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Publicado em 29 de março de 2025 às 07:00
Há quem diga que este assunto nem era para estar numa editoria de esportes. Se encaixa muito mais na coluna de cultura, alguma cobertura especial de festa de largo ou um espaço generoso no Blog do Marrom. É puro suco de caos. Um delicioso caos que só encontramos nessa aniversariante Salvador lambuzada de dendê, cerveja e churrasco (e aquele cheiro de mijo inconfundível). Sem clubismo: o estacionamento do Barradão é uma entidade que já deveria ser tombada por algum Iphan da vida, sem exagero. >
Se o assunto é encontrar festa de largo toda semana, o estacionamento do Barradão é o lugar certo. Os próprios torcedores rubro-negros acham que o local deveria ter um CNPJ diferente do Manoel Barradas, para que torcedores de outras agremiações não se sintam desprestigiados e possam curtir o pré-jogo mais insano da Bahia e do Brasil, o que dá no mesmo. Na verdade, isso já acontece. >
“Minha esposa é Bahia e vem sempre. Ela diz que é a única coisa que presta no Vitória. Hoje ela não veio por motivos óbvios [foi no dia do Ba-Vi], mas quase todo jogo do Leão, nos fins de semana, ela está aqui. Às vezes entra comigo e vê o jogo quietinha, às vezes pega um mototáxi e se pica pra casa quando se aproxima da hora de entrar no estádio. Ela ama e odeia o Vitória por conta do estacionamento”, disse Ricardo Costa, que chegou no estacionamento às 10h, sendo que o jogo só começaria 16h. “Preciso chegar cedo para armar a tenda, preparar a churrasqueira e colocar a cerveja no gelo”. >
O putetê começa cedo, geralmente seis horas antes do primeiro apito do juiz indicar o início da partida entre Vitória e qualquer zorra. Ninguém quer saber o adversário. Muitas vezes, nem querem saber do jogo. Os amigos Fabian e Eliel chegam bem cedinho, o que pode inclusive comprometer o borderô do jogo. “Começamos a beber seis horas antes e muitas vezes a empolgação é tanta, que já estou bêbado o suficiente para não conseguir entrar no estádio. Aí fico aqui na tenda, aguardando o jogo terminar e o povo retornar”, disse Fabian, alegando que, quando o estádio não lota, é porque teve gente que preferiu o estacionamento. >
“Uma vez compramos 40 caixas de Heineken, bebemos durante todo dia e Fabian decidiu ficar. Alegou que não estava mais aguentando de tanta cana. Quando retornamos do jogo, contabilizamos duas caixas a menos. O cara bebeu sozinho duas caixas”, lembra Eliel, enquanto o carro da frente, estilo paredão, tocava um pagodão pouco ortodoxo: “Quanto mais eu boto/ela geme mais (aí!)”, dizia a singela canção. >
Infelizmente, ainda não existe nenhum artigo científico, registro histórico ou estudo antropológico para explicar o estacionamento do Barradão e quando ele surgiu. O local tem pouco mais de 40 mil metros quadrados, com capacidade de cerca de 2,5 mil carros. Número equivocado, diga-se de passagem. Juntando o carro, a tenda e as cadeiras espalhadas (isso quando não tem banda ao vivo), cada torcedor pode ocupar até cinco vagas. E ninguém reclama. Somente no último clássico, no dia 23 de março, contamos mais de 85 tendas espalhadas, fora as dezenas de guarda-sóis. >
Esta ocupação fez com que o Vitória tomasse uma providência, inaugurando um outro estacionamento, sem sal, com clima de enterro e entregue às traças. Lá, a capacidade chega a 2 mil vagas, mas ninguém quer. É terminantemente proibido carro tipo paredão, churrasco e gandaia. Entrou, estacionou e saiu. >
“Quem quer aquela porra? Não existe jogo no Barradão sem estacionamento. É um ritual que começou de forma espontânea, um levando a churrasqueira, ganhando mais adeptos, cooler com cerveja, música para todos os gostos, se tornou isso. Não tem nenhum pré-jogo mais insano que isto aqui”, afirmou um torcedor que não quis dizer o nome. O motivo: “Aqui também é lugar de namorar. E eu tenho namorada [ela é Bahia]. Ela acha que chego e entro logo no estádio. Mas aqui também é lugar de pegação. Já fiquei aqui no estacionamento namorando e nem entrei no jogo. É festa de largo, bicho”, garante. >
Do pagodão ao metal>
Mais do que uma manifestação cultural, o estacionamento tem uma linguagem popular, que lembra muito as festas de paredão nos bairros populares. Por isso, muitas vezes você nem sabe o que está ouvindo. Cada vaga é um carro exibindo suas potências sonoras que variam entre pagodão, arrocha, axé, reggae e até heavy metal. É um festival de paredão tão eclético que causa inveja até ao Lollapalooza.>
“O estacionamento do Barradão é uma entidade que tem espaço para todos os gostos. A paixão pelo Vitória acaba juntando pessoas que gostam de rock, de pagode, de tudo. Não abrimos mão desta festa”, disse France Andrade, um dos organizadores da torcida Vitória Metal. A turma, que possui sua própria camisa e tem como mascote um Leão tocando guitarra, coloca duas caixas de som metendo rock até o talo. >
“É uma festa dentro da festa no Barradão. São inseparáveis. O problema é quando exageramos aqui, por chegarmos cedo, e ficamos sem condições [etílicas] de entrar no estádio. Não é sempre, mas acho que já aconteceu, ao menos uma vez entre os frequentadores do estacionamento, exagerar um pouco e não conseguir entrar para ver o Vitória jogar. É raro, mas acontece muito”, brinca France. >
Existem grupos que vão além do paredão. É música ao vivo mesmo, com banda completa, churrasco com churrasqueiro profissional e até pulseira de identificação para evitar penetras que não pagaram o rateio da carne e da cerveja. Foi o caso do grupo de torcedores, que mais parece um clã, Barca Rubro-Negra. O lema é simples: “beber, curtir e torcer!”. Reparou que o “torcer” vem por último?>
No último clássico, este grupo contratou a banda Tribuna Livre do Samba e o pau quebrou até momentos antes da partida. “Jé teve uma eleição no estacionamento para escolher a tenda mais animada e melhor daqui. Nós ganhamos. Salvador tem hoje o maior pré-jogo do planeta, comparado ao maior Carnaval do mundo. É um clima de harmonia. Nenhum supera o estacionamento do Barradão”, garantiu um dos organizadores da Barca, César Boca. >
Kit sobrevivência>
Geralmente, existem grupos que fazem com que o esquema fique mais rentável. Fazem a tradicional vaquinha para a compra de equipamentos, como a tenda e a churrasqueira. Uma tenda comum pode custar R$ 500, enquanto a churrasqueira pode ser encontrada por diversos preços, de R$ 70 a R$ 450. Com um grupo grande, dá para dividir tudo e um integrante fica responsável pelos equipamentos, que também englobam cadeira, talheres, cooler, entre outros. Já o som fica a critério de quem tem o carro mais potente. Ou uma JBL que faça um estrago.>
Nos dias de jogos, a compra de bebidas, carne e condimentos também são rateados. Para um grupo de 20 pessoas, o consumo de carne pode superar os 10kg. A média por grupo gira em torno de 7kg, por tenda. Agora, fazendo uma conta simples para qualquer pessoa de humanas entender, pegue nossa contagem de 85 tendas, multiplique por sete: 595kg de carne, fora o consumo de cerveja e os condimentos, como farofa, arroz, vinagrete. >
“Se duvidar, trago um boi inteiro. Tem cupim, picanha, costela, a zorra toda. Tudo para alimentar a tropa que vai torcer no estádio. O estacionamento é uma festa à parte, não tem mais como desvincular essa manifestação aqui com o estádio. Todo baiano precisaria conhecer o estacionamento do Barradão, mesmo que não vá ao Barradão”, garante Willian, que tem um jeito diferente de armar sua tenda. Uma lona preta e quatro pedaços de cano pvc. “É um cassete armado, custou nada”, completa. >
Em meio ao delicioso caos, os torcedores do Vitória, pelo menos a maioria deles, sente falta do rival, principalmente em dias de clássico. “Ter o maior clássico do Nordeste com torcida única é um absurdo. Eu queria muito ver o torcedor do Bahia aqui, curtindo este momento conosco, como fazíamos nos tempos de clássico da Fonte Nova, na Ladeira das Pedras. Isso aqui é uma história que nasceu dali. Como as autoridades conseguem controlar milhões de pessoas no Carnaval e dizem não conseguir organizar um clássico? Estão matando uma coisa que era motivo de orgulho: Vitória e Bahia fazendo a festa, bebendo e curtindo juntos”, completa César Boca, enquanto comia carne de fumeiro neste delicioso caos soteropolitano. E nem falamos de futebol.>
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