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Da Redação
Publicado em 22 de agosto de 2022 às 05:30
“Mamãe, olha, meu joelho ralou”. Uma frase comum para qualquer criança, mas que fez encher de lágrimas de felicidade os olhos de Patrícia Mota Barbosa, de 47 anos. Isso porque seu filho, de 10 anos, não nasceu como toda criança. Desde o parto, Vinícius carrega uma síndrome rara que o impedia de respirar sozinho e, consequentemente, de correr e brincar. Após anos na ventilação mecânica, carregando um cilindro de oxigênio e usando uma cadeira de rodas para se locomover, ele, como sua mãe mesmo diz, nasceu de novo. E ralar o joelho pela primeira vez foi só uma de suas conquistas. A vida do garoto mudou totalmente graças a cirurgia que ele fez em junho, o primeiro implante de marca-passo diafragmático quadripolar realizado na Bahia, e que garantiu que Vinícius desse adeus para a cadeira de rodas. “Ficar sem a ventilação, sem a cadeira de rodas, sem o cilindro é muito bom, mas muito bom mesmo. Eu me sinto mais livre sem aquela ventilação me atrapalhando, eu consigo andar agora, consigo jogar bola, é bom demais. Às vezes eu consigo correr pra pegar a bola e aí é gol”, descreve o menino, que mora com a mãe e o irmão de 23 anos no Cabula VI, em Salvador.
Patrícia cursa Farmácia e vive quase exclusivamente para ser mãe. Ela conta que o filho passou a usar a cadeira de rodas porque, quando andava, ele ficava sem ar. Sem contar que o cilindro de oxigênio com a mangueira que eram itens muito pesados para levar toda vez que ele fosse sair com a família. Vinícius já consegue andar sem a necessidade da cadeira, mas ainda precisa de apoio por conta da fragilidade da pernas (foto: acervo pessoal) Justiça A cirurgia foi realizada por conta da síndrome de Loeys-Dietz, a qual ele é portador. É uma doença rara que provocava no garoto problemas respiratórios como apneia, o que dificultava a respiração. Antes do procedimento, o garoto ficava praticamente o dia todo dependente de um aparelho para respirar. O uso constante da máscara, porém, passou a deformar os ossos da face e após ter se infectado com a covid -19 e ter o quadro de saúde ainda mais agravado, ele recebeu indicação para fazer uma traqueostomia, um procedimento cirúrgico na região da traqueia (pescoço), com o objetivo de facilitar a chegada de ar até os pulmões, mas que pode afetar a capacidade do paciente falar.
“Ele ficou internado por conta da covid, conseguiu se curar, mas a doença acabou prejudicando demais o pulmão dele. Eu me desesperei quando a doutora me disse que ele ia ter que fazer traqueostomia. Cheguei quase que aos prantos conversando com a pediatra dele para tentar outra saída”, relata.
A pediatra, então, apresentou a Patrícia à especialista Maíra Kalil, que poderia realizar a implantação do marca-passo diafragmático no Hospital Santa Izabel. O aparelho é uma estimulação externa, que imita a ventilação natural, reduzindo o índice de infecção respiratória e melhorando a mobilidade e autonomia do paciente. “Pensei: ‘É minha salvação’”, relembra Patrícia. Mas não seria tão ‘fácil’. O plano de saúde informou que não cobriria o procedimento e a mãe de Vinícius precisou acionar a Justiça. “A liminar saiu em menos de 24 horas, mas o plano de saúde levou quase dois anos e meio negando a liminar. Depois desse tempo todo, indo e voltando várias vezes na Defensoria Pública da Bahia, eu ganhei o processo”, explica. A cirurgia, enfim, aconteceu em 1º de junho. O marca-passo não funciona logo depois da instalação, precisa cicatrizar a cirurgia e depois fazer a ativação do aparelho. “Quando fizemos a ativação no marca-passo ele nasceu de novo. Criança quando nasce chora porque o pulmão está funcionando. Em junho, no mês do aniversário dele, ele chorou igual um bebê quando conseguiu respirar sozinho”, conta Patrícia, emocionada.
Livre O mundo de Vinícius nunca mais foi o mesmo depois da cirurgia. Respirar é algo tão simples e involuntário, mas para ele sempre foi fator de preocupação. Hoje, o menino está, finalmente, livre para ser realmente uma criança. Assim como ralar o joelho foi uma conquista simples, mas muito emocionante, a primeira vez que o garoto saiu de casa de mãos dadas com a mãe, sem a cadeira de rodas, também foi uma grande vitória, além de ter sido um momento inesquecível para Patrícia. Ela lembra desse momento com muita felicidade e emoção. “Gente, eu nunca andei com meu filho de mãos dadas sem puxar um cilindro, sem empurrar uma cadeira de rodas, e agora eu estou andando com ele de mãos dadas”, diz, bastante entusiasmada. “Todas as pessoas que conhecem ele comemoram, brincam, os motoristas dos ônibus que eu pegava para sair com ele fizeram uma festa, buzinaram fizeram um alvoroço, o pessoal da rua também. Não tenho nem palavras para dizer o quanto eu estou feliz com essa cirurgia, deu liberdade para o meu filho, antes ele estava preso”, acrescenta. Vinícius e a mãe Patrícia, que precisou ir à Justiça para conseguir que o plano de saúde custeasse a cirurgia (foto: acervo pessoal) A cozinheira Lucimeire de Jesus da Silva, 32, que tem um restaurante na região do Cabula VI, conhece a criança há mais de seis anos e contou o quanto a felicidade passou a ser mais presente na vida de Patrícia. "Vinícius era um menino que mal se movia, Patricia ficava acordada 24 horas monitorando, tinha medo dele parar de respirar. Agora ele pode se locomover sozinho. A esperança da família se renovou. Ela sempre cuidou sozinha do filho dela, é uma mulher muito guerreira”, disse a mulher.
Quem buzinou e fez uma festança na rua de Patrícia para comemorar o sucesso da cirurgia foi Cláudio Conceição, 56, que é motorista de transporte público. Ele contou que conheceu a família porque a estudante de farmácia sempre levava o filho de ônibus para resolver os problemas judiciais para conseguir que o plano de saúde cobrisse o procedimento de Vinícius.
“Eu faço a linha do Cabula VI e ela [Patrícia] estava sempre levando o menino para realizar as atividades necessárias, ele sempre estava na cadeirinha de rodas e o cobrador baixava o elevador do ônibus para ele. A gente foi conversando e com a convivência pegamos amizade. Ela sempre na luta do dia a dia, não parava em casa, sempre na correria”, relembrou o motorista. Cláudio lembra que o bairro todo, os motoristas e cobradores que passam pela região comemoraram muito a cirurgia de Vinícius. “Hoje, depois de toda a luta, eu vejo Patrícia com um sorriso enorme no rosto e o garoto andando sozinho, sem aqueles aparelhos. É uma alegria não só para eles, mas para todos nós também”, finalizou.
Mesmo de mãos dadas com a mãe, as pernas de Vinicius ainda precisam se adaptar ao andar, já que ele usou a cadeira de rodas a maior parte de sua vida. “Mesmo ele andando comigo, eu segurando ele, ele ainda está com as pernas meio fracas pelo costume da cadeira de rodas, ele se desequilibrou esses dias e arranhou o joelho. Uma coisa que toda criança tem e ele nunca teve. Pensa em uma alegria grande”, relembrou. Sem emprego, Patrícia sobrevive com uma bolsa que recebe do governo por conta da deficiência de Vinícius, com a ajuda do filho mais velho e com vaquinhas virtuais de arrecadação de dinheiro que ela realiza às vezes para cobrir os custos mais necessários. O próximo passo, após consulta ortopédica, é tentar corrigir a deformação no rosto do garoto por conta da máscara de oxigênio. No futuro, a criança, que tem aula em casa, pretende voltar para a escola. Uma conquista de cada vez.
A cirurgia No Brasil, existe o registro de menos de dez cirurgias do tipo e Salvador agora faz parte desse universo. O procedimento foi realizado pela cirurgiã torácica Maíra Kalil, comandando uma equipe com profissionais locais, da Finlândia e de São Paulo. “Me mobilizou porque era uma criança que já tinha limitações em relação ao movimento, que não podia caminhar por conta da necessidade de estar o tempo todo conectada ao ventilador”, conta Maíra. A cirurgiã explica que o procedimento tem indicação muito específica. “Ela é feita em pacientes que são dependentes da ventilação mecânica, mas por doenças que não são pulmonares. São pacientes que têm uma síndrome de tipo ventilação central, é como se ele esquecesse de respirar”, diz. A cirurgia é feita através de vídeo, uma videotoracoscopia, em que os médicos identificam o nervo frênico, que se origina no pescoço e passa entre o pulmão e o coração para alcançar o diafragma, que é o responsável pela respiração, e implanta o marca-passo quadripolar em quatro pontos do nervo. O marca-passo diafragmático, diferentemente do marca-passo cardíaco, que fica todo dentro da pele, fica uma parte na área externa do paciente, como se ele carregasse um aparelhinho de rádio do lado de fora. A médica também relembra com carinho do momento que a equipe ativou o marca-passo de Vinícius. “Todo mundo começou a chorar quando ele percebeu que estava conseguindo respirar, que ele não estava ficando roxo, mesmo sem a máscara e o cilindro de oxigênio. Ele ainda terá limitações, mas a qualidade de vida dessa criança é outra e o rosto já mudou”, finaliza Maíra.
Quem quiser ajudar a custear as medicações ainda necessárias para Vinícius pode contribuir por meio de uma vaquinha virtual.
*Com orientação da subchefe de reportagem Monique Lôbo