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Da Redação
Publicado em 20 de junho de 2022 às 05:15
Já são mais de nove meses sem o sorriso, os afagos e o café preparado com todo o carinho. “Quando chegava do trabalho, encontrava ele sorrindo no sofá. Perguntava como foi o meu dia e já deixava o ‘menorzinho’ para mim e a mãe dele”, relembra o pai do estudante Marco Gabriel Oliveira Mota de Souza, 18 anos. O rapaz e um amigo foram assassinados depois que traficantes chegaram atirando em uma festa, no bairro de São Caetano. À dor, soma-se a revolta: “Até hoje a polícia não diz nada. A impunidade dói também”, desabafa o pai. O caso de Marco Gabriel chama atenção para o fato de que 78% dos homicídios investigados na Bahia ficam sem solução.
A informação consta na quarta edição da pesquisa Onde Mora a Impunidade, do Instituto Sou da Paz, que mostra a taxa de esclarecimentos sobre assassinatos e outros tipos de crime contra a vida no Brasil, em 2020. O levantamento foi divulgado no ano passado pela instituição, que tem o título de Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (Oscip) concedido pelo Ministério da Justiça. No ranking, a Bahia ocupa a 3ª posição de homicídios não solucionados, quando não é possível provar a autoria ou materialidade ou as duas condições, perdendo apenas para o Rio de Janeiro (86%) e Paraná (88%).
O objetivo do estudo é responder questões sobre a proporção dos homicídios dolosos que resulta em ações na Justiça em cada uma das unidades federativas do Brasil e quantos familiares de vítimas têm garantido pelo Estado o direito a uma resposta.
“A delegada disse à minha esposa que a gente tinha que trazer mais informações para eles [a polícia], porque a polícia não tem recursos para ficar indo lá [no local do crime]. Isso para mim é descaso, falta de humanidade”, declarou o pai de Marco Gabriel, que pediu para não ser identificado na reportagem.
O filho dele estava no segundo ano do curso de engenharia em uma faculdade particular e era também Menor Aprendiz em um banco. No dia 07 de setembro do ano passado, Marco Gabriel e o amigo, Lucas Gabriel da Conceição dos Santos, que cursava radiologia, foram comemorar com os vizinhos a vitória do time local, em uma festa do tipo paredão na comunidade da Gomeia. Instantes depois, traficantes chegaram atirando aleatoriamente e os amigos foram atingidos. Os dois jovens eram filhos únicos.
Inquérito sem fim A investigação sobre as mortes de Marco Gabriel e de Lucas ainda está na fase de inquérito, no Departamento de Homicídio e Proteção à Pessoa (DHPP). De acordo com a pesquisa do Instituto Sou da Paz, quanto mais tempo demora a atividade investigativa, mais difícil fica a identificação dos autores de um crime, com maior possibilidade de o inquérito ter como destino o arquivamento.
Para acelerar o tempo de resposta às apurações, a Secretaria de Segurança Pública (SSP-BA) inaugurou, em 2016, no Centro Administrativo da Bahia (CAB), um Centro de Operações e Inteligência (COI), maior estrutura da América Latinha, e criou centros regionais integrados (CICOM), além de núcleos de tecnologia nas Polícias Civil e Técnica, um investimento total de R$ 250 milhões do governo do estado.
Porém, apesar de todo o investimento, os avanços no esclarecimento de crimes seguem lentos. “Avanços tecnológicos na área de segurança pública devem acompanhar o entendimento de que para que serve a segurança pública. Se temos um modelo baseado na violência, repressão, racismo, estigmatizarão, controle dos territórios negros, a tecnologia vai servir para o aprofundamento dessas desigualdades e não para a proteção da vida. É fundamental que a gente conecte o investimento na segurança pública com o investimento em ciência para produzir melhores saídas para os atuais problemas e também decisões políticas importantes, difíceis de serem tomadas, mas que são urgentes, como por exemplo, a superação do modelo baseado na guerra às drogas”, avalia Dudu Ribeiro, que é coordenador-executivo da organização da sociedade civil Iniciativa Negra e coordenador da rede de Observatórios de Segurança na Bahia.
Em dezembro de 2018, o governo do estado implantou o projeto de Vídeo Policiamento – sistema que faz o reconhecimento facial de pessoas e placas de veículos, compartilhando informações em tempo real com operadores no COI. O programa custou R$ 18 milhões. “O reconhecimento facial é alvo de várias críticas por parte da rede de Observatórios. Há muitos casos de pessoas negras que foram abordadas e até presas por engano devido ao reconhecimento facial e o racismo do algoritmo [quando sistemas que dependem de algoritmos são programados de forma que perpetuam ou escondem preconceitos raciais já presentes na sociedade]”, aponta Luciana Santana, cientista social e pesquisadora da rede de Observatórios de Segurança na Bahia.
Consequências A impunidade trouxe às famílias de Marco Gabriel e Lucas Gabriel o medo de represália dos bandidos. Os pais dos dois não moram mais em Salvador. “A não elucidação dos crimes impõe à população um clima de terror, por passar a conviver com a impunidade e ali passa a existir um estado paralelo, um estado de exceção, onde impera nessas comunidades o toque de recolher, a lei do silêncio, o medo. Isso muda o hábito da população, pois para entrar e sair do bairro tem de haver identificação prévia”, enumera Eustácio Lopes, presidente do Sindicato dos Policiais Civis (Sindpoc).
O deputado estadual Soldado Marco Prisco (União Brasil), membro da Comissão de Direitos Humanos e Segurança Pública da Assembleia Legislativa da Bahia (Alba), comenta os indicadores da Bahia no levantamento do Instituto Sou da Paz: “Além dos casos que ficam sem solução, temos consequências drásticas. A população da Bahia está com medo. Os comércios estão fechando, o turismo está baixando. A situação está caótica”, afirma.
Cabe à Polícia Civil investigar as infrações penais, sejam as que chegam à corporação via boletim de ocorrência (BO) ou por outros meios. A PC verifica se existiu um crime de fato, quem é o autor e a materialidade. “Como identificar criminosos em delegacias desestruturadas? O departamento de homicídios (DHPP) é uma vergonha. A sua estrutura interna funciona de forma precária, não temos servidores suficientes. Temos quase 200 delegacias sem delegados para tocar as investigações. Às vezes tem delegado, mas não tem escrivão e nem investigador. No interior faltam computadores, não tem internet, departamentos funcionam com internet paga pelo próprio delegado”, critica o delegado Fábio Lordello, presidente do Sindicato dos Delegados de Polícia do Estado da Bahia (Adpeb). A reportagem procurou a SSP para saber o que deu errado após tantos investimentos da gestão do PT em tecnologia, com um saldo de pouquíssimos resultados no esclarecimento dos crimes. O órgão respondeu que "é a Polícia Civil a reponsável por elucidar e finalizar inquéritos". A Polícia Civil também foi procurada para responder porque os autores dos assassinatos de Marco Gabriel e Lucas Gabriel não foram até hoje identificados. Nenhuma resposta foi enviada.
'Tecnologia sem efetivo é ineficaz'
A pesquisa Onde Mora a Impunidade, do Instituto Sou da Paz, revela que a Bahia tem apenas 22% de homicídios solucionados, a metade da média brasileira, que é de 44%, apesar da cifra investida na área, de 2016 para cá. Como explicar o paradoxo dos avanços tecnológicos na contramão de um percentual tão pequeno de efetividade do trabalho policial?
“O Centro de Operações, COI, é completamente inútil do ponto de vista da necessidade de gestão de investimento em outras áreas. Gastou-se quase R$ 300 milhões no prédio. Investiu-se muito em um prédio que funciona de forma precária, com salas praticamente fechadas e sem nenhuma efetividade para o combate à criminalidade. Nossa entidade denunciou várias vezes esse investimento desnecessário, mas de nada adiantou”, acrescenta o presidente da Adpeb, delegado Fábio Lordello.
Segundo a Adpeb e o Sindpoc, a Bahia tem hoje o efetivo de 5.500 servidores na Polícia Civil, entre delegados, investigadores e escrivães, quando deveria ter 11.052. “Os CICOMS foram construídos no interior retirando servidores da Polícia Civil, esvaziando as nossas unidades - nosso contingente é mínimo - para fazer atendimento de telefone. Tínhamos que pegar os servidores para a investigação, que é o produto da Polícia Civil”, diz Lordello.
Já o presidente do Sindpoc aponta que o COI foi utilizado para outras finalidades. “O governo derramou milhões no centro de operações, mas essa ferramenta não chegou na ponta, nas delegacias, onde os policiais civis identificam a mancha criminal. A SSP tem um centro de inteligência, mas foi usado para fins diversos como a população acompanhou, com uso indevido do serviço de inteligência através de membros da SSP fornecendo informações sigilosas”, acrescenta ele, em referência à Operação Faroeste, que, em dezembro de 2020, resultou no afastamento do então secretário de Segurança Pública, Maurício Telles Barbosa. A operação investiga suposto esquema de venda de sentenças por juízes e desembargadores do Tribunal de Justiça da Bahia (TJ-BA). Segundo a Procuradoria-Geral da República (PGR), o ex-chefe da SSP usava o cargo para proteger integrantes do esquema. Com a saída de Barbosa, a segurança pública está sob o comando de Ricardo Mandarino.
A falta de investimentos afeta ainda a base da pirâmide da SSP-BA, a Polícia Militar, que é responsável pelo policiamento ostensivo, que se constitui em medidas preventivas e de segurança para evitar delitos e violações de normas. Mas a tropa hoje é de 28.649 policiais, 60,6% menor do que o necessário, segundo o Boletim Geral Reservado (BGR) da PM-BA, de 30 de agosto de 2021. Para se ter uma ideia: é um PM para cada 523 habitantes
“Se o governo realmente priorizasse a segurança, não gastasse tanto dinheiro em propaganda e investisse em prioridades como equipamentos para os policiais, não equipamentos de mentira... Não adianta colocar viaturas se não tem efetivo, então teria que colocar pelo menos mais 20 mil homens. As unidades onde policiais trabalham estão sucateadas”, sentencia o deputado estadual Soldado Marco Prisco.
MS tem quase 90% de efetividade
O Mapa da Impunidade do Instituto Sou da Paz mostra que o Mato Grosso do Sul (MS) é o estado que mais resolveu homicídios em 2020, com percentual de 89% de efetividade. A reportagem procurou a Secretaria de Segurança do estado do Centro-Oeste brasileiro, que indicou como fonte o titular da Delegacia Especializada de Repressão aos Crimes de Homicídio (DEH), delegado Carlos Delano. Para ele, “não há nada de extraordinário” no desempenho da polícia sul-mato-grossenses.
“É uma questão de seguir os protocolos disponibilizados pela Secretaria Nacional de Segurança Pública (Senasp), no Ministério da Justiça, que vem construindo um modelo de gestão e as polícias se adequando, com os melhores resultados. Capacitação dos agentes, policiais militares e guardas para que não ocorra a contaminação da cena de crime a fim de preservar as provas; e investimento em tecnologia de ponta, como adesão à softwares, por exemplo”, cita Delano.
Em maio de 2016, a Senasp e o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) lançaram o estudo Indicadores Multidimensionais de Educação e Homicídios nos Territórios Focalizados pelo Pacto Nacional pela Redução de Homicídios. O documento tem o objetivo de apresentar o papel central que a educação desempenha para mitigar a criminalidade violenta.
Segundo a pesquisa do Ipea, o Brasil responde por mais de 10% do total de homicídios do planeta, com cerca de 65 mil assassinatos por ano.