Receba por email.
Cadastre-se e receba grátis as principais notícias do Correio.
Thais Borges
Publicado em 10 de abril de 2019 às 05:00
- Atualizado há 2 anos
Diante da tela de um computador, a operadora de máquinas Adriana Miranda, 34 anos, viu uma imagem. “É um sino”, respondeu. Pouco depois, identificou um morango. “Vou comer um morango quando sair daqui”, anunciou, enquanto dizia que um pano azul atrapalhava sua visão. Tampava seus olhos, explicou.
Nenhuma dessas frases chamaria atenção, em um cenário qualquer. Só que era justamente o contexto que tornava a experiência inusitada: Adriana estava em uma sala de cirurgia do Hospital Geral Roberto Santos (HGRS), sendo operada. Nesta terça-feira (9), ela encarou os procedimentos de uma cirurgia para retirada de um tumor enquanto estava acordada.
O tumor está localizado em uma área do cérebro de Adriana responsável pela linguagem. Mas, para que os médicos conseguissem identificar o lugar exato, era preciso que ela conversasse. A partir do estímulo, dava para perceber exatamente quais áreas eram do tumor e quais eram do próprio órgão dela. Tudo foi feito com o crânio aberto – a técnica é conhecida como ‘awake craniotomy’ (craniotomia acordada, em tradução literal).
Essa é a segunda vez que essa cirurgia é realizada na rede estadual, mas foi a primeira em que equipes de reportagem puderam acompanhar um procedimento como esse na Bahia. É uma das inovações promovidas pelos hospitais baianos nos últimos anos. A craniotomia 'acordada' é uma técnica que implica na abertura do crânio enquanto a paciente conversa com a equipe médica (Foto: Marina Silva/CORREIO) Isso porque Adriana tem um tumor conhecido como glioma – uma neoplasia que pode ter até quatro graus diferentes. Os médicos acreditam que o dela seja grau 2, mas isso só vai ser confirmado após exames patológicos com a massa retirada do cérebro. De acordo com o coordenador do serviço de neurocirurgia do HGRS, Leonardo Avellar, esse tipo de tumor acaba ‘se misturando’ ao tecido cerebral, uma vez que se infiltra no órgão.
Em condições normais, portanto, fica difícil saber exatamente o que é tumor e o que é o cérebro. Por isso, o momento da remoção é crucial para garantir que a paciente não tenha sequelas futuras.“Se ela não removesse a lesão, fatalmente acabaria tendo algum distúrbio de linguagem. Se ela não acordasse durante a cirurgia, a chance de ficar com alguma sequela seria de até 25%. Com ela acordada, a chance de ter sequela cai para 4%, 5%”, afirmou o neurocirurgião Leonardo Avellar.
Convulsões As convulsões de Adriana começaram em janeiro deste ano. No início, os médicos que a examinaram em Jequié, município do Centro-Sul do estado, onde a operadora de máquina vive com a família, não viram nenhum problema. Disseram que não tinha nada de errado. Mas, as convulsões continuavam vindo, geralmente à noite.
Até que, um dia, ela começou a sentir quando pilotava sua moto. “Ela disse que começou a sentir as mãos tremendo, só que um rapaz percebeu e foi ajudar. Só por isso não caiu da moto”, contou o irmão de Adriana, o pedreiro Valdir Miranda, 48. Assim, os médicos pediram que ela filmasse as convulsões. Adriana chegou a ter convulsões enquanto estava em cima de sua moto (Foto: Acervo pessoal) Foi quando veio o diagnóstico e ela foi encaminhada ao HGRS, no mês passado. A unidade é referência em neurologia e neurocirurgia no estado. Por mês, a unidade médica realiza cerca de 100 procedimentos neurológicos – isso corresponde a até 85% do total de cirurgias da área no estado.
Mais sensível, Adriana começou a ser acompanhada pela equipe do hospital desde o último dia 20. Em Salvador, fica com o irmão, uma irmã e o marido. Este último, por sua vez, se divide entre o tratamento da esposa aqui e os cuidados com a filha do casal, Adrielle, 7, que ficou em Jequié. Valdir contou que a irmã começou a sofrer convulsões em janeiro (Foto: Marina Silva/CORREIO) “A gente está sofrendo junto com ela, porque foi completamente de surpresa. Ela nunca esperava isso, porque nunca nem foi hospitalizada”, disse o irmão. Quatro fases Ao fim, a cirurgia demorou pouco mais de seis horas. Daria para dividi-la em quatro fases: a primeira, de anestesia, dura aproximadamente uma hora. Depois, ocorre a abertura do crânio, que leva cerca de uma hora e meia. A terceira fase é justamente a de estímulo do cérebro e de ressecamento do tumor – dura em torno de duas horas. Por fim, o fechamento, que pode durar outra uma hora, além de mais uma hora para que a paciente acorde.
Em uma cirurgia comum, a anestesia tem quatro pilares, como explica o anestesiologista Ricardo de Azevedo, responsável pelo centro de ensino e treinamento de anestesia do HGRS: hipnose, analgesia, bloqueio dos reflexos e paralisia muscular. “Nesse caso, enquanto ela estiver acordada, ela vai ficar só sedada, que é a hipnose mais superficial, para que ela se comunique. Depois, ela volta a estar anestesiada”, explicou.Isso é feito a partir do controle dos medicamentos usados – com maior ou menor dose. A cirurgia é dividida em quatro etapas (Foto: Marina Silva/CORREIO) A equipe de anestesia, composta por ele e outros dois médicos residentes, vêm se preparando para a cirurgia há duas semanas. Antes que Adriana entrasse na sala, conheceu os médicos e conversou sobre o procedimento. Para eles, a cooperação da paciente é um dos principais fatores para que uma cirurgia como essa tenha sucesso.
“Você tem que perceber se a paciente está bem consciente do que vai acontecer com ela. Se, durante o processo, o profissional percebe que a pessoa tem alguma dificuldade, o perfil dela acaba sendo excluído”, disse.
Durante toda a operação, os médicos observam o cérebro da paciente – além das posições do tumor – em um monitor chamado de neuronavegador. É um equipamento que funciona quase como GPS e que pode exibir tanto as tomografias computadorizadas quanto as ressonâncias magnéticas mais recentes dos pacientes. No caso de Adriana, os médicos optaram por ressonâncias magnéticas que foram feitas no dia anterior. A cirurgia é feita com o auxílio de um neuronavegador (Foto: Marina Silva/CORREIO) A terceira fase, que é justamente quando a paciente está acordada, envolve mais ativamente a presença de uma fonoaudióloga, que acompanha toda a cirurgia. Nesse caso, a responsabilidade ficou a cargo da fonoaudióloga Natalie Argôlo, professora da Universidade do Estado da Bahia (Uneb) e tutora da residência multiprofissional do HGRS.
Enquanto o neurocirurgião Leonardo Avellar provocava o cérebro de Adriana com pequenos choques, para produzir estímulo, era Natalie quem conversava com a paciente.“A linguagem é distribuída pelo cérebro. Pode estar mais frontal, em um paciente, ou mais de lado, em outro”, afirmou a fonoaudióloga. Assim, à medida que o médico seguia tocando o cérebro e produzindo estímulos, a fono observava as respostas de Adriana. Se tocasse em uma área da linguagem, a operadora de máquina poderia ter reações que iriam de parar completamente de falar até trocar palavras ou esquecer nomes de algo. Por isso, ela é orientada a responder exercícios de nomeação, de repetição de palavras ou de contagem de números.
“A gente faz avaliação da paciente antes. No caso dela, identificamos que já existia uma alteração fonoaudiológica (devido ao tumor), mas era algo que não dava para perceber no discurso. Só percebemos com exame específico”. A fonoaudióloga Natalie Argôlo (à direita) conversava com Adriana durante a cirurgia (Foto: Marina Silva/CORREIO) Não é qualquer profissional que pode participar de uma cirurgia como essa. Natalie, por exemplo, completou uma formação específica na França há dois anos. Desde então, é chamada para participar de procedimentos como esse e de outros tipos cirurgia com fonoaudiologia. Em Salvador, já participou de uma cirurgia no Hospital São Rafael.
Índice de sucesso Como o glioma é um tumor que acaba se infiltrando no cérebro, não é possível removê-lo por completo. Na verdade, o próprio neurocirurgião responsável, Leonardo Avellar, ressalta que, se algo assim acontecer, é por acidente. “Se você retirar 80% do tumor, por exemplo, é um sucesso. Não tem cura, mas faz a maior diferença possível, porque ela ganha tempo de sobrevida”, ponderou.
É a segunda vez que essa cirurgia é realizada na rede estadual. A primeira foi também no HGRS, há dois anos. O paciente, que tinha o mesmo tipo de tumor que Adriana, está bem até hoje.
Após a cirurgia, ela terá que passar por exames de controle a cada seis meses. É o que os especialistas chamam de ‘fase de vigilância’ do tumor. No entanto, alguns sintomas, como a convulsão, podem continuar, mesmo após o procedimento. Se isso acontecer, devem ser controlados com medicamentos específicos.
Desde o ano passado, o hospital é credenciado como centro de referência em neurologia e neurocirurgia, segundo o diretor-geral da instituição, José Admirço Lima Filho. “Nesse tipo de cirurgia, todo mundo tem que estar muito bem treinado. É uma equipe grande e precisamos investir tanto na formação quanto em treinamento”.