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Luiza Gonçalves
Publicado em 30 de março de 2025 às 07:00
E hoje, onde é o after? Às vezes, aquela simples cervejinha no final de semana pode acabar te levando a uma festa gótica cheia de personalidade, sonoridades pesadas e maquiagens que são verdadeiras obras de arte. Ou então, por que parar só no acarajé da Dinha se, logo em frente, está a Só Shape, tabacaria queridinha pelos estudantes, artistas e produtores de cultura da cidade? Salvador tem um calendário extenso de festas de renome e tradição, mas, nas noites, há uma força oposta que também rouba a cena: a cultura underground, com seu techno, afro, house, goth, samba, reggae e misturas mil, que entretêm, acompanham a madrugada e rendem aquela boa ressaca moral no dia seguinte. >
São os inferninhos de Salvador, em suas noites quentes, luzes coloridas e identidade própria. Sem exigência de look, sem ingresso caro e o preconceito fica barrado da porta para fora. A pedida de hoje são músicas e bebidas bem fortes. Tem para todo gosto: da paisagem vermelha urbana e performers irreverentes da A BOCA aos karaokês no Bar da Pri. Ou, para quem quiser um rolê raiz, com direito a seletor de músicas e pôster de cerveja nas paredes, o da Lapa é o seu lugar. Para os apaixonados por LPs, há a Discodelia, que é loja de dia e pub de noite. Tem inferninho consagrado, como o Âncora do Marujo, e seu companheiro de oceanos, A Marujada, com os toques afros do samba na terça, quarta e quinta.>
Conheça a seguir uma pequena mostra: quatro inferninhos para finalizar sua noite com chave de ouro ou começá-la. Você escolhe.>
“Eu sabia que a Rua do Passo não tinha um fluxo intenso de visitantes. Mas o que me deixou encorajado foi o fato de o imóvel ser ao lado da escadaria, grande palco cultural soteropolitano e cartão-postal. A partir daí, tive a ideia de movimentar o bar promovendo algum tipo de evento. A primeira ideia foi fazer samba, mas não qualquer samba, e sim um samba daqueles que a gente vê nos terreiros. Daí surgiu o nome do evento que é o carro-chefe da casa, o Samba de Terreiro. Ele ajudou a promover o nome da Marujada e se tornou o DNA do local”, relembra o empresário e produtor cultural Igor dos Santos. >
A Marujada completou quatro anos de atividades em 2025. Começou como um depósito de bebidas em 2021, na Cruz do Pascoal, uma alternativa de Igor para lutar contra o desemprego, e que, após empréstimos, reformas e muita mão na massa, se transformou no bar e espaço cultural que ocupa o casarão amarelo em frente à Igreja do Passo. Nos dois andares, há mesas e todos os serviços de um bar, com direito a larica pós-00h. >
Já no subsolo, com vista para a escadaria e aquele ar compacto da pista de dança, é onde a festa ganha vida, com sambas às terças, quartas e quintas, e diferentes eventos às sextas e sábados. “O nosso objetivo ao promover eventos, para além da finalidade comercial, é estabelecer-se como um espaço que abraça e ajuda a desenvolver os artistas independentes da cidade. Hoje, reconheço que a Marujada conquistou um patamar importante na cena cultural de Salvador”, reflete Igor. >
Uma das festas que acontecem na Marujada é a Club Latty, uma noite imersa em clubbing, ousadia sonora e que tem como os acessórios essenciais: leques e óculos escuros. Latty iniciou sua trajetória como DJ há cerca de dez anos, explorando diferentes estilos musicais até encontrar sua identidade na cena eletrônica. Há um ano, decidiu criar a Club Latty, um espaço acessível e voltado para a música eletrônica, tocando e convidando DJs em um line-up que transita entre techno, house e ritmos brasileiros como funk. “Foi um projeto que veio dessa vontade de manter a cena independente viva”, conta. Para o DJl, a festa se tornou um espaço seguro para a comunidade LGBTQIA+ e para artistas racializados, mantendo, juntamente a espaços como a Marujada, a cultura eletrônica local viva. “Estamos aqui o ano inteiro”, enfatiza Latty.>
A fachada vermelha, toda grafitada, te chama para adentrar o universo da Só Shape Tabacaria. Subindo a escada, as artes visuais continuam dentro do prédio, que é surpreendentemente amplo. A iluminação verde predomina nos dois andares internos. Embaixo, pista de dança, mini palco para bandas e DJs, bar. No andar de cima, mesas de sinuca, máquinas de jogos e um mezanino, o melhor lugar para assistir a balls e batalhas de vogue, na minha opinião. Fumar lá dentro é obviamente permitido. Afinal, está na origem do negócio, que começou em 2017, como uma loja online de acessórios para fumo. >
Leonardo Lisboa, 27, sócio-proprietário da Só Shape, explica que a mudança para a sede presencial, de localização privilegiada no Rio Vermelho, só aconteceu em 2021, inicialmente como loja física. Mas o local vingou mesmo como espaço cultural e casa noturna, conquistando os rueiros pela entrada gratuita, pelo funcionamento de domingo a domingo até às 6h da manhã e pela programação diversificada, que abriga desde projetos fixos, como o Encontro de Sambistas (toda segunda) e o Domingão do Darcão (quinzenalmente), até jams de jazz, shows de reggae e DJs variados. “A gente preza bastante pela convivência de diversos tipos de grupos no mesmo local, havendo respeito entre todos”, reforça Batista. >
“Chegamos ao que somos hoje de acordo com a necessidade do nosso público por lugares para conviver, com rolês de cultura alternativa e preço acessível. Nosso principal objetivo cultural na Só Shape é viabilizar que os artistas da cena underground, de diversos ritmos, possam se apresentar de uma forma viável, tanto para eles quanto para o público que vai acessar. A cultura deve ser acessível, porque fazer cultura e só poder acessar quem tem dinheiro não faz sentido”, defende Lisboa.>
“O Discodelia é um lugar onde a gente consegue se expressar e se sente seguro para fazer isso de uma forma verdadeira”, defende a artista multimídia Ani. Localizado na Rua do Meio, no Rio Vermelho, a loja de vinis e pub é um refúgio sonoro e um ponto de encontro para aqueles que buscam experiências musicais autênticas. Neste mês, por exemplo, recebeu a Climaxx, festa de música gótica e darkwave, onde Ani já se tornou presença constante. Seu envolvimento com a cultura gótica remonta à adolescência, quando começou a se aprofundar em referências visuais e musicais, e a acompanha em sua atuação como produtora na festa COVA e como público na Climaxx, fortalecendo a cena local e promovendo eventos que dão visibilidade a essa estética. “Esses locais existirem por si só já é algo muito grande”, garante. >
Eldo Boss, um dos sócios-proprietários do Discodelia, compartilha do pensamento de Ani e afirma que essa foi uma das razões da expansão do que era um selo fonográfico para um espaço cultural. O conjunto de elementos da fachada revela um programa interessante logo de cara: pintura psicodélica colorida, rosto de Raul Seixas e portas de garagem. É o porão do rock and roll, que, de quinta a domingo, acolhe shows, lançamentos de discos e ensaios de bandas, passeando não só pelas guitarras, mas também pelas ondas indies, baianas e psicodélicas. >
”O público é o mais diferente possível, depende muito do que é a festa”, afirma Eldo. Mas o organizador não esconde o desejo de retomar a nostalgia, direcionando festas calendarizadas para a discotecagem de vinil. “Essa é uma das gêneses do Discodelia enquanto loja, fazer discotecagens é um diferencial que a gente vai tentar trazer para o mercado à noite”, aposta. A casa tornou-se um ponto de encontro para produtores locais e artistas de fora, unindo-se no objetivo de fomentar a produção autoral. “É o autoral que concretiza e pavimenta a formação de outras bandas", salienta Boss.>
Não tem como falar de inferninhos em Salvador sem citar o Âncora do Marujo, marco da cultura LGBTQIA+ da cidade, escola de formação para diversas drag queens e o único bar a resistir por 25 anos na Rua Carlos Gomes. No seu mundo azul, brilhante e acolhedor, de terça a domingo, com entrada a R$10, o carro-chefe da casa são as noites de performance drag. Canto, lip sync, dança e números de humor ganham a cena — em vestidos de brilho, maquiagens artísticas e muito carinho em cada apresentação. O Âncora é conhecido pela fidelidade entre público e artistas e, nos momentos turbulentos, se fortalece para manter a cena noturna viva. Foi o que aconteceu com Itainã, 31, que desde 2018 atua como a drag e DJ Duda Baroni. “Eu já tinha participado dos shows de outras drags que tinham pauta fixa na casa e, quando começou a pandemia, pedi a seu Wilson, um dos donos, para fazer lives de lá, por conta da estrutura que o bar oferecia. E aí eu ia sozinha, levava o meu celular, fazia live e botava o meu Pix. Na época, eu sobrevivia só do trabalho como drag queen, e eles também começaram a abrir a live no Instagram do Âncora do Marujo. Quando passou a pandemia, fui convidada para assumir as sextas-feiras”, relembra. >
Duda é presença semanal confirmada no Âncora, seja no palco ou na plateia, prestigiando outras drag queens. “É um ambiente em que me sinto acolhido. Sem olhares tortos, sem julgamentos. Gosto muito de estar no Marujo, a casa é um marco, é o primeiro bar em Salvador a oferecer horas para as performances, as pessoas vão de fato para assistir ao show de drag”, afirma. Diferente de outras casas noturnas, o Marujo se dedica integralmente ao espetáculo, com três horas de shows em que as artistas realizam múltiplas trocas de figurino e perucas. “É um berço da arte drag”, celebra a artista.>
O projeto Aniversário de Salvador é uma realização do jornal Correio, com patrocínio da Drogaria São Paulo, do Salvador Bahia Airport, apoio do Salvador Shopping e apoio institucional da Prefeitura Municipal de Salvador.>