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Thais Borges
Publicado em 7 de agosto de 2021 às 05:05
- Atualizado há 2 anos
A maioria dos casos de assédio sexual no Instituto Federal da Bahia (Ifba) nunca veio à tona - assim como acontece em qualquer instância da sociedade. No entanto, eles podem afetar desde a saúde mental das vítimas até a vida acadêmica delas.
O CORREIO conversou com quatro estudantes e ex-estudantes que sofreram o assédio em algum momento de sua trajetória escolar. Pelo menos duas delas abandonaram o instituto antes de completar o curso.
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Conheça suas histórias a seguir:
Miranda*, 25 anos, saiu do Ifba antes de terminar o curso depois que foi assediada
“Saí do Ifba em 2018. Minha experiência lá sempre foi muito difícil, porque sempre existia uma tensão muito grande pelo fato de eu vir de escola pública. Todo mundo que entra como estudante de escolas pública já sabe que a trajetória vai ser bem mais complicada que os outros. A maioria perde no primeiro ano, mesmo sendo bom aluno nas escolas de onde vieram. Eu vivi isso.
Minha vida acadêmica foi muito complexa por conta disso, como mulher preta e com minha mãe sendo empregada doméstica. Ouvi muito de professores, principalmente nas áreas técnicas, coisas como ‘você não vai passar de ano, você não tem condição de passar’, na frente de outras pessoas. E eu passei no Ifba em terceiro lugar sem os critérios de cotas, porque minha nota tinha sido boa.
Nesse meio tempo, acabei me envolvendo muito com a questões afirmativas na instituição, movimentos estudantis. E foi muito bom. Só que, nesse auge de minha história como estudante, aconteceu uma situação que me desestruturou completamente entre o final de 2016 e o início de 2018.
Eu estava terminando o segundo ano e, lá a gente faz muito desenho técnico. Todo sábado, nós tínhamos que ir para o Ifba fazer as atividades. Um belo dia, tive o azar de me atrasar. Mas não estava tão atrasada assim. A gente usava as mesas de desenho e conseguia ficar até três da tarde, chegando por volta de 11h30, que era o horário que quem ia embora. Assim, só ficava o pessoal da limpeza e quem estava fazendo atividades.
Estava chegando na instituição e o segurança me barrou porque eu não poderia entrar. Achei estranho porque o pessoal da minha turma tinha me mandado mensagem que estava me esperando. Fiquei desesperada. Ele disse: ‘espere um pouco aqui para ver se você pode entrar’. Achei estranho, mas não ia bater de frente. Do nada, a portaria ficou vazia. Esse segurança me pegou pelo braço, me puxou para uma parte da escola onde a câmera (de vigilância) não pegava. Ele aproveitou que eu estava de short, passou a mão em mim e falou que eu era muito gostosa, que há muito tempo queria pegar me pegar, mas não tinha oportunidade. Parecia que meu mundo tinha parado. Eu travei, mas consegui sair da paralisação que eu estava e saí correndo. Cheguei no terceiro andar do nosso pavilhão desesperada, contando o que tinha acontecido, e ninguém entendeu muita coisa. Eu também não entendia, mas estava com muito medo. Terminamos a atividade entrei em contato com um amigo para que ele me ajudasse a comprar uma mesa de desenho, porque eu nunca mais ia desenhar lá na escola.
Passaram umas duas semanas, criei coragem e procurei uma pessoa da equipe de pedagogia da instituição e contei o que tinha acontecido. Ela me chamou num espaço reservado e perguntou quantos anos eu tinha. Eu disse que tinha acabado de fazer 18. Ela respondeu: ‘olha, você já é maior de idade. Pode ir numa delegacia e prestar queixa. Mas saiba que é um pai de família. Você pode colocar um pai de família a perder’. Aquilo me deixou sem chão. Me senti totalmente desamparada. Entendi o que ela quis dizer como ‘se você for denunciar, saiba que vai fazer isso sozinha’.
Fiquei bem triste, mas segui. Não desisti, continuei estudando e consegui comprar minha mesa de desenho para fazer meus trabalhos em casa. Mas todos os dias,aquela pessoa que era um completo desconhecido, que eu nunca tinha visto, passou a se fazer presente. Todos os dias, fosse a minha chegada ou minha saída, eu via aquele homem. E ele fazia questão de me cumprimentar, me deixando desconfortável.
Mas eu tinha que continuar a vida e assim passou o ano de 2017. No começo de 2018, eu estava indo para casa, passando pela frente do Shopping da Bahia. Com o final fechado, me distraí. Até que vejo uma mão me segurando pelo braço e chamando ‘vem cá, quero falar com você’. Virei e era aquele segurança. Saí desesperada, correndo entre os carros e peguei o primeiro ônibus que vi pela frente. Ali, tudo começou a dar errado porque passei meses sem conseguir enfrentar, sem conseguir ir para a escola, porque eu botei na cabeça que ele tinha ido atrás de mim, que sabia onde morava, que sabia meu trajeto e ia me encontrar de qualquer jeito. Eu me arrumava para ir pra escola e não saía de casa. Todo dia eu inventava coisas para não ir. Perdi no terceiro ano. Passei nas matérias curriculares, mas, nas técnicas que precisava de mais atividades práticas, eu não participava e acabei comprometendo meu currículo. A coordenadora do meu curso me chamar pra conversar. Senti vontade de falar o que aconteceu mas lembrava da pedagoga. Então, só fiquei olhando para ela fixamente sem conseguir ouvir uma palavra.
Quando perdi de ano, tive oportunidade de repetir. Mas não me sentia mais com força para continuar estudando. Meus amigos me deram o maior apoio pra continuar, mas era o medo que não me deixava. Acabei abrindo mão do meu curso, estudei para o Enem e passei no BI.
É uma situação tão louca, que afeta tanto a mente, que eu levei muito tempo pra entender que não era algo que tinha a ver comigo. A roupa que eu estava usando naquele dia eu queimei porque achava que o fato de estar de short, de estar mais à vontade na escola, poderia ter influenciado na atitude. Por muito tempo acreditei nisso. Depois, eu comecei a me cobrar que era minha responsabilidade, principalmente por ter sido do grêmio, falar o que aconteceu, para que não acontecesse com outras meninas. Mas eu tinha medo de falar. Resolvi só sair e seguir minha vida.
Fui a primeira mulher da minha família a entrar na universidade. Da parte da família da minha mãe, fui a única que consegui concluir o Ensino Médio. E quando me vi abandonando o Ifba, foi como se tirassem de mim o direito de dar esse orgulho para minha mãe. Eu sinto até hoje como se tivessem tirado uma coisa de mim, um direito que eu tinha. Tinha tudo pra dar certo, mas por causa de uma pessoa completamente desequilibrada, tudo deu errado. Eu lamento muito por isso que aconteceu porque foi muito mais que do que mexer com meu corpo. Ele mexeu com meu psicológico. Eu não consigo confirmar em mais ninguém de instituição nenhuma.
Mas o Ifba me trouxe muitas coisas boas. Me tornei uma pessoa que eu jamais imaginaria que eu pudesse ser, com a força de poder ajudar minha comunidade e influenciar as pessoas da minha casa. Isso eu aprendi no Ifba. Tive muitas experiências ruins, mas não posso desmerecer as coisas boas. Tenho entendimento que ainda falta uma reinvenção, falta usar o técnico e o humano juntos. Enquanto isso não for possível, a gente vai continuar dando murro em ponta de faca”.
Ravena*, ex-aluna do Ifba, é uma jovem de 21 anos que saiu da instituição antes de completar o curso
“Minha relação com o Ifba é de muita gratidão e admiração pela instituição em geral. Eu ingressei no Ifba em 2016 e tinha 15 anos. De fato, é uma instituição que tenho muito apreço e admiração. Apesar de algumas coisas, a instituição em si é muito benéfica, para o aluno em geral. Minha experiência de assédio foi diretamente com o setor de Humanas do Ifba. Não sei se é cabível citar nomes, mas basicamente ingressei com 15 anos e minha primeira experiência foi com 15 anos. Não identifiquei na época porque eu era criança e a gente não percebe algumas coisas. Depois de alguns anos que permaneceu o assédio, foi que eu me toquei. Na época, eu tinha um professor que já tinha sido aluno de um tio meu. Então, ele começou a introduzir uma história de admiração pelo meu tio, que ele tinha sido uma peça fundamental na formação acadêmica dele. Com isso, ele começou a ganhar meu afeto e ele era jovem em relação à faixa etária do (dos professores) Ifba.
Eu descobri em 2016 que ele fazia aniversário no mesmo dia. Uma vez, ele virou para mim, disse que tinha viajado na data do aniversário para Argentina e que trouxe um presente para mim de lá. Eu não tinha percebido maldade até então e achava que ele só gostava de mim pelo fato de ele ter sido aluno do meu tio. Não tinha visto com apelo sexual nem nada do tipo. Ele nunca chegou a dar o presente, mas prosseguiu com a história.
Passou esse primeiro ano e, no segundo, não tive mais contato. Mas eu o tinha nas redes sociais, até porque era por lá que ele entrava em contato para falar de assuntos relacionados à escola, trabalhos, etc. Comecei a namorar com um rapaz do Ifba e isso foi abrindo meus olhos. Esse rapaz me falava que isso estava errado, que professor não conversa com aluna, que ele estava me assediando. E eu fui me tocando do que realmente estava acontecendo. Começaram algumas sequencias de assédio muito escancaradas, com esse professor comentando fotos minhas no meu privado, mandando mensagens claramente dando em cima, flertando. Eu tinha 15 anos, logo fiz 16, mas ainda era menor de idade. Após meus 16 anos, ficou muito escancarado e eu ficava muito assustada. Achava horroroso primeiro que ele era professor, segundo que era muito mais velho. Mas a gente fica com muito medo de criar inimizade com professores porque já tem o medo de estar sendo dispensada da instituição por nota. Então a gente faz de tudo pra ter uma boa convivência. Fiquei muito tempo neutra. Às vezes esses comentários desnecessários me incomodavam muito, eu cortava demais. Ele mandava mensagem, eu não respondia. Teve momentos em que até fui grossa para ver se ele se tocava, mas não funcionou. Eu fiz 17 anos, mas meu relacionamento com aquele rapaz acabou.
Esse professor entrou em contato comigo de novo e acho que, na época, para deixar meu ex chateado ou algo do tipo, não que eu tenha dado permissão para ele fazer nada comigo, mas parei de ser grossa com ele. Mas, na cabeça dele, foi uma permissão pra ele voltar com as sequências de assédios.
Ele voltou a ser meu professor no meu último semestre lá no Ifba e foi uma coisa que me deixou apavorada, porque eu conseguia fugir dele na instituição. Mas ele voltando a ser meu professor, eu ia vê-lo pelo menos uma vez por semana. Comecei a entrar em pânico, primeiro por constrangimento. Eu pensava: ‘tenho 16, 17 anos, sou uma criança. se ele olha pra mim e está sentindo algum tipo de atração, ele no mínimo deve ser um pedófilo’.
Ele entrou em contato comigo através do Whatsapp. Acho que ele conseguiu o número através do grupo da turma, porque não fui eu que dei. Nesse último ano, eu estava com muito medo da reprovação e ficava com mais medo ainda de dar patada nele, de ser grossa. E só quem sabia eram poucas pessoas do meu ciclo social.
Depois que ele conseguiu meu Whatsapp, ficava mandando mensagens muito sugestivas e bizarras perguntando o que eu estava fazendo. Ele mandava foto do que estava fazendo, falando que queria marcar alguma coisa comigo. Passou um tempo e vi que ele não ia se tocar, porque foram três anos e ele não se tocou.
Bloqueei ele do Whatsapp, das redes, para ele nunca mais entrar em contato comigo e falei da situação para outras pessoas. Aí eu percebi que ele fazia isso com outras meninas. Eu achava que era só comigo e ficava com medo de falar. Como ele era muito querido dentro da escola, eu ficava com medo de falar e não acreditarem em mim.
Foi quando chegou no meu limite. Eu não conclui meu ensino técnico. Primeiro pela falta de identificação com o curso de eletrônica. E segundo porque foi ele que impulsionou minha saída da instituição. Acho que se não tivesse acontecido isso no último semestre, eu conseguiria sustentar mais um pouco, até o terceiro ou quarto ano. Saí no finalzinho do segundo ano. Já estava praticamente aprovada em todas as matérias, mas isso que estava me chateando tanto que optei por sair. Nunca levei para a direção porque tive medo que trouxesse problema para mim. Não sei o que se passa na cabeça desses professores assediadores”.
CHARLOTE*, 20 anos, é uma jovem que ainda é estudante do Ifba
“Quando eu entrei no Ifba, tinha um professor que ficava me assediando mesmo. Teve uma vez que ele falou que precisava de grupo no Whatsapp para se comunicar com a turma. Através desse grupo, ele pegou meu número e ficou falando no privado. Respondia alguns destaques, principalmente se eu postava algo de bíquini. Bloqueei ele dos status, mas eu não sabia como me portar, era nova lá.
Como só bloqueei ele dos status, vieram algumas conversas que, para mim, eram constrangedoras. Ele falava coisas como que ‘gostava de domesticar’ e outras coisas bem absurdas. Ele não falava só para mim, mas também com uma amiga minha. Fui assediada por ele durante quase todo o meu primeiro ano.
Eu não sabia o que fazer, nunca reclamei mesmo na instituição. Isso foi em 2017, quando eu tinha 16 anos. Eu não denunciei por medo mesmo, porque, como ele fazia isso pelo Whatsapp, eu tinha provas. Mas foi medo de não dar em nada e acabar me prejudicando de alguma maneira. Isso me atrapalhou na disciplina dele, porque quando eu ia para a aula, ele ficava me olhando muito. Todo mundo percebia. Percebiam tanto que tinha colegas meus que falavam que iam fazer trabalho comigo porque diziam que, independente do trabalho, ele me dava nota aula. Eu ficava constrangida com a situação. Acredito que seja comum para outras alunas. No ano passado, começamos a tentar ter aulas remotas mas não eram obrigatórias. Não ia contar para nossa formação. Na minha turma, ele ficou como professor no ano passado. Eu não participei só de saber que ele estaria.
Pelo que eu sei, ele faz isso com muitas alunas, principalmente do primeiro ano que são ingênuas e nao vao reportar o que ele faz. Tanto que teve um debate recente (online) com ele e outro professor que as alunas começaram a falar em relação ao assédio, que eles eram assediadores.
Acho que tem uma cultura machista sim, porque já teve situações com outros professores e alunas denunciaram mas os processos nunca deram em absolutamente em nada. Acho que hoje a gente pode ter mais solução, mas antigamente não tinha. Acho que falta punição de verdade.
Eu diria que a maioria deles é machista. Não consigo tirar um. Eles se sentem bastante à vontade, o incrível é isso. Já pensei em desistir do Ifba, mas eu vi que não valia a pena para mim, porque ia ter que voltar tudo de novo. Então eu vou aguentando”.
Conrado*, 18 anos, um jovem estudante LGBT que ainda está no Ifba
“Eu estudo lá desde 2018 e minha primeira situação foi no primeiro ano, quando um professor começou a ter brincadeiras bem estranhas. Mas, como eu era calouro, eu não enxergava malícia naquilo. Para mim, eram simples brincadeiras de professor, mas eram brincadeiras sobre meu corpo. A ápice foi no encerramento do ano letivo, quando ele me chamar para ir no departamento da disciplina dele, sendo que ele estava lá sozinho. Como eu já estava desconfiado de toda aquela situação, eu levei o celular de uma amiga pra gravar caso acontecesse algo. Disse a elas que, se eu demorasse mais de cinco minutos, que elas subissem para me ajudar. Na sala, ele veio com uma conversa muito estranha do tipo ‘eu sou um coroa, mas sou um coroa filé, sou um coroa que dá pro gasto’. Eram coisas que não são típicas de aluno com professor. Demorou uns três minutos e ele ficou tentando se aproximar de mim, mas eu ia me afastando até que minhas amigas chegaram. Tentei gravar, mas acabou que não estava gravando.
Então, eu não tinha provas daquilo porque só tinha eu e ele naquela sala. Quando você é homem LGBT e alega que está sofrendo algum tipo de violência, assim como é para mulheres, para homens também é difícil.
A segunda situação não foi comigo, mas com uma amiga no segundo ano com um professor super conhecido no campus por ter uma conduta de assédio. Ele começou a assediar minha amiga na sala de aula, em todas as aulas e eu comecei a confrontar ele. Um certo dia, ele falou pra mim e pra ela que a gente era muito rebelde e iria reprovar na disciplina dele se continuasse com essa conduta. Ele tinha alunos na sala que eram alvos dele, como eu e minha amiga. Para essas pessoas, ele fazia provas diferentes, com grau de dificuldade muito maior. Quando a gente ia questionar, ele dizia que era a mesma coisa, que era interpretação e só usava palavras diferentes.
Uma vez, tinha um grupo de homens que foi visitar o campus para organizar um evento esportivo. Eles estavam na porta do banheiro feminino e eu estava acompanhando minha amiga porque ela estava desconfortável de passar por oito homens adultos com o uniforme de educação física. Eu estava indo para lá quando um professor disse que eu não ia passar, que aquele não era o lugar para eu estar. Disse que era para eu ir para a aula, sendo que a aula era dele e ele estava conversando com esses homens. Depois disso, ele fez um discurso dizendo que ainda não criaram banheiro para um terceiro gênero. Só que eu nunca disse para ele que sou uma mulher trans. Não tem nada a ver. Eu sou um homem cis, só estava acompanhando minha amiga pela situação de constrangimento, e ele veio com discurso machista, homofóbico e transfóbico na sala. Que isso era Biologia e a gente precisava estudar mais Biologia. Pelo que eu observo, não só existe uma cultura machista no Ifba, mas uma cultura de impunidade para professores machistas e homofóbicos. Ao mesmo tempo que temos aquele núcleo de servidores que discutem essas pautas, temos um núcleo seleto de servidores que perpetuam a cultura machista, misógina, homofóbica. A gente tem pontos altos e baixos, mas em relação a punição, é muito pouco. Não é só no Ifba, mas em geral. As punições demoram de acontecer, o processo é doloroso para a vítima”.