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Mais um restaurante do Centro deve fechar as portas em breve por conta da crise financeira
Maysa Polcri
Publicado em 13 de dezembro de 2022 às 06:00
- Atualizado há um ano
A placa de “vende-se” instalada na parte de cima de um sobrado entre o Largo Dois de Julho e a Rua Carlos Gomes anuncia o fim de uma era: o tradicional Porto do Moreira deve fechar as portas em breve. A sinalização foi colocada há poucos dias e a notícia entristece frequentadores antigos e novatos. Francisco Moreira, 75, que administrava o restaurante com o irmão até seu falecimento em 2018 e hoje toca o empreendimento com a filha, lamenta a venda, mas é categórico ao explicar a razão - as contas não fecham mais.
Quando o português e carpinteiro José Moreira, por sentir falta de lugares para almoçar em Salvador, decidiu abrir o restaurante em 7 de setembro de 1938, talvez não imaginasse a posição de destaque que o Porto do Moreira ganharia com o passar dos anos. Pequeno, mas aconchegante, foi palco de grandes encontros, como o dos sambistas Riachão e Batatinha, e era frequentado por Caetano e Gil. O sobrado também foi imortalizado em livros de Jorge Amado, que ia atrás da comida baiana de qualidade no restaurante. “[...] Vão tomar sua cervejinha gelada no restaurante de Moreira, um português dos bons”, escreveu o autor no clássico Bahia de Todos-os-Santos, no final da década de 30.
Após o falecimento do irmão Antônio Moreira em 2018, Chico passou a administrar o restaurante apenas com a ajuda da filha. Apesar da tradição, os tempos mudaram e o Centro da cidade mais ainda, como lamenta Francisco Moreira, um dos quatro filhos de José e dona Maria. A pandemia da covid-19 também foi um revés difícil de ser contornado: clientes deixaram de fazer suas refeições e o orçamento apertou.
Leia mais: Porto do Moreira: espaço de sabores e tradições
“Temos seis funcionários e era para ter menos, mas não tenho como pagar os encargos. O dinheiro foi todo embora. Então é isso, não tem condições de continuar. O movimento do Centro caiu muito, não é mais como antigamente”, diz Chico, como é conhecido entre a clientela. A inflação dos alimentos dificulta a continuidade do estabelecimento de mais de oito décadas: “Se aumentar o preço, o pessoal vai embora”.
A sinalização de venda é recente na fachada, mas o que pouca gente sabe é que o Porto do Moreira quase foi vendido pelo menos três vezes nos últimos anos. As propostas nunca foram concretizadas e o irmão de Antônio foi levando a situação como podia. Ainda não há um comprador certo em vista, mas quando a venda acontecer, o dinheiro será dividido entre o dono e as duas sobrinhas. A placa de venda foi instalada há cerca de 15 dias, mas grande parte dos frequentadores souberam da notícia na segunda-feira (12) pelas redes sociais.
De início, o restaurante funcionou no edifício Marquês de Abrantes, quase defronte a atual sede, no Largo do Mocambinho, no Dois de Julho. Em 1966 houve a mudança de endereço. O cardápio, no entanto, segue o mesmo desde a fundação, com pratos como moqueca de carne, rabada com pirão, mocotó, moqueca de arraia e língua ensopada.
Tristeza
Se para falar de economia, Chico demonstra frieza, quando o assunto é a tradição familiar, o coração amolece. “Minha mãe uma vez me disse: ‘meu filho, não deixe o restaurante cair, foi seu pai que fez com muito amor’. É difícil, só uma loteria para poder acalmar tudo”, diz sem conseguir esconder a emoção.
Sua filha, Cristina Moreira, 46, que começou a trabalhar com o pai há cerca de 10 anos, também fica com os olhos marejados quando pensa no fim do restaurante. “Eu cresci aqui, vivi momentos bons e ruins. A morte da minha mãe, do meu tio, o nascimento dos meus filhos”, lamenta. Ela, no entanto, não esconde a vontade de abrir outro restaurante para dar continuidade à tradição. “Com o restaurante fechando, vamos precisar de um tempo para resolver tudo e esfriar a cabeça, mas minha pretensão é abrir um restaurante em um formato menor e com menos custo, porque a gente não consegue se desvincular disso”, revela.
Assim como os restaurantes Mini Cacique e Colon, ambos fechados entre 2020 e 2021, o provável encerramento das atividades do Porto do Moreira representa a decadência de um Centro que quase não existe mais. O próprio restaurante ainda hoje é como um portal para os tempos passados, com suas mobílias antigas e quadros nas paredes. Além, é claro, de Chico Moreira contando as histórias da época de seu pai.
“O Porto do Moreira foi uma instituição cultural da culinária baiana e um marco extraordinário”, relembra com carinho Florisvaldo Mattos, poeta e membro da Academia de Letras da Bahia (ALB). Hoje com 90 anos, o escritor era presença ativa no restaurante que frequentava na década de 1960 com os colegas da Geração Mapa, como ficou conhecido o grupo dele e de gente como o cineasta Glauber Rocha, dentre outros.
Intelectuais e profissionais liberais, como médicos e advogados, passavam longas horas trocando experiências e aproveitando as delícias culinárias, enquanto José Moreira ainda ficava atrás do balcão coordenando os filhos no salão. “Nessa época, o Porto do Moreira era uma convergência de pessoas ligadas à cultura. Toda vez que nós, jornalistas, recebíamos as pautas, íamos lá almoçar para depois cumprir as tarefas”, conta Florisvaldo.
Quando soube da venda do restaurante através de um amigo na segunda-feira (12) pela manhã, a jornalista Olívia Soares compartilhou a notícia em uma rede social. Poucas horas depois, sua tristeza ganhou a companhia de dezenas de pessoas que também lamentam o fechamento.
“Eu tenho um amor pelo Centro e tenho muita vontade que ele dê certo. O Porto do Moreira é um dos últimos lugares que resistem naquela região. Ali já teve muita coisa, então é uma tristeza muito grande e toca muitas pessoas”, diz.
*Com orientação de Monique Lôbo.