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Thais Borges
Publicado em 29 de março de 2023 às 08:00
- Atualizado há 2 anos
Qualquer pessoa que já esteve por algumas horas em Salvador provavelmente fez isso: diante de um cenário como o Elevador Lacerda, a praia da Barra ou o Pelourinho, não resistiu e fez uma foto. Talvez tenha até postado numa rede social, possivelmente com alguma tag como "#salvadormeuamor" ou algo do tipo. Só uma busca rápida no Instagram é capaz de detectar 17 milhões de imagens atribuídas à cidade.
Mas se, hoje, as fotos são tão práticas - e em certa medida até banais -, nem sempre isso foi assim. Ao longo dos séculos, a forma como Salvador ia sendo retratada mudou e se popularizou, mas também documentou sua história. Seria possível, então, chegar à primeira fotografia feita da cidade?
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A missão logo se mostrou mais difícil do que se esperava. Muitas das imagens daquela época carecem de informações mais precisas quanto às datas ou mesmo a autoria. Essa é uma dificuldade constante até para órgãos públicos e entidades - a exemplo do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia (IGHB), assim como o Arquivo Público Municipal, que foram consultados nessa saga.
No entanto, depois de alguns dias e uma busca que incluiu consultas a coleções particulares, chegamos àquela que parece ser a imagem datada - e é importante frisar isso - mais antiga que se tem registro em Salvador, de acordo com o pesquisador Daniel Rebouças, doutor em História pela Universidade Federal da Bahia (Ufba) e estudioso da iconografia baiana.
A pedido do CORREIO, Rebouças traçou o caminho da fotografia na cidade até chegar a essa imagem: a foto de um homem sentado com a paisagem do Porto do Bonfim - onde hoje fica a região de Monte Serrat - ao fundo. Com dimensões de 12 cm x 9 cm, a original está no acervo da Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro, e data de 1851. "Possivelmente, não é a primeira. Mas analisamos entre as mais antigas que sobreviveram ou que são conhecidas, porque essas coisas caminham juntas na fotografia. Às vezes, tem coisas que podem ter existido e realmente sumiram e há outras com paradeiro desconhecido, mas que um dia pode aparecer com colecionadores e pesquisadores", explica o historiador. Trata-se de um daguerreótipo, uma impressão em vidro feita pelo fotógrafo e pintor Francisco Napoleão Bautz. Alemão, Bautz havia passado pelo Rio de Janeiro, onde aportou em 1939, até vir para Salvador, no começo dos anos 1850. Aqui, comandou um estúdio de fotografia que passou pela Ladeira da Preguiça, pela Rua de São Pedro e, por fim, pela Rua Portão da Piedade. O daguerreótipo foi um equipamento fotográfico primitivo, conhecido por ser o primeiro a produzir imagens para a população, ainda que de forma exclusiva. Não se sabe quem é o homem retratado por Bautz (Foto: Francisco Napoleão Bautz/Acervo da Biblioteca Nacional) O modelo A partir daí, um dos grandes mistérios é quem seria o homem retratado. Em uma cidade majoritariamente negra e que hoje tem população de mulheres maior do que a de homens, a primeira foto de Salvador é de um homem branco.
"A gente pode afirmar que era alguém que tinha dinheiro. A relação de custo foi um dos motivadores para se buscar formas baratas de impressão em papel. Mas pelo próprio investimento, pela roupa, era alguém bem posicionado. Essa era a imagem dos retratos dos homens políticos, que marcaram uma posição. Ele tem algo de fidalgo, como o relógio. A popularização no sentido de chegar a estratos sociais mais amplos vem da descoberta do papel", acrescenta Rebouças.
Além disso, a foto foi feita no estúdio de Bautz. Naquela época, praticamente toda a fotografia documentada era majoritariamente feita em estúdios. A paisagem do Bonfim, ao fundo, era uma pintura. Os retoques posteriores fizeram parte do processo desde o início.
É possível, porém, que a trajetória da fotografia em Salvador tenha começado assim que teve início no Brasil. O primeiro daguerreótipo chegou ao país em 1839, no Rio - o ano foi o mesmo em que a Academia Francesa francês declarou que o equipamento era de domínio público.
Segundo a fotógrafa e curadora de fotografia Célia Aguiar, a fotografia tem início na Bahia com a chegada do navio escola L‘Orientale, do abade Louis Compte."O navio permaneceu no porto por cerca de quatro dias e especula-se que nesse tempo foi realizada a primeira fotografia da cidade. Porém, dela não existe nenhum registro". O peso e a lentidão dos equipamentos da época exigiam muita habilidade e paciência dos profissionais, que precisavam fazer longas exposições e tinham limitações no sistema ótico. "Talvez por isso as vistas da cidade sejam mais raras que os muitos retratos produzidos pelos fotógrafos viajantes que se estabeleceram no centro da cidade e também os visitantes, contratados por empresas para registrar as vistas da cidade e do Recôncavo", acrescenta.
Ferrovia Entre os fotógrafos contratados, destacou-se o inglês Benjamin Mulock, que ficou na Bahia entre 1859 e 1862. Ele havia chegado a Salvador para registrar a construção da ferrovia que ligaria a capital a Alagoinhas, a convite da empresa Bahia and San Francisco Railway. São dele, inclusive, as fotos mais antigas de paisagens soteropolitanas de que se tem registro.
Segundo o fotógrafo e escritor José Spinola, autor do livro Benjamin Mulock - o fotógrafo da velha Bahia (disponível na Amazon), era comum naquele período contratar profissionais para documentar obras de engenharia e guerras. Mulock, além disso, também registrou igrejas, paisagens e prédios em Salvador. Ainda que "99% das fotos" dele fossem para atender ao contrato, sua primeira imagem na cidade foi uma panorâmica do frontispício. "A empresa pediu para ele criar um álbum de fotografias para ser dado como presente ao imperador, quando este viesse à Bahia. Foi o conjunto dessas fotos, o álbum, que destacou Ben Mulock dos demais fotógrafos da época", avalia Spinola. O inglês Benjamin Mulock foi convidado a vir para Salvador para fotografar a construção de uma ferrovia, mas também tem algumas das primeiras fotos conhecidas de paisagens da cidade, como esta do final dos anos 1850 (Foto: Benjamin Mulock/Reprodução) Formado em engenharia civil, o inglês decidiu vir para a Bahia porque o salário como fotógrafo da ferrovia aqui era mais alto do que o de engenheiro, em Londres. Ainda de acordo com o escritor, Mulock seguia uma tendência que só permitia linhas verticais. "Ele posicionava a câmera do objeto até que as paredes e colunas estivessem na vertical, diferente das fotos feitas com a lente grande-angular", explica.
Retratos Naqueles primeiros anos, o que predominou em Salvador foram as fotografias de retrato - assim como aquele primeiro homem, eternizado por Bautz. Citando o livro A Fotografia do Brasil, do historiador Gilberto Ferrez, a fotógrafa Célia Aguiar diz que, até 1870, o mais provável é que não houvesse bons fotógrafos na Bahia, com poucas exceções. É a partir daquela década que o cenário passa a mudar.
"Nos dias atuais, é raridade encontrar fotografias dessa época tão distante nos acervos da cidade e isso demanda disponibilidade de tempo e permissão para acessar documentos históricos", pondera Célia.
Em sua dissertação de mestrado, defendida no programa de pós-graduação em História da Ufba, a pesquisadora Christiane Vasconcellos afirma que, ainda que os fotógrafos instalassem aqui tinham o intuito principal de fazer retratos, havia uma "fotografia de tipos". Nesse gênero, a maioria dos profissionais fez imagens de pessoas negras.
"A produção das fotografias da gente preta foi destinada às exposições permanentes nos ateliês, chamados inicialmente 'galerias de retratos', depois 'salões de exposição' – onde os retratos eram vendidos ao público nacional e estrangeiro –, e às exposições de arte, indústria e tecnologia, ocorridas no Brasil e na Europa", escreveu, em seu trabalho.
Além disso, muitas dessas imagens, segundo Christiane, serviram de base para estudos sobre as identidades e a cultura das pessoas retratadas. Era comum que as fotos destacassem itens de vestuário, ferramentas de trabalho e objetos. Um dos exemplos citados pela pesquisadora era o de mulheres com joias ou ornamentos ligados a cargos altos do candomblé. As imagens de mulheres negras com referência a indumentárias do candomblé se tornaram frequentes, como nesta foto de 1901, do Álbum Diário de Bordo do Navio USS Atlanta, que faz parte da Coleção Flávia e Frank Abubakir - Instituto Flávia Abubakir (Foto: Instituto Flávia Abubakir/Reprodução) "A fotografia revelou-se uma fonte de dupla natureza: aquela que fala por meio das evidências presentes na imagem e a que fornece informações pela ligação com fontes de outra natureza", conclui a pesquisadora.
Cores A discussão sobre a entrada das cores na fotografia que retratava Salvador também não é um ponto tão simples. Mesmo quando as imagens eram apenas em preto e branco, havia colorização com diferentes técnicas. "Mesmo nas fotos mais antigas, a cor não estava ausente, por causa dos retoques. Quando elas passam a ser em papel, podem ser retocadas", explica o historiador Daniel Rebouças.
Em seguida, de acordo com o pesquisador, começam a se popularizar os postais, que são colorizados manual e mecanicamente. Uma das coleções com o maior número de fotografias e postais de Salvador da época é do Instituto Flávia Abubakir, hoje com mais de 40 mil peças, sendo mais de dez mil fotos sistematizadas. É uma mostra representativa do que foi produzido na época, incluindo fotos de paisagem e retratos. "A coleção inteira vai somando com os relatos escritos no período. Você vai cruzando as informações, os relatos antigos, diários de viajantes que vão descrevendo aquele tempo", diz a museóloga Ângela Ferreira, diretora da entidade. Para ela, a fotografia adicionou uma nova dimensão à forma como a história de Salvador vinha sendo contada. "A gente vem de outras imagens, de gravuras de viajantes. Às vezes, um navio passava meses aqui, mas deixava para desenhar o que via em Salvador um ano depois, na viagem de volta. A gente se depara com imagens que parecem uma colcha de retalhos, porque a memória dele já se misturou. Com a foto, não". A cor esteve presente nas imagens de Salvador bem antes da impressão colorida existir. Um exemplo são os postais da cidade, que passavam por processo de colorização, como é possível ver neste postal de 1904 cedido pelo Instituto Flávia Abubakir (Foto: Coleção Flávia e Frank Abubakir - Instituto Flávia Abubakir) A impressão colorida como se conhece hoje, porém, é algo mais recente, que começa a acontecer nos anos 1960 e 1970 - numa época, inclusive, em que as câmeras fotográficas já eram muito mais acessíveis à maior parte da população.
Seria ainda mais difícil, portanto, chegar a uma primeira fotografia colorida da cidade, já que muitas imagens foram feitas de forma contemporânea e concomitante, inclusive de forma amadora. "Quando a foto passa a ser impressa colorida, tem pouco espanto, porque já é absurdamente mais acessível a possibilidade de colocar cor de diversas formas", acrescenta Daniel Rebouças.
Este conteúdo especial em homenagem ao Aniversário de Salvador integra o projeto Salvador de Todas as Cores, realizado pelo Jornal Correio, com patrocínio da Suzano, Wilson Sons, apoio institucional da Prefeitura de Salvador e apoio da Universidade Salvador - Unifacs.