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Da Redação
Publicado em 2 de junho de 2013 às 09:29
- Atualizado há 2 anos
Victor Uchô[email protected]
Até ser assassinado, ele foi o homem mais caçado pela polícia política da Ditadura Militar brasileira (1964-1985). Referência ideológica para nomes como o filósofo Jean-Paul Sartre, o pintor Joan Miró e os cineastas Luchino Visconti, Jean-Luc Godard e Glauber Rocha, tem suas obras estudadas até hoje na Academia Militar de Nanquim (China) e na sede da Agência de Inteligência Americana (CIA). Leia mais:Até os 23 anos na Bahia, Marighella já mostrava seu perfil combativoSalvador vai ganhar Memorial da Resistência no Centro HistóricoNeto de escravos e filho de uma negra com um imigrante italiano, ele militou pelo Comunismo por quase 40 anos, boa parte deles na clandestinidade. Foi investigado tanto pela CIA quanto pela KGB, a agência de inteligência russa.Anistiado “post mortem” em 2012, amado por muitos e odiado por outros tantos, é preciso concordar numa questão sobre Carlos Marighella (1911-1969): no século XX, poucos baianos tiveram tanta projeção internacional quanto aquele mulato.Depois de ganhar o mundo, Marighella quer voltar pra casa. Mais precisamente para a casa onde ficou por mais tempo nos seus 57 agitados anos de vida. Em ruínas, o imóvel onde o mecânico Augusto Marighella e a esposa Maria Rita criaram oito filhos sucumbiu ao tempo e ao descuido. Carlinhos Marighella olha o imóvel que conheceu na infância e sonha com criação de espaço de referênciaEsquinado na Rua Barão de Desterro, transversal da Baixa dos Sapateiros que fica de frente para o também arruinado Cine Pax, resiste com uma fachada deteriorada e restos de telhas que nada protegem. Por dentro, é só mato. “Marighella tem sua formação fincada na Baixa dos Sapateiros e aquela casa está em risco iminente de destruição. Deixar aquilo se destruir é um crime de lesa-história”, observa o jornalista Mário Magalhães, autor da biografia Marighella – O Guerrilheiro que Incendiou o Mundo, lançada em 2012. Magalhães defende que, no imóvel, seja criado um espaço de preservação da memória de Carlos Marighella, que serviria como ponto de pesquisa da obra do homem que fez poesias, atuou na política legalmente e, quando acuado, tramou revoluções. Em posse de “centenas de quilos de documentos” reunidos ao longo de nove anos de apuração, o jornalista afirma que transfere todo o material para o espaço, se ele vier a ganhar forma.Aos 17 anos, vivia naquela casa; Crachá do Partido ComunistaPé da mesaEm sua investigação, Magalhães encontrou registros de que Carlos, o primogênito de Maria Rita, ganhou a luz pelas mãos de uma parteira na Ladeira da Fonte das Pedras, onde hoje está a Fonte Nova. Mas, quando o garoto tinha cerca de 3 anos, a família se mudou para a Barão de Desterro. Ali ele viveu até os 23 anos, quando partiu para o Rio de Janeiro. Era naquela casa que a mãe amarrava o tornozelo do filho ao pé da mesa, evitando a fuga de um garoto que, então, só queria jogar bola na rua. Uma vizinha alertou: “Dona Rita, não faça isso. Criança que é presa assim acaba presa de verdade”. Marighella nunca mais foi preso à mesa, assim como a mãe nunca se perdoou quando ele passou a ser preso e torturado, vez após vez. O advogado Carlos Augusto Marighella, o Carlinhos, filho do político, tenta materializar a ideia de fazer da antiga morada do pai um espaço de referência. “Muito pequeno, estive aqui com meu tio Caetano (irmão de Carlos). Depois voltei com meu pai. Ele contava muitas histórias vividas nessa rua. Aqui funcionava também a oficina de meu avô. Precisamos valorizar isso. A família está disposta até a comprar a casa”, diz ele, no meio da Barão do Desterro, olhando para uma parede sem vida, mas com lembranças.O CORREIO localizou um dos atuais proprietários do imóvel, mas ele optou por não dar qualquer declaração sobre a situação e o futuro da casa. RedeCarlinhos Marighella é coordenador do Grupo de Trabalho (GT) criado pela Secretaria Estadual de Cultura (Secult) para viabilizar a implantação do Memorial da Resistência Carlos Marighella, que reuniria material sobre o enfrentamento ao autoritarismo na Bahia desde o período da escravidão até os dias atuais, com ênfase nos anos da Ditadura. Com dois imóveis destinados a ele no Centro Histórico, a previsão é que o memorial seja aberto em 2014. “Acho o memorial da resistência, mais amplo, muito importante. Mas uma coisa não exclui a outra. Até complementa. Temos que revitalizar a casa de meu avô e criar este espaço dedicado especialmente a Marighella”, argumenta Carlinhos. Outro que levanta esta bandeira é o arquiteto Marcelo Ferraz, autor de projetos como o do Palacete das Artes (Museu Rodin), na Graça, e de revitalização do Parque São Bartolomeu, obra que está em andamento no Subúrbio Ferroviário. No dia 23 de maio ele protocolou no Instituto do Patrimônio Artístico Cultural da Bahia (Ipac) um pedido de tombamento do imóvel. “Nada substitui o lugar. Basta ver como as pessoas visitam a casa de Kafka em Praga (República Tcheca), a casa de Bertold Brecht em Berlim (Alemanha), a casa de Anne Frank em Amsterdam (Holanda) ou as casas de Neruda no Chile”, lista Ferraz, antes de dizer que a recuperação da casa de Marighella seria mais um fator para impulsionar o processo de revitalização da Baixa dos Sapateiros. “Que nunca sai do papel”, completa. PegadasO presidente do Ipac, Frederico Mendonça, mostra-se favorável ao plano, mas não estipula prazo para que seja dada uma resposta ao pedido de tombamento. “O tempo depende dos elementos disponíveis. De antemão, acho a iniciativa excelente. As cidades estão crescendo, mas é preciso cuidar das pegadas, das marcas que nos ajudam a fazer o caminho de volta”, diz. “A casa da Baixa dos Sapateiros pode estar ligada ao memorial maior e pode ser criado até um caminho entre os dois pontos, fazendo com que as pessoas circulem”, emenda Antonio Diamantino, assessor de Projetos Especiais da Secult, adiantando que o GT do Memorial da Resistência vai analisar a criação de uma espécie de “rede de espaços”.Na esperança de que o projeto extrapole as mentes e ganhe cada palmo do imóvel na Barão de Desterro, Carlinhos não deixa sua lembranças borrarem. “Meu pai ficou conhecido como guerrilheiro, comunista, é estudado no mundo todo, mas nunca desapegou da Bahia. Escreveu muitos poemas sobre as praças daqui, sobre o farol. Ele saía aqui da Baixa dos Sapateiros pra jogar capoeira no Terreiro de Jesus. Esse é o lugar dele”, conclui o advogado, alimentando um desejo: levar o pai de volta pra casa.Cartão da oficina mecânica, que na época funcionava no número 8Oficina de Augusto Marighella era referência na capital baianaNaqueles imóveis conjugados da Rua Barão de Desterro, onde criava os filhos e mantinha sua oficina, o italiano Augusto Marighella fez fama por ser um mecânico de esmero. Meio sem querer, até o Carnaval de Salvador tem ligação com seu estabelecimento. Ali, Osmar Macedo foi aprendiz, anos antes de juntar-se a Dodô para fazer de um mero Ford 29 a Fobica, o avô do trio elétrico atual. Augusto Marighella notabilizou-se ainda por ter sido o primeiro mecânico em Salvador a utilizar o martelo de borracha para consertar as chaparias dos veículos envolvidos em acidentes. Em sua época de clientela fiel, era também bastante procurado por ser um dos poucos mecânicas na capital baiana capazes de consertar motores de navios. Na década de 1940, com a Segunda Guerra Mundial consumindo todo o estoque de gasolina ao redor do mundo, criou um conversor de combustível para motores, permitindo que os automóveis pudessem utilizar gasogênio. Definido por Mário Magalhães como um antecessor do Professor Pardal - o personagem da Disney surgiu em 1952 -, Augusto Marighella bolou até uma engenhoca para não deixar faltar água na casa onde vivia toda a família. Para isso, instalou uma catraca de ônibus na porta do imóvel.Assim, toda vez que alguém entrava ou saía, a rotação da catraca acionava um mecanismo que bombeava água para o tanque. Segundo Carlinhos Marighella, todas estas histórias também ficariam disponíveis no sonhado espaço de memória da Barão de Desterro.