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De piloto frustrado a artista genial: histórias de quem conviveu com Mario Cravo Jr

Artista contrariou a arte de seu tempo para criar tendências e trazer o novo

  • Foto do(a) author(a) Alexandre Lyrio
  • Alexandre Lyrio

Publicado em 3 de agosto de 2018 às 07:34

 - Atualizado há 2 anos

. Crédito: Foto: Arquivo CORREIO

A Bahia quase perdeu a genialidade artística de Mario Cravo Júnior uns 40 anos antes de sua morte, quarta-feira (1º). O culpado seria ele mesmo e sua paixão pelo automobilismo. Ainda bem, contentou-se em realizar nos filhos o que ele gostaria de ter sido. “Ele viu em mim o que ele queria ser na época: piloto de carros”, contou Ivan Ferraz Cravo, hoje o filho mais velho do artista.

Naquela época, década de 1970, as corridas aconteciam na Avenida Centenário. Tempos em que Lulu Geladeira, André Buriti, Maurício Castro Lima e os Cravos aceleravam fundo. “Mas ele não pilotava. Só ia ver as corridas e patrocinava a gente”, lembrou Ivan. Em uma oficina na Avenida Garibaldi eram construídas as máquinas de fibra de vidro e ferragens. Nos domingos de corrida, nem sempre os Cravos chegavam à frente.

É que ali, na mesma oficina, também eram feitas as obras de arte. A essa altura, os automóveis eram só um hobby para Mario Cravo. Já a arte... era trabalho. Muito trabalho. Aí sim, relatam todos que conviveram com seus processos criativos, ele sempre esteve à frente do seu tempo.

Quando todos reverenciavam suas esculturas em madeira, inventou de usar o ferro. Quando reverenciavam o ferro, ele introduziu a resina. “Ninguém se interessava por resina, mas Mario apostava que era o futuro. Depois que aquilo foi digerido pelo público, virou tendência”, lembrou Sérgio Rabinovitz, um de seus pupilos. “Mario Cravo foi o primeiro cara a me mostrar um computador. Estava sempre à frente”. Foto: Mario Cravo Neto/Divulgação Fernando Sodake, filho adotivo de Mario Cravo, acredita que a multiplicidade e ineditismo da obra do pai estava no fato de ele não fazê-la por encomenda. “Meu pai não fazia a arte dele para os outros, fazia para ele. Talvez aí esteja a grande força de sua obra. Não tinha preocupação comercial com sua arte. Foi um artista na essência”.   

 Privilegiados Do seu tempo, no que fazia, não havia igual. E todos reconheciam isso, inclusive os outros artistas. É o que lembra Rabinovitz, que antes de Mario conheceu a arte de Calazans Neto. “Entrei pela primeira vez no ateliê de Mario Cravo levado pelo meu pai. Eu fazia xilogravura. Calazans já tinha me ensinado tudo o que podia. Chegou uma hora que ele me disse: ‘Rapaz, eu já te ensinei tudo o que podia. Agora só Mario Cravo. Procure ele’”, contou Rabinovtz, ao mesmo tempo sorrindo e emocionado. 

O filho Ivan diz que houve um momento em que seu pai esteve no auge. “Um dos  períodos mais importantes da trajetória do meu pai foi no período de ACM, o velho ACM. Foi quando ele fez  essas obras gigantes. Não posso negar que, nessa época, ele foi reconhecido”. Graças a algumas dessas obras,  é impossível andar por Salvador sem enxergar os monumentos construídos por ele.

Da Cruz Caída, no Belvedere da Sé, à Fonte do Mercado  ou Monumento à Cidade do Salvador, na Praça Cayru, o filho diz que, só de obras doadas à cidade e ao estado, estão catalogadas mais de 800. Foto: Arquivo CORREIO Mario Cravo não só mexia com metal como tinha uma saúde de ferro. De estatura alta, parecia inabalável. Mas a morte do filho, o fotógrafo Mario Cravo Neto, fez ele curvar-se por um bom tempo. “Foi a primeira vez que vi ele abatido. Ele perdeu o braço direito. Viviam juntos”, lembrou o motorista Antônio Fernando Gomes, funcionário de Mario Cravo por mais de 30 anos.

No momento de seu velório, eis que surgem brincadeiras e revelações. Ivan Cravo brincou com a fama de sedutor do pai. “Era muito mulherengo”. Alguém também lembrou que, além de escultor, gravador, pintor e desenhista, Mario Cravo também foi poeta. E até isso estava no sangue. Sua mãe era prima de Castro Alves. 

Junto com Carybé, Pierre Verger e Jorge Amado, formou uma trupe que “criou” o conceito de baianidade. Frequentavam espaços do povo, como o Barracão do Mestre Waldemar, local em que capoeiristas valentões da época vadiavam aos domingos. “A verdade é que esses caras fizeram a Bahia ser conhecida no mundo todo. Não é à toa que uma fundação na Alemanha chamou ele para morar lá dois anos”.   Legado Privilegiado em dobro, Ramiro Bernabo, filho de Carybé, conheceu Mario Cravo nos anos 50. “Ele previu todo esse movimento artístico globalizado que existe hoje. O que ele fazia aqui nos anos 50 era absurdo, comparável a artistas europeus. Rolava um estranhamento. Certa vez ele foi vaiado em uma exposição que usou ferro”, disse Ramiro, também artista plástico.

O preço por estar à frente do seu tempo foi alto, mas valeu a pena. Sempre vale. Artista mais novo, Bel Borba também bebe em sua fonte. “Ele não é só modernista. A obra dele é contemporânea”. Artistas de rua menos conhecidos também fizeram questão de dizer o quanto suas obras estão entranhadas da arte de Mario Cravo. “Não foram poucas vezes que deitei no Parque de Pituaçu e viajei naquelas obras”, disse André Fernandes, se aproximando do caixão para reverenciar o mestre. 

A obra pode até se perder, mas o legado permanece. Ainda mais em uma família de artistas. Na família Cravo, quem não lida com a arte de mexer com carros produz outras obras. O talento dos Cravos, presente nos filhos, chegou aos netos Christian, que é fotógrafo, Lucas, pintor, e Akira, escultor e fotógrafo. “A maior inspiração é a intuição dele. Ele dizia que a arte não é aprendizado. É sentir”, disse Akira, filho de Mario Cravo Neto.