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Thais Borges
Publicado em 14 de junho de 2018 às 16:48
- Atualizado há 2 anos
Ator Leno Sacramento se emociona durante divulgação de manifesto do Bando de Teatro Olodum (Foto: Marina Silva/CORREIO) "Leno Sacramento, presente". Mesmo abalado psicologicamente, foi o próprio ator do Bando de Teatro Olodum quem deu a mensagem – está bem fisicamente, está vivo. Mas, numa semana com notícias que iam desde o assassinato de 30 homens - a maioria negros - em apenas dois dias até um menino negro de 12 anos sendo impedido de comer em um shopping, a resposta vem com uma reflexão maior.O ator revelou: “A bala não foi de raspão e, quando eles pediram para parar, paramos”.A frase foi postada por Leno em seu perfil no Instagram, na madrugada desta quinta-feira (14), menos de 12 horas após ele ter sido baleado em uma abordagem policial na Avenida Sete de Setembro, próximo à Casa d'Itália, na tarde dessa quarta-feira (13).
Depois, já no meio da manhã desta quinta, Leno e o cenógrafo Garley Souza, que estava com o ator no momento da abordagem, participaram de um manifesto do Bando de Teatro Olodum, no Teatro Vila Velha, que fica na mesma região. Postagem de Leno em seu Instagram. Na coletiva, não falou com a imprensa (Foto: Reprodução/Instagram) Nem Leno, nem Garley falaram com a imprensa. O advogado dos dois, Cleifson Dias, explicou que eles foram orientados a se manifestar somente através da via jurídica. Querem preservá-los até que saibam “qual será a versão produzida” pelas forças de segurança para o que aconteceu.
A versão de Leno só deve ser completamente conhecida após o depoimento à polícia – ele e Garley devem ser ouvidos nesta sexta-feira (15).
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Para o advogado, no entanto, não há dúvidas de que a situação tenha começado a partir do que chamou de “mais uma abordagem ilegal e desastrosa promovida por agentes da Secretaria da Segurança Pública”.
Racismo institucional Ele defendeu que a atitude dos policiais configura racismo institucional, além de tentativa de homicídio. Ou seja, Leno foi baleado por ser negro. E o racismo, explica, não está apenas em uma declaração, por exemplo, como pode estar na atuação de uma instituição. “Assim como ocorreu com Leno, poderia ter acontecido comigo ou com qualquer outra pessoa negra que estivesse ali, naquele momento. Queremos deixar claro que usar bermuda, sandália, dreads e ter a pele negra não é ter atitude suspeita para uma abordagem policial”, pontua o advogado do ator. Ainda de acordo com ele, a defesa ainda não teve acesso às declarações de uma pessoa que teria sido vítima de assalto na região – chegaram a ver, mas não tiveram acesso a nenhuma cópia do depoimento.
“Vamos buscar todos os fatos necessários para uma defesa técnica. Consideramos que o princípio da preservação da vida não pode ser superado por nenhum outro princípio, nem mesmo da segurança coletiva. Não vale afirmar que, em nome da segurança, o estado promova o homicídio de pessoas”, criticou o advogado. O Bando de Teatro Olodum emitiu um manifesto sobre a violência sofrida por Leno Sacramento e Garley Souza (Foto: Marina Silva/CORREIO) Responsabilidade Outras vozes ainda falaram por eles. O Bando de Teatro Olodum se pronunciou através de um manifesto lido pela atriz Cássia Valle. No texto, os integrantes do grupo criticam a relação entre a polícia e a sociedade civil, além de denunciar a violência do racismo. “Isso não pode ficar impune e a responsabilidade é de todos. Não apenas por Leno Sacramento e Garley Souza, mas pelos negros e negras, jovens ou não, que sofrem a violência do racismo diariamente”, afirmou Cássia, durante a leitura. A socióloga e ouvidora-geral da Defensoria Pública do Estado (DPE), Vilma Reis, destacou os 30 assassinatos registrados em Salvador e na Região Metropolitana no fim de semana e fez uma reflexão sobre a forma de agir da polícia em bairros periféricos, que têm a população majoritariamente afrodescendente.
“As pessoas às vezes ficam pensando: será que o Bando (de Teatro Olodum) é radical? Nós achamos que o racismo é bastante radical, porque nos mata todos os dias. Gerações inteiras têm feito suas carreiras em cima do nosso sangue e dos nossos corpos”, comentou Vilma. O advogado Clefson Dias (à esquerda) acredita que Leno (de óculos) e Garley (terceiro à direita) tenham sofrido racismo institucional (Foto: Marina Silva/CORREIO) Ao frisar que a situação sofrida pelo ator não era um caso isolado, ela defendeu que os órgãos de Justiça promovam uma ação coletiva – a exemplo da própria DPE e do Ministério Público do Estado (MP-BA). “Não estamos falando de exceção, mas da regra, que é o super encarceramento negro, que é o genocídio da população negra. A regra é a eliminação de corpos negros”, afirmou, reforçando que o movimento negro não quer uma polícia militarizada.
Professor de Direito da Universidade Federal da Bahia, Samuel Vida também afirmou que a situação não deve ser tratada como exceção. Para ele, os policiais envolvidos, na verdade, são o resultado de uma política que legitima esse tipo de ação. “Nós sabemos que há um histórico no estado de construção de uma política genocida. O Pacto pela Vida é um projeto que investe em armamento, em detrimento de garantia de direitos”, afirmou. Leno compareceu à entrevista coletiva usando muletas e com a perna enfaixada (Foto: Marina Silva/CORREIO) Confira o posicionamento completo do Bando de Teatro Olodum:
Nestes 28 anos de trajetória, o Bando de Teatro Olodum vem tentando sempre, de forma artística, e, muitas vezes, ativista, travar um diálogo com a sociedade para a gente melhorar nossas feridas, o racismo, o machismo, a homofobia, a intolerância religiosa e tantas violências geradas por esses preconceitos que ainda permanecem em nosso país. Diante do que aconteceu com Leno Sacramento e com Garley Souza, precisávamos nos posicionar. Esse é um posicionamento difícil, porque o debate é urgente e parece que existe uma solução fácil. E parece que existem lados.
Na nossa percepção, os dados que vemos todos os dias e a realidade de muitos de nós em nossos bairros nos deixam apreensivos, não somente como artistas, mas também como cidadãos. Essa carta é, sim, de pessoas que trabalham com artes, mas que também são cidadãos como todos aqui presentes.
E entendemos e percebemos na pele, no dia a dia, como a sociedade sofre toda essa violência. A relação entre a polícia e a sociedade civil está esgarçada. A Política de Segurança Pública do país falhou. O aumento constante dos assassinatos e a sensação geral de insegurança são prova disto.
Temos a polícia que mais mata e a que mais morre no mundo. Qual é o nome adequado para definir isso que estamos vivendo? É guerra? É assim que devemos assumir, já que superamos, em número de mortes, países declaradamente em guerra.
Policiais, que também muitas vezes moram em comunidades, recebem uma remuneração inadequada e que, no dia a dia do trabalho, acabam adquirindo e se habituando a práticas que aumentam o sofrimento das famílias dos policiais e das famílias das vítimas da violência, que muitas vezes também são policiais. Precisamos fazer perguntas. E a pergunta que fazemos é: como um profissional que trabalha para o bem da sociedade chega a esse ponto de cometer tamanha barbárie?
Como atirar de forma irresponsável, em um local de grande movimento de pessoas, em dois cidadãos que passavam de bicicleta? Além de Leno Sacramento e Garley Souza, quantas outras vítimas inocentes poderiam ser atingidas por essa ação desastrosa? Como se sentem alguém que está na linha de tiro?
Quantos jovens negros são vitimados diariamente desta forma?
Precisamos falar sobre isso. E a responsabilidade é de todos os órgãos que trabalham com segurança pública. Não é responsabilidade de apenas um policial, nem de uma única instância pública. É de todo um sistema de segurança, de todo o governo e também da sociedade civil, que deve se perguntar qual é a polícia que quer.
São os policiais que precisam refletir sobre suas práticas e suas condições de trabalho. São os governantes que precisam pensar de forma responsável a segurança pública, dialogando, conhecendo erros e buscando exemplos ao redor do mundo, em locais que enfrentaram os mesmos problemas, mas alteraram a relação entre a sociedade e a polícia.
Através da arte, o Bando de Teatro Olodum vem abrindo uma porta para essas questões. Desde o primeiro espetáculo, Essa É A Nossa Praia, em 1990, abordamos a questão da segurança, questionando a conduta policial frente à comunidade negra. Abrimos outra porta, em 2002, com o espetáculo Relato De Uma Guerra Que Não Acabou, quando abordamos as diferentes facetas da greve da Polícia Militar da Bahia e da política de segurança pública do estado. Quase 20 anos se passaram e continuamos dizendo que Essa Guerra Ainda Não Acabou. O próprio Leno Sacramento, atualmente, faz uso do seu corpo e da sua voz, por meio da sua arte, provocando a todos para o debate às Encruzilhadas que nos encontramos.
Estamos abrindo portas, mas a arte tem limite. Essa carta é um chamado à responsabilidade de todos.
Estamos aqui, expostos diante de vocês, para dizer: isso não pode ficar impune e a responsabilidade é de todos. Não apenas por Leno Sacramento e Garley Souza, mas pelos negros e negras, jovens ou não, que sofrem a violência do racismo diariamente. Dia após dia, nestes conflitos, passando por tanto medo.
Salvador, 14 de junho de 2018. Bando de Teatro Olodum.