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Perla Ribeiro
Publicado em 29 de março de 2025 às 14:01
De um lado, um filho festeiro e cheio de amigos. Do outro, uma matriarca tradicional e conservadora. Pra não contrariar a mãe, dona Zênia, Alberto Magno de Freitas, 61 anos, encontrou uma saída: em vez de levar os amigos e namoradas para dentro de casa, criou um espaço descolado no quintal da família, no número 101, da Rua Conselheiro Pedro Luiz, no Rio Vermelho. Primeiro, montou ali uma oficina. Depois, uma borracharia. De dia, era uma movimentação de carros. De noite, recebia os amigos. Ele sequer desconfiava que, um dia, ali seria um lugar disputado na noite de Salvador. >
Alberto usou peças descartadas de antigos casarões do bairro, como corrimões e azulejos, pra decorar o espaço e criar uma identidade própria. Do fundo do mar, onde costuma mergulhar, surfar e pescar, levava cordas de navios e qualquer outro objeto interessante que cruzasse o seu olhar. >
Logo na entrada, um mosaico de azulejo do artista plástico Bel Borba dá as boas-vindas. Na pista de dança, uma obra de Leonel Matos. Na área do bar da entrada, quadros de Rui Santana. Lá também tem uma prateleira que ostenta cerca de 50 imagens sacras. Todas saíram do fundo do mar. >
Ali, santos, orixás e buda convivem lado a lado, em harmonia. Tem Iemanjá, Oxum, Cosme e Damião, Preto Velho, o menino Jesus, Nossa Senhora, São Jorge... É como se o espaço tivesse sob a proteção de todos eles. "Sou surfista, pescador e mergulhador. A decoração sempre foi movida por coisas que vieram do fundo do mar", diz Alberto.>
Iemanjá>
A relação dele com o mar é tão forte que, se a Borracharia existe hoje, pode se dizer que é culpa de Iemanjá. Todo 2 de Fevereiro, em meio ao burburinho da festa no Rio Vermelho, ele reunia os amigos ali. Era um tonel de cerveja, uma vitrola velha tocando Led Zeppelin, Pink Floyd, The Doors e, como ele diz: "o pau começava a comer". >
"Desde que se tornou adulto, todo ano ele ajeitava o quintal para receber as pessoas no 2 de fevereiro. Acho que, entre 2003 e 2004, começou a ter festa uma sexta-feira por mês ", conta o sobrinho Raphael Freitas, 41, que hoje está à frente do negócio.>
Nessa época, o diretor de teatro Fernando Guerreiro, 63, que hoje é presidente da Fundação Gregório de Matos, já conhecia a fama dessas festas. Mas, só quando viveu a primeira experiência, teve a dimensão real da magia do lugar. Saiu de lá impressionado. Ficou tão impactado, que decidiu comemorar seus 40 anos ali. >
Contratou DJ e convenceu Alberto a montar um serviço de bar. “Foi um sucesso estrondoso. A partir daí, Alberto começou a fazer várias festas, até que se convenceu que deveria abrir uma casa noturna. Minha história é vital aí, pro surgimento desse espaço tão eclético e tão interessante na Bahia". >
De repente, eram pedidos e mais pedidos para fazer aniversários ali. Velho conhecido da casa, o artista plástico Bel Borba, 67, também comemorou os 40 anos lá. "Alberto era meu amigo da época do surf, um cara irreverente, fora do normal. O público que frequentava no início, meio que se conhecia. Depois, começaram a surgir pessoas que não eram do bairro".>
Os eventos se tornaram frequentes e furou a bolha dos amigos. Uma disputada festa que Rui Santana realizava na Varanda do Sesi foi parar na Borracharia. A partir dali, foi um caminho sem volta. Quem vè a longa fila que se forma na porta do estabelecimento, nas noites de sexta-feira e aos sábados, nem imagina que, no início, para a casa funcionar, eles contavam somente com amigos e familiares se dividindo entre bilheteria, bar e som.>
Virou negócio>
Com o tempo, o que começou de forma despretensiosa, ganhou ares de negócio. Continua uma empresa familiar, com Alberto e os sobrinhos Raphael e Simone. Mas, hoje, o estabelecimento possui de 10 a 12 funcionários. "Tinha uns 20 anos e nunca tinha feito nada ligado ao entretenimento. Ficava na porta, como uma espécie de caixa, porque era sobrinho de Alberto. Fazia engenharia na época, mas não gostava do curso. Nunca mais voltei para a engenharia", recorda Raphael. >
A coisa foi ficando tão grande, que ele percebeu que não daria conta e convocou a prima Simone Freitas, 43. Para ela, a Borracharia é o que é porque é uma coisa muito orgânica. "Talvez seja essa a magia de lá". É um fenômeno que não dá para explicar. Diferente de outras casas de entretenimento, que nasceram com toda pompa e não conseguiram se firmar, o lugar tem mais de duas décadas fazendo fila pra entrar e há noites que não dá pra quem quer. >
Nos últimos cinco meses, por exemplo, entrou no rotativo todas as noites em que funcionou. "Chega uma hora que consideramos que estamos no limite e tem que esperar gente sair para novas pessoas entrarem", conta Simone, figura cativa da portaria. É ela que faz esse controle. Legalmente, o espaço tem capacidade para 392 pessoas, mas os donos estabeleceram um limite de 200, pra manter o conforto e a ordem no espaço. Por mês, passam pelo local, entre 1600 a 2 mil pessoas.>
Hoje, Alberto, que é o responsável por a Borracharia existir, participa do negócio cuidando das obras no espaço ou estando ali na noite com os sobrinhos. Já Simone, nem ela sabe definir. "Faço tudo, sou o que a casa precisar. Tenho essa coisa de manter os princípios, lá é um lugar antirracista, antimachista e antihomofobia. Somos contra todas as formas de preconceitos". A frequentadora Carol Costa, 40, sente o diferencial. "Enquanto mulher, é um lugar que me sinto cuidada e respeitada. Tem a Flor de Cactos, que é uma agência anti-assédio, e a Borracharia foi dos primeiros lugares a trabalhar com ela".>
Precisou mudar>
Para Bel Borba, o fato de uma borracharia ter virado casa noturna ajudou a dar um charme. “Isso agregou valor ao lugar. Também tem Roger´n Roll, Rui Santana, DJs bons. A concepção deles de ambiência, com um aspecto meio antropológico, rupestre, tudo isso tinha um charme underground e visceral. A proposta decorativa remetia a um universo avesso a essa coisa colorida de Disneylândia”.>
Bel conta que deixou de ser um homem das noitadas, mas antes, curtiu muitas madrugadas ali. "Uma vez eu disse: pode descer uma rodada pra todo mundo que eu pago. Foi um dia que estava alegre, estava podendo. Ele lembra que, por muito tempo, a casa noturna e a borracharia dividiram o mesmo espaço. "Não era um nome fantasia, eram as duas coisas funcionando no mesmo espaço". >
Até janeiro de 2013, as duas "borracharias" eram separadas só por horário de funcionamento. De dia, pneus e graxas. À noite, o lugar que o público vai dançar, paquerar e só sair quando for "expulso" por Maloca, um segurança de mais de 2 metros de altura, que atrai olhares pelo tipo irreverente. >
A casadinha só deixou de existir após o incêndio da Boate Kiss, em Santa Maria, no Rio Grande do Sul. A tragédia fez com que os órgãos de fiscalização ficassem mais rigorosos em relação à segurança e o lugar acabou interditado. As autoridades decidiram que a casa noturna não podia funcionar em um lugar com tanto pneu, que é um material inflamável. O espaço passou por reforma, ganhou saída de emergência e climatização. Depois de seis meses fechada, reabriu. “Fizemos acontecer de novo”, comemora Alberto.>
Produtor de eventos, Fábio Marreco, 45, frequenta a Borracharia desde o começo. "Se você fosse de branco e encostasse na parede, se sujava de graxa. Antes, não tinha tanta coisa para fazer em Salvador depois de meia noite, então todo mundo ia se encontrar lá". Quase duas décadas se passaram e, para Fábio, a essência permanece a mesma. >
Lá, é possível até encontrar alguém com menos de 30 anos, mas o público predominante continua sendo o 35+, que gosta de dançar, de uma boa música e curte noitadas sem hora pra acabar. “A Borracharia é uma coisa muito singular. A gente já teve uma cliente de 93 anos que ia para dançar e tem um amigo de Raul Seixas de 89 anos que vai até hoje”, conta Simone.>
E é justamente na pista de dança que a paquera rola solta. Tem quem considere que o escurinho do lugar deixa as pessoas mais soltas. "Já paquerei bastante lá, bebi dos outros, paguei bebida para quem não conhecia. Agora, tudo isso com um culto ao respeito muito grande. Pra galera que vai há mais tempo, não é não. Se um brother passa do ponto, chegamos junto".>
Onde tudo acontece>
A nutricionista e personal trainer Ludmila de Assis, 40, virou frequentadora da Borracharia há menos de 10 anos, mas tem o lugar como uma espécie de segunda casa. Se fosse um clube, ela seria como aqueles sócios que batem ponto toda semana. Mas, antes de se apaixonar, teve preconceito. Não via com bons olhos um lugar que abre meia noite e se estende até às 5h da manhã. "De 2017 pra cá, foram poucos os fins de semana que não fui”.>
Lá, ela vive história de tudo quanto é tipo. Já viu casamento acontecer, noivado e despedida de solteiro. Viu a fila dobrar o quarteirão e gente só conseguir entrar 4h da manhã para sair 5h. Conheceu gente do mundo inteiro. Parceira de Borracharia de Ludmila, Carol Costa lembra que já viu casal sair do casamento, com a mulher vestida de noiva, e ir com os convidados comemorar lá. “Costumamos dizer que a Borracharia é igual a Las Vegas. O que acontece na Borracharia, fica na Borracharia", define Ludmila.>
Outro apaixonado pelo lugar é o representante comercial Rodrigo Simões, 39. A primeira ida dele à Borracharia tem 20 anos. Conheceu a versão mais rústica do lugar, quando os pneus ainda ficavam pendurados na parede. Considera que a mística permanece a mesma. Sempre que vai, Rodrigo precisa cumprir um ritual. "Tenho uma viagem com Maloca. Chegar lá e não apertar a mão dele é como se não tivesse ido. É como se ele fosse um alinhador de energias". >
Em 2019, ele acabou sendo o responsável por levar um visitante famoso pro local. Rodrigo, que é conhecido como Só Amor, diz que estava no Bombar, quando encontrou o surfista Pedro Scooby. "Disse pra ele: vou te levar para o melhor lugar da cidade. Ele foi e ficou amarradão". >
O surfista é só mais um na extensa lista dos famosos que já passaram por lá. Entre eles estão nomes como Lenine, Camila Morgado, Caetano Veloso, Preta Gil, Marcelo Serrado, Mariana Ximenes, Marcos Palmeiras, João Vicente, Otto, Dinho Ouro Preto, Malvino Salvador, Dira Paes, Ingrid Guimarães, Lázaro Ramos..>
O lugar é queridinho do soteropolitanos, já participou de duas edições da premiação Veja Salvador, nas categorias melhor lugar para paquera e para dançar. Mas não levou. "Nenhuma das casas que ganhou existe mais. A Veja deveria fazer uma festa só para celebrar a Borracharia", brinca Alberto, lembrando que eles já foram citados até em matéria do New York Times.>
A fama do lugar corre tanto pela cidade que virou uma espécie de ponto turístico para quem quer desbravar a noite de Salvador. Quem busca informações sobre onde dançar e paquerar, inevitavelmente, vai parar lá. “É tipo um ponto turístico de Salvador mesmo, qualquer pessoa que vem de fora acaba sendo levada pra lá”, avalia Simone. >
O produtor Fábio Marreco, por exemplo, que vive na ponte Salvador/São Paulo, diz que todo conhecido que vem pra cidade ele bota pilha pra ir na borracharia. "Eu falo pra todo mundo: vá na Borracharia, você tem que ir!". Do outro lado, sempre reagem com espanto: "Borracharia? Como assim?". Sem encontrar palavras pra definir, propõe: "Só indo para entender". Sim, é preciso viver a tal da experiência. E em que outra cidade isso seria possível? A melhor síntese de tudo isso, Bel Borba encontrou numa matéria da Time Magazine: “Salvador é como uma grande rodoviária, as pessoas bebem no posto de gasolina e a boate é uma borracharia”.>