lyrio
Publicado em 25 de abril de 2020 às 10:00
- Atualizado há 2 anos
Primeiro enterramento índigena encontrado em Salvador (Foto: Bruno Concha/Secom PMS) Ele não desceu de uma estrela colorida e brilhante, mas foi impávido o suficiente para surgir no meio da Avenida Sete de Setembro, Centro de Salvador. Tranquilo e infalível, em plena pandemia de coronavírus, entre 500 e 700 anos depois de sua existência, seus restos mortais estavam junto a uma urna de sepultura tupi-guarani pré-colonial. Foi descoberto durante escavações realizadas pelas obras de requalificação da prefeitura na região. Mas, quem era esse índio? O que fazia da vida? O que ele tem a nos dizer nesse momento?
Bem, a peça tem 80 centímetros de comprimento, 60 de largura e foi encontrada próximo ao Relógio de São Pedro. De acordo com a equipe de arqueologia que a localizou, trata-se de uma tampa e um vasilhame com um esqueleto em boas condições de preservação. Não restam dúvidas de que estamos diante de um indígena que viveu em Salvador entre os séculos XIV e XVI, portanto, o primeiro tupi-guarani a ter o corpo achado na primeira capital do Brasil.
Existiram outros achados em território baiano. Mas, em Salvador, ainda mais no coração da cidade, nunca se escavou nada parecido. Possivelmente, aliás, nosso índio (ou índia) não era um qualquer. Já que foi encontrado junto com uma urna de cerâmica decorada, é possível que fosse alguém importante para determinada aldeia ou aldeamento. “Acredita-se que só pessoas especiais eram enterradas dessa forma”, afirma o arqueólogo coordenador da obra, Cláudio César de Souza e Silva. Posição fetal: vai como veio ao mundo (Foto: Bruno Concha/Secom PMS) Fato é que a religiosidade era algo bastante presente na cultura desse povo. A questão espiritual e ritualística, além da relação deles com a morte, eram características muito fortes. “O esqueleto que encontramos, por exemplo, está em posição fetal. Assim como ele veio ao mundo, ele vai embora. A importância que eles davam ao funeral é uma característica desses grupos. Viam a morte como algo que deve ser respeitado e celebrado”, revela o arqueólogo.
“Um achado desse nos mostra, especialmente nesse momento de pandemia, o quanto somos frágeis”, observa Cláudio. O especialista reitera que o achado comprova a existência de índios da tradição tupi na área. “Aqui em Salvador, a gente não tinha encontrado ainda um enterramento tupi. No máximo, fragmentos de cerâmica indígena, mas não em um contexto de funeral indígena. É um fato inédito nesse sentido”, garante o arqueólogo.
Uma das maiores especialistas em estudos com ênfase na história indígena, a professora Maria Hilda Paraíso, cientista social e antropóloga da Universidade Federal da Bahia (Ufba), calcula que, logo que os portugueses chegaram, havia seis aldeamentos na região do Centro, nas imediações do Campo Grande, inclusive Avenida Sete. Em toda Salvador e região, inclusive locais em que hoje é o Subúrbio, Pirajá, Itapuã, Barra e Chapada do Rio Vermelho, eram quase 30. Também tinha aldeamentos em cidades vizinhas, como São Francisco do Conde, Santo Antônio de Jesus, Mata de São João e Itaparica.
“É preciso diferenciar aldeia de aldeamento. Os aldeamentos eram administrados pelos brancos jesuítas. A essa altura, depois que os portugueses chegaram, eram poucas aldeias mais isoladas”, explica. Maria Hilda diz que o achado da Avenida Sete pode revelar muito de um povo que sempre teve sua história “colocada para debaixo do tapete”. “Os indígenas foram dizimados. Não por acaso sempre se fez questão de esconder isso. Por isso, é tão difícil dizer como eles eram antes. Cada achado desse traz revelações importantes”, Acredita Maria Hilda.
Vasilhame
A cerâmica encontrada com o corpo foi fundamental para se ter a certeza de que se trata de um índio tupi. “A cultura material mais associada a esse grupo indígena é a cerâmica. Se compararmos com outras pesquisas, a decoração da cerâmica, a forma semi oval, o estilo do vasilhame encontrado e as técnicas utilizadas nos levam ao entendimento que se trata da tradição tupi”. Mas os índios não tinham apenas a cerâmica como característica cultural. É possível afirmar que a religiosidade também estava bastante presente. A questão espiritual e ritualística, a relação deles com a morte no instante dos enterramentos tem diversas particularidades, conforme mostra também o novo achado. Como já se viu em outros achados ao redor do mundo, este esqueleto está em posição fetal. A simbologia é clara: vai embora como veio ao mundo. A importância que eles davam ao funeral é uma característica desses grupos. Decoração e formato da cerâmica confirma tradição tupi (Foto: Bruno Concha/Secom PMS) O lugar do achamento, bem no Centro de Salvador, também traz reflexões. Afinal de contas, ali é um local em que a Igreja Católica fincou boa parte de suas igrejas no processo de criação da cidade. “Nos faz pensar do que representou a igreja para esses índios e como se deu esse encontro de culturas. Justamente em uma avenida que tem quatro, cinco igrejas a gente encontra esse vestígio indígena praticamente embaixo desses centros religiosos. Mas isso talvez mostre a imposição de uma cultura sobre a outra e a geopolítica estabelecida pela igreja. É uma cultura sobrepondo a outra. Será que é por acaso que se ergueu tanta igreja naquele local ou foi para dominar?”, questiona o arqueólogo.
DNA
Na verdade, o estudo está apenas no início. Depois de localizado e retirado do lugar com a utilização cuidadosa de técnicas da arqueologia, a partir de agora, se inicia uma nova pesquisa para identificar muito mais. Serão feitos, por exemplo, estudos do DNA da ossada e do solo (sedimento) onde estava o enterramento. A própria cerâmica, encontrada junto com o corpo será analisada. Achado surgiu no coração da cidade (Foto: Bruno Concha/Secom PMS) “Esse achado pode trazer diversas informações sobre a cultura material encontrada. Isso pode trazer muitas respostas e conhecimentos a respeito dessa sociedade que a gente já sabia que existia aqui antes mesmo de os portugueses chegarem. Faltava a prova material”, explica Cláudio. O período ao qual faria parte o achado, entre os séculos XIV e XVI, será mais precisamente definido após análises de laboratório. Pelas primeiras características, a partir de estudos pré-existentes, é possível estimar que esse índio viveu aqui entre 700 e mil anos atrás. Ou seja, ainda não é possível afirmar com certeza se esse índio teve ou não contato com os brancos.
Se o século XVI está entre as possiblidades, o nosso indígena pode ter tido contato com os primeiros europeus. “Pelas escavações não encontramos contextos associados à cultura europeia. Mas isso não quer dizer que a gente não possa ainda localizar algo. O resgate desse sepultamento foi feito em bloco. Agora que a gente vai iniciar uma pesquisa em laboratório. Existem também alguns meios de estabelecer a datação, a exemplo da termoluminescência”, explica.
Artefatos históricos
Mais de 12 mil artefatos históricos foram retirados da Avenida Sete e da Praça Castro Alves durante o período de requalificação. Além das estruturas fixas, como o achado da Praça Castro Alves (restos de uma fonte e do Teatro São João), foram encontrados ossos humanos, moedas, cachimbos, uma bala de canhão, garrafas de vidro, além de contas de colares e faianças (cerâmicas) portuguesas do século XVI.
As estruturas da Igreja de São Pedro e uma fonte de água foram outros itens encontrados durante as escavações na altura do Relógio de São Pedro. Uma imagem de Nossa Senhora do Rosário ou da Saúde também foi achada na via. O trabalho de arqueologia teve três etapas (prospecção, resgate e monitoramento) e foi autorizada previamente pelo Iphan, que acompanha todos os achados e autoriza o resgate do material do solo. O terceiro trecho (entre o Relógio de São Pedro e o Sulacap) está agora passando por resgate, quando materiais são recolhidos do solo. Após o fim das obras, todos os materiais serão transportados e disponibilizados para estudo no Centro de Antropologia e Arqueologia de Paulo Afonso.
Para um arqueólogo, encontrar um achado como o índio da Avenida Sete pode ser o ápice da profissão. É possível até imaginar que nada daquilo é por acaso. “Deixando de lado o lado cientifico, pensei que estava diante de alguém que estava no meu caminho e no caminho de minha equipe”, disse Cláudio, que logo volta à realidade. “Agora falando cientificamente, um achado que pode ajudar a ciência a entender os nossos ancestrais um pouco melhor. É só conhecendo que podemos respeitar e, consequentemente, preservar”, pondera.
Assassinatos e doenças dos brancos dizimaram indígenas
Antes da chegada dos europeus, os tupis eram povos nômades que buscavam sempre locais cada vez aptos à vida dos seus. Suas aldeias mudavam de lugar em prol da melhoria das atividades de subsistência. Eram sociedades de horticultores que também “O instinto humano os levava a se mover. Mas eles também já eram um povo da agricultura, por exemplo”. Originalmente, segundo teóricos indigenistas, os tupis saíram do norte, na região amazônica, e se encontraram com os guaranis. Assim surgiu o povo tupi-guarani. “Esses povos dominaram todo o litoral brasileiro, interior de Minas Gerais, Goiás e Mato Grosso. Mas o forte mesmo foi no litoral”, afirma o arqueólogo Cláudio César.
“Costumo dizer que foram os tupis que inventaram o veraneio. Eles já viviam perto do litoral, mas, no verão, costumavam se aproximar ainda mais da costa em busca de frutos da época”, confirma a professora Maria Hilda.
No início do século XVI, os brancos chegaram. Além dos conflitos que existiram para a dominação, os europeus trouxeram doenças, inclusive vírus mortais. Por isso, no mínimo curioso, os restos mortais de um indígena pré-colonial surgir em meio a uma pandemia. Boa parte dos índios brasileiros morreram vítimas de doenças como o sarampo.
A antropóloga Maria Hilda Paraíso afirma que é impossível saber quantos indígenas foram mortos, entre assassinatos e doenças. “Qualquer um que tente fazer essa conta estará chutando. Acredita-se que cada aldeia poderia ter entre 300 e 400 índios. Mas partir desse número para se chegar ao tamanho real do estrago é complicado. O fato é que foi um genocídio, inclusive cultural”, lamenta. “Por isso, é tão importante a gente dar voz a esses indígenas que viveram aqui. Esse achado mostra a nossa fragilidade. Esses indígenas receberam doses de vírus dos brancos em toda a América. Vírus e violência”, concorda Cláudio Silva.
Aldeias e aldeamentos que existiram em Salvador e Região
- Aldeias autônomas:
Rio Vermelho, entre Brotas e Cabula, Itapuã, Rótula do Abacaxi, entre São Lourenço e Santo Antônio, entre Itapuã e São Caetano, Itapagipe
- Aldeamentos jesuíticos:
Vila Velha no Porto da Barra (Curupeba na Ilha de Madre de Deus), Calvário no Carmo (São Lourenço entre a Chapada do Rio Vermelho e a foz do Camarugipe - São Paulo na Baixa de Quintas), São João de Plataforma em Plataforma (Nova de São João no município de Mata de São João), Santiago (em Pirajá), Simão entre o Forte de São Pedro, Passeio Público e Gamboa (São Sebastião perto do aldeamento de Simão), Santa Cruz de Itaparica em Baiacu (Sergipe do Conde em São Francisco do Conde), Santo Antônio de Jaguaripe em Santo Antônio de Jesus - Nossa Senhora da Encarnação do Passé, em Passé.