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Da Redação
Publicado em 14 de novembro de 2022 às 05:01
Não à toa o Centro da cidade recebe esse nome, afinal, a região já foi o polo econômico mais importante de Salvador. Mas a partir dos anos 1970, com o desenvolvimento de outras áreas da capital, o Centro foi aos poucos perdendo características que lhe eram próprias. Prova disso é que com menos segurança e infraestrutura no local, escolas tradicionais fecharam as portas ou sofrem com a perda de alunos. A última a anunciar o fechamento foi o Colégio Nossa Senhora das Mercês, que vai encerrar suas atividades a partir do ano que vem, depois de 125 anos de história.>
Houve um tempo em que os soteropolitanos diziam que por onde a Avenida Sete passava havia progresso. A via foi inaugurada em 1916 pelo governador J.J. Seabra como parte de um plano de reforma urbana. Foi nos tempos áureos do Centro, entre o final do século XIX e a primeira metade do século seguinte, que diversos colégios particulares religiosos foram erguidos. Enquanto as Mercês e o Colégio das Irmãs Doroteias fecharam as portas, outros como Dois de Julho, Salette e Sacramentinas, que já foram referência, perderam força com o passar das décadas.>
A partir dos anos 70, o centro comercial da cidade começou a se deslocar para outros pontos, o que atraiu moradores e, consequentemente, escolas. “Quando outros centros de comércio, lazer e economia começam a ser desenvolvidos em Salvador, como a região do Iguatemi e da Tancredo Neves, o Centro começa a ser prejudicado”, explica o historiador Rafael Dantas.>
O Colégio Mercês possui hoje cerca de 300 estudantes, mas já chegou a ter mais de mil matriculados. >
A família do jornalista Fábio Ribeiro, 25 anos, acompanhou de perto as mudanças. Sua mãe trabalhou durante 32 anos como faxineira da Fundação Dois de Julho e foi demitida no início da pandemia, em 2020. Fábio estudou no colégio, que fica no Garcia, até 2010, e conta que na última década a perda de alunos foi notável.>
“De 2010 para cá mudou muita coisa, principalmente por conta da diminuição de alunos no Colégio Dois de Julho. Em 2013, teve uma crise financeira que fez com que muitos alunos migrassem para outras instituições”, afirma. Procurado, o Colégio Dois de Julho informou que funciona apenas com turmas que vão do grupo 4 ao 9º ano. >
A aposentada Maria José Santana, 72, morou boa parte da vida nos Barris, onde trabalhou no antigo Núcleo de Educação Goés Calmon. Ela acredita que o maior consumo de drogas na região contribuiu para a insegurança e diminuição do número de alunos.“A gente dizia que Salvador era uma cidade modelo e os colégios do Centro na época eram referências, mas com o tempo mudou tudo”, revela. Em agosto deste ano, o assassinato da jovem Cristal Rodrigues Pacheco, 15, enquanto caminhava com a irmã e a mãe em direção ao Colégio Mercês, deixou pais e alunos que fazem o mesmo percurso atônitos. As três sofreram uma tentativa de assalto em frente ao Palácio da Aclamação, próximo ao Campo Grande. Em nota sobre o fechamento da instituição, o Colégio Mercês afirma que a localidade não oferece mais segurança e mobilidade necessárias para os familiares dos alunos. >
Leia mais: Estudantes revelam temor de andar pelo centro de Salvador>
“Prefeitura e governo devem tomar medidas para tornar o Centro mais atrativo e referência para moradia. Por exemplo, andar na Avenida Sete de Setembro em dia de semana, de noite, é quase impossível por conta da insegurança”, afirma Rafael Dantas. >
A Secretaria da Segurança Pública (SSP) foi procurada para comentar as questões sobre insegurança trazidas na reportagem, mas não retornou até o fechamento da edição. >
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Debandada Quando investimentos são deslocados para outras regiões, donos de escolas passam a seguir a tendência, segundo o diretor do Sindicato das Escolas Particulares da Bahia (Sinepe-BA), Jorge Tadeu Coelho.>
“A região do Centro concentrava escolas, mas o eixo central da cidade se deslocou muito. (...) Escolas privadas obedecem a lógica do empresário da educação que observa um local com demanda e busca atender”, explica. >
Colégios particulares têm se deslocado para bairros que possuem uma população mais jovem. O Colégio Sartre fechou sua unidade na Graça no ano passado e continuou com duas localizadas no Itaigara. Enquanto o primeiro bairro possui 18% de sua população composta por pessoas com mais de 65 anos, no segundo o número diminui para 12%. >
Em 2002, o Colégio Marista transferiu-se para Patamares, onde os idosos correspondem a 5% e a fechou a unidade do Canela, bairro em que 20% dos moradores possuem mais de 65 anos. Os dados são do Censo de 2010 e são os mais recentes sobre o assunto, segundo o IBGE.>
A debandada não é exclusiva das escolas particulares. O Colégio Estadual Odorico Tavares fechou as portas em janeiro de 2020 após 25 anos. Localizado no Corredor da Vitória, uma das áreas mais nobres da cidade, o colégio já teve filas de mães para conseguir vaga para os filhos no passado. Em 2019, eram apenas 308 matriculados, menos de 9% de sua capacidade total, de 3,6 mil alunos. >
O presidente do Instituto dos Arquitetos do Brasil na Bahia (IAB-BA), Luiz Antônio de Souza, chama a atenção para a naturalização de fechamentos de espaços com importância histórico-cultural.>
“Os locais possuem função social e urbana, então é de um simplismo muito grande falar simplesmente ‘eu vou embora’ porque não atende as expectativas de lucro sem saber quais esforços foram feitos para a escola continuar funcionando”, defende. >
Luiz Antônio lembra ainda da especulação imobiliária que os espaços que habitam escolas sofrem. No terreno onde funcionou durante 56 anos o Colégio Isba, em Ondina, está sendo erguido um grande empreendimento imobiliário e o mesmo deve acontecer com a antiga unidade do Colégio Sartre. >
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Escolas tradicionais precisam se adaptar às mudanças sociais e tecnológicas>
Especialistas da área da educação ouvidos pela reportagem afirmam que mesmo as escolas tradicionais devem estar atualizadas com as novas tecnologias caso queiram continuar competitivas no mercado.>
Para o coordenador do curso do curso de Sistemas de Informação da Rede UniFTC Fabrício Oliveira, a pandemia tornou o uso das inovações tecnológicas ainda mais evidente, com aulas e atividades remotas. >
“Os alunos que temos hoje dentro das escolas já nascem na interatividade e na conectividade, que começa a levar a tecnologia no bolso para a sala de aula. Se a escola não estiver preparada para isso, vai acabar ficando para trás”, explica o professor.>
O Colégio Nossa Senhora das Mercês pontuou que a instituição “não atende as necessidades que uma escola moderna requer nestes tempos atuais”, na nota em que divulga o encerramento das atividades. >
Outro fator, dessa vez elencado pelo diretor no Sinepe-BA, Jorge Tadeu, é o fato de que as escolas precisam estar atentas às mudanças sociais, o que pode ser mais difícil para o ensino religioso.“Nos últimos anos, novas teorias e metodologias educacionais foram chegando às escolas, que passaram a ter projetos pedagógicos mais atualizados com questões sociais”, diz. O diretor afirma ainda que a crise financeira causada pela pandemia também dificultou a captação de recursos para as instituições, que perderam alunos e precisaram lidar com a inadimplência. >
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Má administração teria feito Colégio Mercês fechar as portas, diz ex-funcionária>
Quase metade da vida da aposentada Elvira Almeida, 54, foi destinada ao Colégio Nossa Senhora das Mercês. Além de ter estudado lá, ela foi durante 25 anos professora da instituição. Sua tia, que hoje possui 100 anos, também estudou nas Mercês e Elvira fez questão de matricular os três filhos na escola.>
Para ela, que viveu o dia a dia do colégio durante décadas, a má administração seria o principal motivo para o fechamento. >
“Não foi só uma questão urbana, acredito que tenha sido uma questão administrativa. (...) O Sacramentinas, Antônio Vieira e Dois de Julho ainda estão funcionando, o Salette, capengando, ainda está aí”, afirma a ex-funcionária.>
“Colocaram [o colégio] na mão de pessoas incompetentes, que não tinham condições de governar uma escola daquela. A Igreja Católica é muito rica e tem como sustentar a escola, mas não houve interesse em reerguer as Mercês”, complementou. >
Já o Colégio Mercês afirma, em nota, que o principal motivo para a decisão de encerrar as atividades foi a crise financeira intensificada pela pandemia. A Arquidiocese do Salvador foi procurada para comentar a situação dos colégios católicos da capital baiana, mas não se manifestou. Enquanto isso, Elvira lamenta o fim da instituição secular.“Com o fim das Mercês, a sensação é de que estou enterrando uma história de vida”, desabafa a aposentada.*Com orientação de Perla Ribeiro.>