Receba por email.
Cadastre-se e receba grátis as principais notícias do Correio.
Thais Borges
Publicado em 29 de março de 2020 às 05:49
- Atualizado há 2 anos
O músico Jovan Santos, 55 anos, andava preocupado. Com a escola de música onde dava aulas de saxofone fechada, ficou sem alunos. Os eventos como casamentos e festas de 15 anos, sua principal fonte de renda há quase duas décadas, foram cancelados pelos próximos dois meses, por causa da recomendação de isolamento social. “Em certo momento, bate o desespero. Mas tenho um grupo chamado Confraria do Sax, com alunos e ex-alunos e um deles teve uma ideia: vamos tocar. O negócio é tocar”, diz. Foi o que ele fez. Depois que alguém compartilhou o vídeo de um saxofonista tocando na sacada, Jovan montou a estrutura de apresentação na janela de seu apartamento, na fronteira da Boca do Rio com Armação, na última segunda-feira (23). Só que ele não imaginava que o que seria um alívio para sua tensão também seria um tipo de conforto para gente que sequer o conhecia. De lá, por cerca de meia hora, tocou para os vizinhos. Começou com Hallelujah, aquela que é considerada por muitos uma das melhores canções da história. Entre aplausos, veio o pedido de bis. Vizinhos que antes nunca tinham se visto se transformaram em uma plateia sedenta por uma lista que foi de Stevie Wonder a Roberto Carlos.
Mas Jovan não foi o único. Do Costa Azul à Barra, passando por Brotas e pelo Cidade Jardim, o que não tem faltado, nos últimos dias, são janelas musicais. Dos saxofonistas que tocam clássicos e Ave Maria aos que transformam varandas em boates e trios elétricos, os quatro cantos da cidade ganharam vida.
Antes que os baianos chegassem a esse estado de isolamento, era comum receber vídeos de fenômenos parecidos ao redor do mundo. Alguns dos mais compartilhados foram justamente os dos italianos, a maioria cantando Bella Ciao - a canção que é símbolo da resistência ao fascismo no país, durante a Segunda Guerra Mundial. Na Bahia, a resistência tem outros timbres e acordes, mas consegue ir do Hino ao Senhor do Bonfim a Diga que Valeu, eternizada na voz de Bell Marques, passando por protestos políticos, panelaços, palmas para profissionais de saúde e gritos de 'Faraó'. Para os vizinhos - que, muitas vezes, não fazem ideia de quem é o responsável pelo show -, as janelas se tornaram quase um abraço sem toque. Para especialistas, esse tipo de ação é uma forma de se reinventar - praticamente uma maneira de sobreviver.
Recompensa No caso do músico Jovan, começou no improviso. Queria tocar para si mesmo. Mesmo assim, ele montou a estrutura que teria caso estivesse trabalhando em um evento. O fim de semana tinha sido ainda mais estranho; foi o primeiro, em muito tempo, que estava em casa sem trabalhar. Era algo tão sem pretensões que sabia que poucos conseguiriam vê-lo, de fato. De sua janela, só há a lateral de um prédio. Ao lado, porém, fica a divisa com a comunidade da Baixa Fria, na Boca do Rio.
“Essa comunidade estava começando a botar um som um pouco alto, meio batidão. De repente, pararam e me escutaram. Minha intenção era tocar só uma e ver no que ia dar, mas, depois que toquei, me aplaudiram”, lembra. Aos poucos, mais vizinhos começaram a pedir outras músicas, o que foi atendido. Ele próprio está isolado desde a semana passada. O músico e professor de saxofone Jovan Santos se apresentou para os viizinhos (Foto: Acervo pessoal) A cada dois dias, sai, de carro, para levar a esposa ao trabalho. Fora isso, fica em casa o dia inteiro com o filho de 11 anos e um jabuti que está na família há quase uma década. “Isso aliviou bastante a minha tensão, meu estado de espírito”. Um dia antes, no domingo (22), o engenheiro aposentado José Júlio Menezes, 66, tinha feito a mesma coisa. Estudante de saxofone e recluso em casa com a esposa, ouviu dela um pedido: que ensaiasse para tocar Ave Maria. O engenheiro José Júlio e a esposa, Almeirinda, antes da quarentena: ela pediu que ele ensaiasse Ave Maria (Foto Acervo pessoal) Começou a estudar a música e alguns vizinhos de prédio escutaram. No grupo do condomínio no Whatsapp, vieram os pedidos por uma apresentação em um momento em que todos pudessem escutar, de suas próprias janelas. O horário foi justamente aquele que já é conhecido dos católicos para a Ave Maria: 18h. Foi assim que, de sua varanda, nas proximidades do Jardim de Alah, tocou ainda Hallelujah e o Hino do Senhor do Bonfim.
“Eu sempre ficava um pouco receoso de incomodar os vizinhos. Mas quando surgiu isso, me senti muito recompensado e gratificado. É um motivo de união que, para a gente, só está trazendo recompensa”, reflete José Júlio. Um abraço
Do outro lado da cidade, outro saxofonista tem trazido a calmaria para moradores do Cidade Jardim. Desde a semana passada, sempre por volta das 18h, o vizinho desconhecido toca duas ou três músicas para uma plateia que já se acostumou a esperar pelo momento. Uma das músicas que mais emocionou a jornalista Tereza Carvalho, 52, que mora no bairro há 14 anos, foi o Hino do Senhor do Bonfim.
“Antes, a gente não esperava. Hoje, a gente tem esse acalanto e já fica esperando o horário. É como se eu estivesse saindo de casa. Minhas janelas têm rede e eu até empurro um pouco para me sentir fora, me sentir na rua, enquanto ele toca as músicas”, explica. Desde a segunda-feira da semana passada, como muitos soteropolitanos, ela não sai de casa. Para preservar a saúde mental, adotou estratégias como estabelecer um horário para assistir aos telejornais. À noite, evita até mesmo o celular. No Cidade Jardim, Tereza já se acostumou a esperar pelas músicas do vizinho que toca saxofone todas as noites (Foto: Acervo pessoal) Por enquanto, Tereza não sabe nem qual é o apartamento do vizinho que tem alegrado as noites da região. Acredita que seja de um prédio próximo ao seu. Por isso, quando a quarentena acabar, já tem um objetivo: descobrir quem é ele. Antes do isolamento, sabia que existia um saxofonista na área - eventualmente, em panelaços, ele costumava tocar. nos dias de jogos do Flamengo, a mesma coisa.
“Fico pensando como que eu nunca pensei quem ele era antes. Quero depois abraçá-lo e dizer o quanto ele tem sido importante para a comunidade. Quero abraçá-lo depois porque, na verdade, é ele que está abraçando a gente”, diz.
Quarentenas de somMas além dos instrumentos de sopro, há quem tenha começado até mesmo um pequeno Carnaval entre os vizinhos, sem sair de casa. Essa foi a proposta da Quarentena Elétrica, que o músico e dentista Léo Lordelo, 45, criou na última segunda-feira. Na varanda do edifício em que mora no Stiep, com uma guitarra, um violão, um acordeon e uma caixa de som, começou a tocar.
“O pessoal estava precisando sacudir um pouquinho. Músicas de motivação e instrumentais são legais, mas a identidade da Bahia é a música alegre. Até o síndico veio me dizer que a rua estava triste. Por isso, é um repertório de música alegre”, conta Leo. Nos dias seguintes, repetiu a dose. "Comecei a fazer uma micareta mesmo. Parecia Festival de Verão. Tomou uma proporção que eu não esperava, porque nem avisei nada. Já toquei para grandes públicos porque sou músico e, nas horas vagas dentista. Mas quando começou a experiência da janela, eu até me tremi um pouquinho".
Por pouco mais de uma hora, fez uma apresentação que viralizou. No dia seguinte, não conseguia sequer dar conta das marcações no Instagram. O dentista e músico Leo Lordelo batizou o movimento de Quarentena Elétrica (Foto: Acervo pessoal) “Eu também estava me sentindo um pouco amarrado. Volto a trabalhar na segunda, porque estava com atestado de acompanhante da cirurgia dela, mas é bom ter um momento de descontração. A maior motivação é a gente se importar com as pessoas”, completa. Quem também acabou bombando nas redes sociais com uma proposta parecida foi o estudante de Odontologia e dj Jonathan Menezes, 28. Morador do Costa Azul, ele sempre teve uma vida muito ativa. Dj residente do Ônibus Balada Salvador, era comum ter apresentações de sexta a domingo. Mas, desde a semana passada, a vida mudou.
“Está puxado, mas estou respeitando (a quarentena)”, garante. Mas, na noite de terça-feira (24), estava em casa “agoniado”. Decidiu, então, preparar algo novo.“Falei: vou fazer um som em casa. Aí os vizinhos falaram: ‘aumenta mais, Jon, que estou treinando e me acabando no seu som’. Acabei pensando em fazer na varanda”, explica. Assim, começou a Quarentena Eletrônica.
No início, veio o receio: era um público diferente, que estava em casa. Não tinha como saber se gostariam de música eletrônica. Decidiu que começaria e, se alguém gritasse reclamando, pararia. “Coloquei Banho de Chuva, de Vanessa da Mata, numa versão remix e a galera começou a ir para fora. Depois, coloquei outra música e só vi a galera dizendo ‘aumenta o som, dj”, diz ele, que emendou com hits que iam de Vitor Kley a Black Eyed Peas. O dj Jonathan criou a Quarentena Eletrônica (Foto: Acervo pessoal) A recepção foi tão boa que ele decidiu repetir a dose na quarta-feira (25) e na sexta (27), com o ‘Sextou em Casa’. “Eu não imaginava que a galera ia curtir assim. Tenho um vizinho que depois falou no Whatsapp que estava super entediado em casa, tinha até brigado com a esposa. Quando passou o som, fizeram as pazes e ele até abriu uma cerveja. Muita gente mandou mensagem dizendo que estava se sentindo preso em casa e que deu uma energia”.
Música em todo canto Pelo resto da cidade, outras iniciativas vêm chamando atenção. Na Barra, nos últimos dias, todas as noites, um morador da Rua Belo Horizonte vêm tocando canções como o Hino do Senhor do Bonfim na guitarra.
Já na Rua Oscar Carrascosa, no domingo, a atriz Michele Sztoltz, 39, teve uma surpresa: rolou até um show completo.
Por volta das 17h, em um prédio ao lado do seu, um casal começou cantando a música Shallow, sucesso de Lady Gaga e Bradley Cooper no filme Nasce uma Estrela. Depois, a voz masculina seguiu sozinha e emendou um repertório com Legião Urbana, Tribalistas e Nando Reis. Michele escutou um show ao lado de seu prédio, na Barra (Foto: Acervo pessoal) Tudo durou entre 30 e 40 minutos. “A gente se sente conectado de alguma forma”, analisa ela, que tem ficado reclusa desde a última terça-feira. Michele já tinha visto vídeos de cenas parecidas em outros países - especialmente da Itália.
“Chegam os vídeos e você acha bonitinho, mas não sente realmente. Eu até achei engraçado porque veio uma sensação boa mesmo. Não foi só ‘ah, que fofo’, as teve um certo aconchego de ver que tem pessoas ali passando pelo menos e que sentem uma conexão. Não vi quem era, não fiz amizade da janela, mas foi legal”, explica a atriz. Em Brotas, na segunda-feira, um vizinho também começou a fazer um show de casa. Por quase uma hora, cantou uma lista que começava com Imagine, dos Beatles, enquanto outros moradores acenavam, dos prédios vizinhos, com as lanternas dos celulares ligadas.
"Minha primeira foi confusão, porque não sabia se era manifestação contra ou pró-Bolsonaro, a favor do pessoal que trabalha nos hospitais, ou outra coisa, porque não tinha visto nada nas redes sociais”, conta a recepcionista de hotel que identificou-se apenas como Tatiana, referindo-se a alguns dos movimentos políticos dos últimos dias.
Quando percebeu do que se tratava, começou a acompanhar as músicas.“Então, ri, curti o som e deu uma sensação muito doida de estar junto das pessoas, mesmo que distante. Naquele momento parecia que eu nem tava em casa, mas na rua. Foi uma sensação de união, de estar vivendo um momento social diferente”, afirma. 'A ideia é permanecer vivo', diz psicólogo e cientista social, sobre movimentos nas varandas Para o psicólogo e cientista social Adailton de Souza, professor da UniFTC, é possível analisar o movimento das janelas musicais e enxergar a capacidade dos seres humanos construírem estratégias de enfrentamento em momentos de temor e dificuldades.
“Tem a dimensão da música, que impacta na dimensão emocional, que gera a sensação de pertencimento, de cuidado, de acolhida. É um momento coletivo mundial”, afirma.
Ações como essa, para ele, destacam potencialidades e a capacidade das pessoas de se reinventar. É uma maneira de encontrar alternativas em um contexto em que se é obrigado a mudar a configuração social, incluindo rotinas de trabalho e de locomoção. “A humanidade sempre resistiu, mesmo com todas as dificuldades para sobreviver. A ideia é permanecer vivo. Acho que essa situação, nesse momento atual, fala de nós enquanto humanos e também sobre o quanto somos capazes de construir vinculações afetivas”, reflete. O reencontro com a produção musical e artística é um reflexo dessa busca. É comum, hoje, até mesmo pela lógica da produção econômica, que as pessoas não conheçam seus vizinhos - especialmente aqueles que moram em edifícios.
O psicólogo e cientista social acredita, porém, que a quarentena pode ter aspectos diferentes em cada país, dependendo das dimensões culturais locais. É possível dizer que, para muita gente, os primeiros dias do isolamento também foram uma espécie de negação do que se estava vivendo.
É possível que muitos tenham ficado paralisados, caminhando pela sensação de que “estão de férias”.“Mas o futuro vai depender muito de como estão as estratégias em nosso país, em nosso estado, na construção cultural. As pessoas vão se reinventando, mas a gente não sabe como será esse percurso”, completa. Por fim, havia um rumor de que, a partir da última quarta-feira (25), atividades sonoras não seriam mais permitidas em Salvador, como uma das restrições de circulação. De fato, na segunda-feira (23), o prefeito ACM Neto assinou um decreto que proíbe atividades sonoras na cidade. No entanto, a proibição - que pode levar até à apreensão dos equipamentos - está restrita a eventos nas ruas, justamente para evitar aglomeração de pessoas. Ou seja: as apresentações nas varandas, janelas e quarentenas elétricas ou eletrônicas estão liberadas e provavelmente estão só começando.