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Thais Borges
Publicado em 29 de março de 2025 às 11:00
Alguns dias depois de 27 de agosto de 1560, o povo tomou as ruas de Salvador - que, naquele momento, tinha apenas 11 anos desde a sua fundação. Havia alegria, havia momos e havia novidades - era uma festa. Possivelmente, foi o primeiro registro de uma festa com aspectos carnavalescos na história da então capital do Império Português. >
“Não estou dizendo que foi a primeira festa, mas é o primeiro registro que conheço de uma festa”, diz o historiador Milton Moura, professor titular aposentado de História na Universidade Federal da Bahia (Ufba) e uma das grandes referências em pesquisas sobre Carnaval e festas populares. >
Ele se refere a uma crônica escrita pelo náufrago português Henrique Dias, responsável por narrar a viagem e o naufrágio da nau São Paulo, que ia para a Índia naquele ano. O relato foi publicado na coletânea História Trágico-Marítima (Editora Contraponto), organizada por Bernardo Gomes de Brito. >
“Henrique Dias chega a Salvador e vê a cidade em alvoroço pela chegada de Mem de Sá, um truculento responsável pelo genocídio de indígenas tupinambás na região de Olivença”, conta Moura, citando o português que foi governador-geral do Brasil até 1572. Já Henrique Dias, por sua vez, não tinha nada a ver com seu homônimo que teve papel importante na história do Brasil, durante a Insurreição Pernambucana. “Se a nau naufragou, quer dizer que às vezes eram dois ou três navios. O pessoal ficava no navio menos avariado e vinha aqui para se hidratar, reabastecer”. >
Não quer dizer que não tenha havido nenhuma manifestação antes - um casamento ou outro momento familiar, talvez. A própria festa religiosa da Nossa Senhora da Conceição da Praia, inclusive, é comumente apontada como a mais antiga celebração religiosa do país. Tomé de Souza teria trazido a primeira imagem da santa para o Brasil, no mesmo ano de fundação de Salvador - 1594. >
Mas o mais provável era que, naquele ano, tenha começado a construção da capela e que a festa como se conhece hoje tenha se iniciado em algum momento depois. “A partir de 1856, o clero baiano promoveu uma intensificação das homenagens à Imaculada Conceição”, diz a historiadora Edilece Couto, também professora da Ufba, no livro Tempo de Festa. Segundo ela, é impossível dizer exatamente quando aconteceu a primeira festa da Conceição da Praia. >
No caso do evento de 1560, porém, os documentos são o indicador de que se tratava de algo diferente. “A gente não pode dizer que isso deu origem a nada. Era um registro e pode ter havido outras festas, mas essa foi carnavalesca mesmo. Eu não diria que esse foi o primeiro Carnaval, mas que é o primeiro registro de uma festa com aspectos carnavalescos”, enfatiza o professor MIlton Moura. >
Momos e touros >
Em seu texto, o náufrago português Henrique Dias conta que o grupo chegou ao Brasil em 1560. Ele descreve a Baía de Todos os Santos como um porto singular, grande e seguro. Dias escreve que a tripulação chegou a sentir que aqui era o fim da viagem, de tão contente que estava. Sequer pareciam lembrar que ainda tinham em frente aquela que possivelmente seria a pior, maior e mais perigosa parte da viagem até a Índia. >
Mem de Sá, contudo, não estava por aqui. “Achamos dele não esperadas novas, que nos causaram dobrado contentamento, por haver tomado e posto por terra a fortaleza do Rio de Janeiro aos franceses”, escreve Dias. Mem de Sá havia saído de Salvador oito meses antes, com o objetivo de expulsar os franceses do Rio. Eles tinham tomado uma ilha na Baía de Guanabara e, lá, tinham a intenção de fundar uma colônia. Apesar daquela expulsão em 1560, os franceses só saíram do Brasil, definitivamente, em 1567. >
Mas a parte mais importante, para o registro da festa, vem na parte seguinte. Segundo Henrique Dias, “poucos dias” após a chegada dos navegantes, Mem de Sá também aportou em Salvador. Na sua chegada, “a cidade e o povo dela fez grandes mostras de alegria e o festejou com momos e invenções novas e touros e outras festas, até então entre eles pouco costumadas (sic)”.>
Duas palavras, neste contexto, são consideradas fundamentais pelo professor Milton Moura para entender o que estava acontecendo naquele dia: ‘momos’ e ‘touros’. “Momos quer dizer brincadeiras carnavalescas. Não é necessariamente parecido com o Rei Momo de hoje. O Momo era como um judas, uma esculhambação. O Rei Momo da Idade Moderna se parecia mais com o Quasímodo, aquele personagem de O Corcunda de Notre-Dame. Era torto, falava embolado, meio sujo. Era a inversão da beleza”, explica. >
Já a referência a ‘touros’, provavelmente indica brincadeiras que estavam sendo feitas com bois e touros nas ruas de Salvador. “É como vários lugares de Portugal e Espanha ainda fazem corridas de touros. Na América, você ainda tem isso em lugares como Santa Catarina, com a Farra do Boi, e na Colômbia, com as corralejas. É como a tourada mesmo”, acrescenta. >
Outro ponto importante é que o autor do texto afirma expressamente que a folia se tratava de ‘invenções novas’ - algo que a comunidade parecia não estar acostumada. Uma vez que a população soube que Mem de Sá tinha conseguido sucesso na empreitada de expulsar os franceses, começaram a festejar. >
“Uma aproximação carnavalesca que podemos fazer era com a antiga Mudança do Garcia - não a de hoje - e As Muquiranas. Eles fazem essa inversão. Os caras (das Muquiranas) fazem essa inversão da beleza. Sobem nos lados dos trios, nos pontos de ônibus, para mostrar a bunda”, completa o historiador.>
O projeto Aniversário de Salvador é uma realização do jornal Correio, com patrocínio da Drogaria São Paulo, do Salvador Bahia Airport, apoio do Salvador Shopping e apoio institucional da Prefeitura Municipal de Salvador.>