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Acesso a armas não letais como spray de pimenta e cassetete é pedido da categoria
Thais Borges
Publicado em 3 de maio de 2018 às 06:00
- Atualizado há 2 anos
Foto: Mauro Akin Nassor/CORREIO “A gente se acostuma. É que nem ver sangue, acidente de trânsito. É uma coisa natural da profissão”. Com essas palavras, o agente de trânsito Raylson Oliveira, 64 anos, explica que já aprendeu a lidar com xingamentos e ameaças de motoristas, desde que entrou na Superintendência de Trânsito de Salvador (Transalvador), aprovado no concurso de 1999. Antes, era rodoviário – outra profissão que também sofre com a violência no trânsito.
Mas, na última segunda-feira (30), a agressão mudou. As ameaças se concretizaram – e vieram na forma de um soco no rosto, desferido por um condutor insatisfeito com uma autuação de estacionamento irregular. Com isso, Raylson se tornou o 15º servidor da Transalvador a ser agredido durante o trabalho somente este ano – um dia antes do início da campanha do Maio Amarelo, que é um movimento pela redução dos acidentes no trânsito.
Diante da situação, cerca de 100 agentes de trânsito da fizeram um protesto nesta quarta-feira (2), na sede da Transalvador, para cobrar que o projeto de lei que prevê porte de armas não letais pela categoria seja pautado e aprovado pela Câmara Municipal de Salvador (CMS). O grupo se reuniu com o superintendente Fabrizzio Muller e com o presidente da Casa, Léo Prates (DEM), autor da proposição.
Entre os especialistas, a medida é aprovada, mas há ponderações. O consultor da Federação Nacional das Associações de Detran (Fenasdetran) e advogado especialista em trânsito Clézer Costa explica que é contra o porte de armas de fogo por parte dos agentes. No entanto, ele aprova os equipamentos de menor potencial ofensivo. “Eles sofrem muitas ameaças. Hoje, se multa muito através de radares fotossensores e videomonitoramento, mas isso recai sobre o agente. As pessoas terminam com esse ódio em cima do agente e eles ficam muito expostos”, diz.
O Projeto de Lei nº 368/15, caso aprovado, vai permitir que os profissionais usem armas como spray de pimenta, cassetetes, pistola de eletrochoque e até balas de borracha. Segundo Léo Prates, é possível que o projeto seja votado na próxima quarta (9). “Se houver acordo, não terei problema de votar na quarta-feira que vem”, disse.
O vereador contou que o projeto de lei sofreu uma alteração em relação à permissão do uso de arma letal pelos agentes de trânsito. Agora, ele sugere que a Transalvador estabeleça uma hierarquização para a utilização das armas não letais, levando em conta o cargo do agente na corporação. (Foto: Mauro Akin Nassor/CORREIO) Função de inibir Para o presidente da Associação dos Servidores Transporte e Trânsito do Município (Astram), André Camilo, a aprovação do projeto de lei faria com que a violência contra os agentes diminuísse.
"O projeto, se aprovado, vai inibir a ação de futuros agressores. Não temos nenhum treinamento de defesa pessoal, cursos de relações interpessoais e acompanhamento psicológico para lidar contra a violência", afirma. Além da aprovação do projeto de lei, a categoria pede um treinamento para o uso das armas.
O superintendente da Transalvador, Fabrizzio Muller, concorda com a proposta. Ele diz que não dá para admitir que um servidor público seja agredido. O órgão de trânsito estuda, inclusive, lançar campanhas de conscientização que ajudem a população a compreender melhor o trabalho dos agentes. Segundo o superintendente, a função dos servidores está longe de ser apenas multar.
“Quantos não se arriscam em vias de grande movimento em casos de acidente, para ajudar as pessoas?”, lembra. Muller prefere se referir às armas não letais como equipamentos de “defesa pessoal ou menor potencial ofensivo”. De acordo com ele, os agentes de trânsito se enquadram entre os agentes de segurança pública – ficando, assim, cobertos pela lei federal que autoriza o uso desses artefatos.
Para o superintendente, o uso das armas não letais serviria para resguardar a segurança dos agentes. “São equipamentos para garantir a segurança da pessoa, lembrando que qualquer um que utilize indevidamente qualquer equipamento dessa natureza está passível de punições administrativas e penais”. (Foto: Mauro Akin Nassor/CORREIO) Prevenção O consultor da Fenasdetran e advogado especialista em trânsito Clézer Costa defende que as armas não letais sejam usadas como prevenção e acredita que, com isso, as agressões seriam inibidas. “No caso da senhora que jogou a tinta (no dia 28 de abril), se o agente estivesse com um spray ou uma pistola, com certeza ela não teria feito isso. A população está muito estressada em relação à quantidade de multas e desconta no agente”.
O educador de trânsito Rodrigo Ramalho também destaca que as agressões no trânsito se transformaram em uma epidemia nas grandes cidades. Nos Estados Unidos, onde as pessoas podem andar armadas, as ‘road rages’ (comportamento agressivo de condutores) resultam em quatro mil mortes por ano, segundo ele.
“Se fosse para armas de fato, merecia um debate mais aprofundado, mas em relação a eles terem equipamentos de proteção individual é fundamental para a defesa pessoal”. De acordo com Ramalho, as agressões são mesmo um reflexo do aumento da fiscalização. Assim, é como se as pessoas tivessem uma ‘raiva programada’ do agente.“Quando as pessoas veem o agente como fiscalizador, elas veem como inimigo, então as hostilidades estão cada vez piores”, comentou Ramalho.Para o vice-presidente da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil - seção Bahia (OAB-BA), Jerônimo Mesquita, o agente de trânsito não deveria possuir armas não-letais, já que não são possuem uma função de segurança pública."O agente de trânsito tem poder de polícia administrativa. Quem devia tá fazendo isso é a Guarda Municipal, já que existe esse risco de agressão", afirmou Mesquita.Para isso ser feito, Mesquita explica que o efetivo da Guarda Municipal deveria ser maior. "A minha opinião é reforçar a Guarda. Ela deve acompanhar a Transalvador durante as operações; ele não pode chegar pra apanhar", comentou.
A OAB-BA vai promover um debate sobre o projeto no próximo dia 11, na sede do órgão, no bairro do Dois de Julho. Entre os convidados, estarão o superintendente da Transalvador, a vereadora Marta Rodrigues (PT) e o coordenador do Sindicato dos Servidores Municipais, Bruno Carianha. A presença de Léo Prates (DEM) ainda não foi confirmada. (Foto: Mauro Akin Nassor/CORREIO) Redução em outros estados As armas não letais são utilizadas em cidades como Brasília, Natal (RN), Mossoró (RN) e alguns municípios do Espírito Santo, de Goiás e do Pará. Em Brasília, uma das primeiras a adotá-las, os agentes portam os equipamentos desde 2012, segundo o presidente da Federação Nacional do Sindicatos dos Órgãos de Trânsito, Eider Marcos, que é auditor fiscal do Detran do Distrito Federal.
Por lá, o número de agressões foi reduzido em cerca de 50%. Ele destaca, contudo, que não basta ter as armas – é preciso treinar os agentes. Os cursos são ministrados pelos próprios fabricantes dos equipamentos e duram, no mínimo, uma semana.
“Em 90% dos casos em que é necessário usar, há agressão física. Então, no lugar de o agente revidar, ele imobiliza o cidadão. Agressão verbal a gente lida de forma verbal, mas à medida que a agressão aumenta, tem o uso gradativo da força”.
Ele reforça que o uso dos equipamentos deve ser preventivo. “O treinamento é justamente para saber o momento da necessidade. Há vários comandos verbais antes do uso do equipamento. Por exemplo, se for alguma situação que tenha plateia, precisa ser avisado aos demais a possibilidade do uso e pedir para todo mundo se afastar. O fiscal também se afasta, dá dois passos para trás e, se o agressor continuar indo atrás, ele pode usar depois do segundo aviso. São, no mínimo, dois avisos”.
Transalvador recebe queixas Só este ano, a Transalvador recebeu 35 queixas contra agentes do órgão – ou seja, de motoristas reclamando dos servidores. No entanto, de acordo com o superintendente da Transalvador, Fabrizzio Muller, muitas das queixas são de condutores que não concordam com uma multa e utilizam o canal de forma inapropriada.
Na semana passada, o repórter fotográfico do CORREIO Betto Júnior e o motorista Gabriel Cerqueira foram agredidos por agentes da Transalvador numa barreira de acesso ao estádio do Barradão, onde ocorria a partida entre Vitória e Corinthians pela Copa do Brasil. Em março, ciclistas registraram uma queixa contra um agente. Eles afirmaram que o homem invadiu a ciclofaixa com a viatura e tentou impedi-los de usar a via. A Transalvador disse que iria apurar o fato.
No caso da agressão à equipe do CORREIO, a Transalvador instaurou uma sindicância para apurar o caso – o prazo é de 30 dias, podendo ser prorrogado. Segundo Muller, é raro receber queixas “dessa natureza”. “Mas chegam casos de tratamentos indevidos e isso é analisado. Numa sindicância, se ficar comprovado que houve ação inadequada do agente, é aberto um Processo Administrativo Disciplinar”.
Desde 2015, foram abertos 53 Processos Administrativos Disciplinares, segundo o órgão de trânsito. Os processos resultaram em cinco exonerações, seis advertências, 13 suspensões e 29 arquivamentos.
“Nossa preocupação é que a população enxergue o agente de trânsito não como um inimigo. Tivemos uma redução de 51% no número de acidentes em cinco anos e grande parte desse sucesso foi devido aos agentes de trânsito. O agente de trânsito não ganha absolutamente nada a mais no salário por uma multa, como muita gente pensa. Ele tem obrigação de fazer aquela autuação”, diz Muller.
*Com supervisão do chefe de reportagem Jorge Gauthier