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Larissa Almeida
Publicado em 29 de março de 2025 às 16:00
Se as festas de Salvador fossem consideradas um fenômeno só, seria certo dizer que nem os versos de Dorival Caymmi deram conta de descrevê-lo. É que o cantor e compositor baiano, que cantava a Bahia de São Salvador para o mundo, não poderia abarcar as manifestações de cada uma das esquinas da capital baiana que, por ser terra de gente diversa e aberta a confraternizar, faz de todo canto um lugar de celebração. E exibida como é, uma vez que tem em cada extremo do território um encontro com o mar, faz dele uma extensão dos festejos, seja no 2 de fevereiro ou nos passeios de escuna até as ilhas da Baía de Todos os Santos. É lá, sobre as águas de domínio de Iemanjá, que a cidade transborda a festa da terra e proporciona a mistura entre cultura, fé e liberdade. >
A liberdade em questão é a de ser quem se é, o que envolve alimentar a si mesmo daquilo que alma pede, conforme define a recepcionista Maria Roberta Freitas, de 44 anos. Ela, que neste verão foi uma das participantes de uma das centenas festas ocorridas em alto mar durante os passeios de escuna e lanchinhas rápidas oferecidas por agências de turismo de Salvador, resume a experiência de compartilhar a alegria para além da costa como um fenômeno típico do povo soteropolitano. >
“[Somos] um povo feliz. Quando não tem festa, fazemos a festa. Então, por que não no mar também? O mar traz um deslumbramento, a música traz a animação e a alegria. A combinação dos dois é o ápice da felicidade. Eu sou suspeita para falar porque amo o mar e adoro festa. É juntar a fome com a vontade de comer”, afirma. >
Essas festas em escunas e lanchinhas, apesar de não serem uma novidade, têm ganhado maior proporção diante do crescimento turístico da cidade. Basta uma caixa de som, um churrasquinho, bebida irrestrita e a promessa de chegada a uma ilha paradisíaca para a animação tomar conta. >
Às vezes, o destino em si deixa de ser a maior atração porque o caminho, por si só, faz o investimento gasto valer a pena. Isso explica a ‘briga’ de som entre as embarcações quando fazem uma parada em alguma ilha. >
“A disputa de som existe, principalmente, na prainha de Aratu. Alguns barcos até desligam o som porque não têm como medir força com barcos maiores que vêm com geradores e tocando músicas de pagode. E não é só lá. Nas vezes que fui em Paramana e Loreto também já vi, porque se tornou algo comum”, relata Paulo Cezar, que possui uma empresa que oferta passeios de barco. >
Ao entender isso como uma tendência, Isac Lima, CEO da Cassi Turismo – uma das maiores agências de turismo do estado – contou que já pensa em expandir o negócio em torno do fenômeno. “Nesse verão, chegamos a transportar 700 pessoas por dia nos passeios para Ilha dos Frades e Itaparica. Toda vez era uma festa. [...] Tenho a maior escuna de Salvador e já recebi propostas de músicos para se apresentarem nela. Já penso, tendo em vista a celebração que já existe em alguns passeios, em fazer eventos e festas em alto mar”, disse. >
Se por um lado a perspectiva de expansão das festas no mar é indicativo de um negócio de iminente sucesso no futuro, considerando o presente, há quem veja a movimentação comercial como uma nova roupagem de um produto do passado – sem que pese nenhum mal sobre este fato. Tudo isso porque, no final do século 19, colocar músicos em uma embarcação e fazer dela uma festa foi uma das inovações que movimentou Salvador em uma época mais remota. >
“Os passeios eram feitos em barcos a vapor de grande porte que, em sua maioria, pertenciam à Companhia de Navegação Baiana. As pessoas que iam nesse barco eram aquelas que tinham recursos. Lá, eram servidos vinhos e alimentos finos, e sempre tinha uma banda filarmônica que animava. Eram assim que essas pessoas conseguiam se deslocar para festas populares, como a festa de Nossa Senhora das Candeias e Nossa Senhora da Purificação”, conta o jornalista, escritor e pesquisador Nelson Cadena. >
A bordo dos barcos a vapor iam parlamentares, governador e integrantes da alta sociedade que encontravam na embarcação uma forma divertida e prática de chegar às celebrações populares da cidade. Não à toa, Cadena frisa que todos os festejos de grande apelo popular de Salvador têm relação com o mar, guardadas as proporções de cada um. >
No caso da festa do Senhor Bom Jesus dos Navegantes, a relação se dá também com a história do barco a vapor. Isso porque, foram os proprietários daquelas embarcações os responsáveis por criar a celebração, nos mesmos moldes que perduram até a atualidade, tendo a saída da praia de Boa Viagem até o cais do Porto de Salvador. >
Segundo Nelson Cadena, a história da festa é curiosa porque, diferente das demais, o comércio é que deu origem à religiosidade do festejo, uma vez que os abastados que frequentavam o barco aceitaram sem reclamar as homenagens ao Senhor Bom Jesus dos Navegantes, cultuado em Itapagipe. >
“Era uma festa estritamente comercial, organizada por um inglês. Quem participava ativamente eram os proprietários e os marinheiros do barco. Ao chegar em Boa Viagem, tinha a celebração religiosa. Com o passar do tempo, a festa passou a ter grande importância para a cidade porque marcava o Réveillon”, destaca o pesquisador. >
No dia 31 de dezembro, a festa tem como um dos momentos mais esperados a descida ao mar da Galeota Gratidão do Povo, uma embarcação histórica que transporta a imagem do Senhor Bom Jesus dos Navegantes, seguida de uma missa. Após o ato religioso, o clima festivo ganha forma com a condução da imagem em uma procissão marítima e terrestre até as docas, no Comércio. >
Essa travessia pelo mar é cercada por barcos ornamentados e acompanhada por fiéis em terra e na água, que são responsáveis por entoar cânticos e por abrir espaço – hoje, com menor frequência – para o lado profano da festa, com bebida, música e palcos para atrações artísticas. >
Enquanto inúmeros devotos participam a bordo, outros tantos saem da Basílica de Nossa Senhora da Conceição da Praia em procissão até as docas, onde há o encontro de imagens de Nossa Senhora da Conceição da Praia e Bom Jesus dos Navegantes, que voltam juntos, também em procissão, para a Basílica Nossa Senhora da Conceição da Praia. >
Na perspectiva do historiador e cientista político Rafael Dantas, o fato de ser um encontro de celebrações que tinha o mar como personagem principal é uma das razões que fez a festa do Senhor Bom Jesus dos Navegantes se tornar tão grande. Afinal, o mar sempre foi um referencial geográfico, social e histórico de Salvador. Logo, as festas na água e para a água caracterizam a identidade da própria capital baiana. >
“No caso da cidade, em específico, onde tivemos o encontro de diversas culturas, tanto a riqueza das nossas lagoas quanto a riqueza dos nossos mares marcam a abundância do que as águas oferecem e a importância delas para a sobrevivência e referencial estratégico da formação de cada um desses lugares”, ressalta Rafael Dantas. >
O reconhecimento da relevância das águas é, inclusive, o que leva os pescadores do Rio Vermelho a se reunirem todos os anos para realizar a maior festa popular em homenagem à Iemanjá, no dia 2 de fevereiro. A tradição teve início como forma de agradecimento a um momento de crise pesqueira vivenciada no início do século XX. >
“Tudo começou com os pescadores que, há mais de 100 anos, viveram com a falta de peixe no Rio Vermelho. Eles, então, fizeram uma promessa para Iemanjá, dizendo que, se os peixes voltassem, eles dariam uma festa para ela. Os peixes voltaram e eles cumpriram a promessa”, conta Nilo Silva Garrido, pescador e um dos representantes da colônia Z1, que organiza a festa todos os anos. >
Os preparativos da festa incluem a escolha do terreiro que vai elaborar o presente para Oxum no Dique do Tororó – a orixá das águas doces é celebrada antes de Iemanjá para não haver ciúmes, segundo aponta a tradição oral. O presente principal dedicado à Rainha do Mar, que consiste em um balaio de flores, perfumes (alfazema, sobretudo) e tantas outras lembranças que agradem a personalidade da orixá das águas salgadas, é feito pelos próprios pescadores. >
Depois que chega ao Rio Vermelho, o presente é incrementado pelos adoradores de Iemanjá durante toda a manhã e depositado em alto mar no final da tarde do dia 2 de fevereiro. O momento marca o auge da festa, que é quando a multidão de pessoas vestidas de branco chega a invadir o mar ao mesmo tempo para deixar ramos de flores, buquês e fazer um último pedido a ser soprado e levado pelas águas. >
Apesar do auge do momento simbólico no dia 2, a festa começa muito antes. Desde a noite do dia 1º de fevereiro, milhares de pessoas circulam pela orla e dividem a madrugada entre o sagrado e o profano. De um lado, homens e mulheres que querem aproveitar o agito com os bares que estendem o horário de funcionamento e a música alta que embala a farra. Do outro lado, adoradores que querem fugir da superlotação da manhã e se antecipam para deixar os presentes, aproveitando para adentrar o mar calmo e realizar os pedidos e agradecimentos mais perto da orixá. >
Esse é o caso da artista e produtora cultural Ana Dumas, 61 anos, que, se inspirando no verso de Dorival Caymmi, decidiu há quase 25 anos que queria ser uma das primeiras a saudar Iemanjá. Para tanto, ela e um grupo de amigos passaram a levar um balaio de flores na noite do dia 1º de fevereiro e, em vez de encarar as longas filas para deixar o mimo no barracão, resolveram alugar um barco para colocar a oferenda em alto mar. Na oportunidade, fizeram disso um momento de celebração coletiva. >
“No mar, a celebração é um momento de responsabilidade enquanto estamos no barco com o balaio, levando um presente que é coletivo e que tem agradecimentos e pedidos de muitas outras pessoas. É um momento mais tranquilo. Eu e mais três pessoas cantamos à capela e nos concentramos para que o balaio de flores seja aceito. No percurso, já aconteceu de tudo. Inclusive, pegar pescador bêbado e ficar com medo, mas nunca teve nada grave. Pelo contrário, é um momento super lindo”, relata Ana. >
Para além dos presentes, a devoção à Iemanjá é demonstrada na festa a partir das danças, dos cânticos e das obrigações a serem cumpridas pelo povo de santo, que encontram na celebração uma ocasião de fortalecimento da relação com a espiritualidade. E é assim por séculos, mesmo quando não havia a possibilidade de festejar publicamente a orixá. >
“O povo de santo se originou na Bahia a partir das pessoas que vieram escravizadas da África. Então, todos eles, de alguma forma, chegaram pelo mar e mantiveram essa reverência a ele através do culto de Iemanjá, que durante muito tempo sofreu repressão das autoridades”, lembra Nelson Cadena. >
Mãe Nina de Iemanjá, uma das mais antigas nas tradições com o culto de Iemanjá na Ilha de Itaparica, detalha como ocorre a expressão entre a festa e a fé em Ponta de Areia, que faz conexão com o mar de Salvador. >
“[No dia 2 de fevereiro], nós fazemos um cortejo até a praia e andamos com o presente na cabeça, cantando várias cantigas para Iemanjá e Oxum. Depois, paramos na praia com um barco e tiramos o presente da cabeça de cada um, por ordem. As mais velhas entregam o presente primeiro e, no mar, Iemanjá recebe. O cortejo passa de pai para filho, porque é uma coisa muito séria em Ponta de Areia. Eu tenho 50 anos de feita e, para mim, Iemanjá é tudo”, enfatiza. >
Na mesma linha de sentimento de Mãe Nina, sendo Iemanjá a guardiã das águas, a cubana Lydia Cabrera escreveu que ela só poderia ser considerada a Rainha Universal, já que sem água não existe vida e de Iemanjá nasceu a vida. Sem precisar ir muito longe, a pesquisadora e escritora baiana Carla Akotirene, nascida e criada em Salvador, também já ressaltou o poder de cura das águas, daí a explicação para tanta festa em torno do mar, sobretudo em Salvador.>
Carla Akotirene
Pesquisadora e autora soteropolitanaO projeto assinatura de Salvador é uma realização do jornal Correio, com patrocínio da Drogaria São Paulo, do Salvador Bahia Airport, apoio do Salvador Shopping e apoio institucional da Prefeitura Municipal de Salvador>