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Vinicius Nascimento
Publicado em 22 de fevereiro de 2019 às 21:33
- Atualizado há 2 anos
O corpo de José Carlos Terra, 65 anos, foi sepultado na tarde desta sexta-feira (22) ao lado do filho Lucas Terra, no Cemitério do Bosque da Paz, em Salvador. Uma cerimônia íntima, para cerca de 20 pessoas, entre amigos e familiares. Por lá, além da tristeza pela partida de Carlos, era nítido um abatimento diante da dura realidade de que o pai partiu sem ver a justiça ser feita contra os assassinos do filho.
Foram 18 anos de uma luta incessante por justiça. Desde o assassinato do adolescente Lucas Terra, aos 14 anos, no 21 de março de 2001 por um ex-pastor e dois ex-bispos da Igreja Universal do Reino de Deus, a história e a rotina de Carlos Terra, pai da vítima, mudou completamente.
“Era ele que fazia cartazes, colava panfletos pela cidade e buscava informações sobre o que tinha acontecido com nosso filho”, contou Marion Terra, viúva de Carlos e mãe de Lucas, durante o sepultamento. Carlos morreu na última quinta-feira (21), após sofrer uma parada cardiorrespiratória, provocada pelo agravamento de uma cirrose hepática.
Uma das testemunhas do caso e amigo de Lucas Terra, o publicitário Toni Costa, 40, acompanhou de perto todas as batalhas de Carlos. Ontem, ele também estava no enterro.
Segundo Toni, era uma missão difícil para o pai do amigo conciliar o trabalho como administrador, as buscas pelo filho e ainda cuidar de todas as outras pessoas envolvidas no caso, como ele, por exemplo. Toni chegou a ser inscrito em um programa de proteção à testemunha, em 2003.“Ele cuidava de tudo. Tudo mesmo. E não parou de lutar. Sabe quando você vê no dia dos pais aquela camisa de herói? Ele era esse cara”, contou Toni.Ainda este ano, contou Marion, será lançado o livro Carlos Terra: Traído pela Obediência. A obra, um relato de Carlos sobre a vida após a morte do filho, será uma continuação do livro lançado em 2016 sobre Lucas.
Depois do Carnaval, amigos vão se reunir para lançar um projeto de apoio a pessoas que viveram casos semelhantes ao de Lucas Terra.
Trajetória José Carlos Terra nasceu no Rio Grande do Sul, mas iniciou um relacionamento de idas e vindas com a Bahia no ano de 1979. Administrador de empresas, ele ficava subindo e descendo o país entre Salvador e Porto Alegre para poder visitar sua amada Marion. Já em 1989, ela decidiu se mudar de vez para a capital baiana e passou a dividir com Carlos o amor pela cidade.
“Eu nasci no Rio Grande do Sul, mas a Bahia é minha terra do coração. É a terra que foi o nosso chão”, contou Marion. Marion, viúva de Carlos e mãe de Lucas, conta que família planejava estar na Itália quando o crime aconteceu (Foto: Evandro Veiga/CORREIO) Desde então, eles já se mudaram algumas outras vezes - sempre por conta do trabalho de Carlos como administrador e representante comercial. Já com os três filhos nascidos, o mais velho, Carlos Terra Junior, no Rio Grande do Sul e os outros dois, Carlos Felipe e Lucas, na Bahia, eles chegaram a passar um período no Rio de Janeiro. Retornaram para Salvador em 2001, mas já com previsão de se mudar na Itália. Uma nova mudança por conta do trabalho.
Marion foi na frente porque conseguiu emprego em uma churrascaria tocada por sua irmã na cidade de Parma, a 465 quilômetros de Roma, capital italiana. Segundo Marion, todos tinham um apego muito grande com Salvador e, antes de partir, queriam passar um tempo na capital para se despedir dos amigos.
O acordo, então, era que Carlos e os dois filhos caçulas embarcassem para a Itália após o inverno europeu. O assassinato de Lucas mudou drasticamente os planos. “Todo o mundo ia junto em 2000. Eles tomaram a decisão de se despedir de Salvador. Nesse período aconteceu o crime.”, contou Marion.
Luta Após o assassinato, Carlos dedicou literalmente todos os dias de sua vida em uma busca incessante por justiça. Ele sabia que uma condenação não mudaria o cruel destino que foi imposto a seu filho, mas acreditava que poderia oferecer ao menos um conforto à memória de Lucas Terra, se conseguisse ver a condenação dos ex-bispos com os próprios olhos.
Segundo o amigo Toni, durante essa busca, Carlos foi humilhado por inúmeras vezes. Principalmente por bispos da Igreja Universal, que davam falsas pistas sobre o paradeiro do garoto quando ele ainda estava desaparecido e até gritavam com ele quando falava com meios de comunicação para além dos oficiais da própria igreja.
Depois disso, também sofreu ameaças de morte e sequestro dos outros dois filhos. Mas nada era tão forte quanto a dor de perder um filho daquela maneira: estuprado e queimado vivo.
“Dói muito porque não foram marginais. Não foi um assalto, algo do acaso. Eram pessoas que nós confiávamos, que nos ensinavam um propósito completamente diferente”, contou Toni.
As sucessivas derrotas na justiça fizeram com que, aos poucos Carlos e Marion ficassem desiludidos. Ele chegou a iniciar um curso de Direito na Unyahna em 2008 para entender melhor como funcionavam as tramitações e burocracias dos julgamentos, mas não chegou a concluir. Estudou até o oitavo semestre.
“Naquela época a gente era muito puro. Não imaginava como seria, como funcionava. Viamos a justiça de uma maneira que não vemos mais. Há a justiça e há o direito. São duas coisas diferentes”, avaliou Marion.
Com a morte de Carlos, Marion diz que é a hora dela tomar a frente da luta e continuar buscando por justiça. A história de Carlos Terra tem todos os contornos da jornada de um herói, mas nesse caso foi uma história onde ele não conseguiu testemunhar, tampouco criar o próprio final feliz. “Ele partiu hoje mas eu sigo. E ninguém vai calar minha voz”, afirmou Marion. Carlos Terra ficou conhecido pela luta por justiça aos acusados de matar o filho, Lucas Terra (Foto: Alberto Coutinho/Arquivo CORREIO) Reembre o caso Lucas Vargas Terra tinha 14 anos quando foi abusado sexualmente e queimado ainda vivo por ex-bispos da Igreja Universal do Reino de Deus, no Rio Vermelho, na noite de 21 de março de 2001. O garoto havia saído de casa para um culto religioso realizado pelo bispo Silvio Roberto Galiza quando desapareceu.
Os restos de Lucas foram encontrados dentro de um caixote na Avenida Vasco da Gama e ficaram 43 dias no Instituto Médico Legal Nina Rodrigues enquanto aguardavam a realização de exames de DNA. Para a família, porém, não restava dúvidas. O corpo havia sido reconhecido por um pedaço da calça usado pelo jovem ao sair de casa e por uma pequena mecha de cabelo que resistiu intacta à brutalidade.
O dia do sepultamento, quase dois meses após o crime, foi a primeira vez que a imagem do adolescente foi publicada no CORREIO. Os inúmeros cartazes e faixas espalhadas por Salvador com a foto de Lucas seriam a marca da luta de Carlos Terra, pai do garoto, pela condenação dos ex-bispos.
*Com supervisão da chefe de reportagem Perla Ribeiro