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Esther Morais
Publicado em 29 de julho de 2024 às 05:00
“Tal pai, tal filho”, “Filho de peixe, peixinho é” e “Passou de pai para filho” são frases que fazem parte do nosso cotidiano e refletem algo comum na trajetória familiar. Há filhos que crescem admirando os pais a ponto de seguir até a mesma profissão. Com 4 anos, Bia Ferreira mal sabia ler e escrever, mas já dominava alguns golpes de boxe junto ao pai - o bicampeão brasileiro e sparring de “Popó”, Raimundo Oliveira Ferreira, também conhecido como “Sergipe” e, atualmente, “pai da Bia Ferreira”.
Atual bicampeã mundial de boxe, a pugilista começou a treinar desde cedo em um ringue improvisado dentro de casa, na Rua do Retorno, no bairro de Nova Brasília, em Salvador. A garagem, ao invés de abrigar um carro, foi transformada em um centro de treinamento. E o que começou como deslumbre deu pontapé para a conquista de duas medalhas de ouro no Mundial, um bicampeonato nos Jogos Pan Americanos e a vitória em todas as etapas do Circuito Europeu.
Em 2021, a baiana foi prata em Tóquio. Agora, três anos depois, o objetivo é o ouro na Olimpíada de Paris, que acontece até o dia 11 de agosto. “Tóquio foi minha primeira Olimpíada e, agora, eu já sei o que eu já vivenciei. Estou mais experiente. Eu treino em dois períodos, todos os dias, exceto o domingo. Estou analisando minhas adversárias, já lutei contra todas”, detalha ela, que estreia hoje contra a norte-americana Jajaira Gonzalez, às 15h30.
Apesar da pressão, Bia fala com tranquilidade o que pretende fazer. “Cara, boxe é uma parada de quem quer mais, de quem se preparou mais e quem tá pronto ali. Então, eu tô tentando me preparar ao máximo. Vou pra cima. Vou lá conquistar a minha medalha. Eu tô pronta pra isso”.
Experiência é o que não falta. Os treinos de Bia começaram por observação, quando ela acompanhava o pai durante as lutas e treinos. “Na verdade, eu não lembro de como começou o boxe na minha vida. Eu lembro já de saber boxe, de jantar lá na academia”, recorda a atleta.
Já o pai dá mais detalhes. Ele lembra que, desde os 4 anos, Bia já tinha uma noção de luta. A família morava no primeiro andar e a garagem servia de ringue nos finais de semana. “Eu aparecia na TV lutando e depois a meninada vinha olhar meu treino em casa. A Bia olhava de cima. Eu falava ‘vai para casa’, mas ela ficava até o final”, conta. Mas, nem todo ‘gosto’ passou de sangue. A mãe de Bia, que fazia teatro, também chamava a filha para acompanhá-la em cena, mas a criança “não ia de jeito nenhum”, recorda Sergipe.
Foi, então, que o pai começou a levar em conta os pedidos da filha e os treinos começaram. “Eu era uma criança. E aí, meu pai pegou um tubo, aqueles tubos marrons de água, cortou, fez dois ‘toquinhos’ e falou que era meu peso ali. Quando eu fosse treinar, que era aquele ali, que era o meu peso. Então, eu lembro que eu cuidava dele, sabe? Deixava ele no cantinho da cadeirinha e era meu pezinho. Eu ficava com meu pezinho para lá e para cá”, descreve.
Bia Ferreira criança
Quando o treino foi evoluindo, Bia começou a treinar com os atletas masculinos por falta de opção. Em outros tempos, não tinha nenhuma outra aluna para praticar. “Eu fazia treino normal como qualquer outro aluno lá, isso não me abalava não”, afirma. Foi só quando entrou na equipe olímpica que a pugilista começou a treinar com outras mulheres. “Percebi que é bem diferente, mas é legal. Eu gosto muito. E, hoje, eu vejo o quanto o boxe feminino cresceu”, comenta.
Enquanto não chegava na categoria profissional, Bia participava durante a adolescência de pequenas lutas sem registro da Confederação Nacional de Boxe. Ela ficou um tempo sem praticar o boxe e chegou a lutar muay thai, mas foi aí que sentiu falta do boxe e decidiu que era isso que ela faria ao longo da vida.
Talvez porque começou a trabalhar tão pequena, até hoje Bia se sente uma criança. Com um jeito divertido, meio moleca, ela revela que deseja ser mãe e ainda se sente conectada com sua infância. “Eu sou uma criança grande. Uma criança que cresceu, sabe? E teve que trabalhar”, diz. “Eu gosto muito de mostrar como é o boxe. Porque eu tenho lembrança de quando eu era assim, quando eu acompanhava outros atletas. E aí, eles entendem, gostam, acompanham”, acrescenta.
E os próprios colegas de trabalho confirmam isso, como o treinador de Bia, Mateus Alves. “Ela tem um carisma que é algo fora da realidade. Ela tem uma questão com criança, que é onde tem criança que chega perto, se vira um formigueiro em cima da Bia. É uma coisa impressionante essa energia. Ela tem uma energia de menina dentro de uma mulher vitoriosa. Transparece uma alma de pureza”, elogia.
Mesmo com a experiência, a baiana chegou na Seleção Brasileira com apenas quatro lutas oficiais. Hoje, já são mais de 150 e tantas, número considerado “alto” por treinadores da área. Um dos mais emblemáticos duelos foi contra a argentina Yanina del Carmen Lescano. Durante a disputa, em abril deste ano, em Liverpool, na Inglaterra, a brasileira “desfigurou” a rival e conquistou o cinturão vago da IBF (Federação Internacional de Boxe, em português) no peso leve.
Apesar das vitórias, o treinador ressalta: “Ela continua sendo a mesma pessoa que ela era há 8 anos, antes de ser campeã. Tem a mesma essência, que é uma pessoa humilde, bondosa e que tem atenção com todo mundo”.
A infância de Bia foi em Salvador, com direito a tudo que um soteropolitano ‘raiz’ tem direito. Memórias no Carnaval, ida às praias do Subúrbio e passeio no parque são alguns dos momentos que Sergipe destaca nos momentos em família. A atleta foi morar em outro estado aos 13 anos.
Ela se mudou para Juiz de Fora, em Minas Gerais, junto com o pai e, de lá, ganhou o sotaque mineiro. Marcado por uma pronúncia mais suave, vogais arrastadas e um tom de voz mais grave e melódico, o “mineirês” tirou o posto do “baianês” e, de certa forma, até combina mais com a personalidade de Bia. É forte, mas também é meigo. Tem seu charme.
Ela explica que, como se mudou jovem, perdeu a memória de alguns momentos, mas o que fica é o afeto e parte da família, presente até hoje na capital baiana. “A obrigação que eu tinha era passar de ano direto, porque aí eu ia passar as férias de três meses em Salvador. O que é maravilhoso. Meus parentes são todos de Salvador. Eu amo ir. Vou pouco, por conta da rotina, mas quando eu tenho oportunidade, eu vou recarregar as energias”, relembra.
Hoje, dedica pouco tempo para vida pessoal, que existe nos momentos vagos aos fins de semana. Viajando por todo o mundo para os embates, foi uma viagem com a esposa, para Abu Djabi, que Bia elegeu como “a melhor da vida”. Sem equipe técnica, só o casal.
Outra viagem que tá faltando na agenda? A Bahia. “Por eu não ir muito frequente para a Bahia, eu acho que eu acabo não agradecendo o tanto que eu acho que eu preciso agradecer. E é uma troca. Eu recebo muitas mensagens do pessoal da Bahia, de atletas. Eu quero agradecer pelo carinho, mesmo não morando mais aí”, diz.
A inspiração, inclusive, é algo que motiva a boxeadora. Sem meninas para treinar quando criança, Bia é exemplo de uma das maiores pugilistas da atualidade e modelo para diversas crianças. “Eu fico feliz de estar fazendo parte, de estar acompanhando. Eu fico muito contente também de ser inspiração para outras meninas, outras brasileiras querem também conquistar e fazer parte da equipe”, conclui.
Com a Olimpíada de Paris como missão, o treinador da pugilista Bia Ferreira, Mateus Alves, concedeu uma entrevista exclusiva, por telefone, ao CORREIO, e não escondeu a expectativa para a atleta conquistar o Ouro. “A meta é ser campeã olímpica. Esse é o prognóstico criado para ela e por ela mesma”, confirma.
Para manter a pugilista constantemente motivada, o treinador revela que toda a Seleção Brasileira adota uma abordagem estratégica baseada em metas claras e objetivos. “A Bia, por exemplo, tinha como objetivo pessoal ser campeã mundial e pan-americana, metas que felizmente alcançamos”.
Uma das maiores esperanças do boxe brasileiro, Bia tem conquistado não apenas títulos, mas também o coração de seus colegas de equipe - sendo esta geração a mais vitoriosa da história do boxe nacional. Para Alves, a pugilista de 31 anos é um “fenômeno” e inspira os mais jovens sendo um incentivo para as próximas gerações.
Confira os principais trechos da entrevista exclusiva:
Você acompanha diversos pugilistas da Confederação Brasileira. Como a personalidade da Bia se destaca dentre esses competidores?
A Bia é uma atleta que tem o boxe natural, por ser de família, porque o pai é treinador. O pai era atleta, foi um atleta de boxe profissional, então ela acompanhou a carreira do pai. Ela também é a atleta mais antiga da atual geração. A Bia, mesmo sendo uma multicampeã, é uma atleta que consegue passar para os companheiros uma visão positiva, uma visão que é possível. Então, ela tem um astral que incentiva totalmente o restante do grupo a conquistar bons resultados. A Bia é um fator determinante nessa geração, que é a geração mais vitoriosa da história do Boxe Brasileiro.
Quando um atleta de alto nível ganha, e ganha tudo, qual o papel do técnico para manter essa fome pela vitória?
A gente tem aqui na equipe olímpica uma cultura de trabalhar com metas. Não trabalhamos aqui sem um tipo de cobrança. Então, todo ano, nós temos um objetivo geral do grupo. A Bia, quando começou o ano, tinha o objetivo de ser campeã mundial e de ser campeã panamericana. Esse era o objetivo pessoal da Bia. E o objetivo do grupo era a maior campanha da história nos Jogos Pan Americanos e o maior número de classificações. Então, nós atingimos todas as metas. Cumprindo essas metas, nós damos a bonificação por ter conseguido. Não conseguindo, a gente faz uma mudança.
Vendo hoje a Bia, qual é a análise e a expectativa que você tem para a Olimpíada de Paris?
A Bia tem a meta de ser campeã olímpica. Esse é o prognóstico criado para ela e por ela mesma. A Bia é bicampeã mundial e ainda tem uma prata mundial. Então, ela é três vezes medalhista mundial. Ela é bicampeã dos Jogos Pan Americanos. Ela é multicampeã do Circuito Mundial. Ela é campeã de todas as etapas do Circuito Europeu. Ela foi prata em Tóquio e é atual campeã mundial profissional. Esse currículo da Bia credencia ela para ter um prognóstico de buscar uma medalha de ouro olímpica. O objetivo da Bia, hoje, é ser campeã olímpica. Ela pode cumprir o objetivo ou pode não cumprir o objetivo. Mas, o objetivo da Bia, hoje, nos Jogos de Paris, é ser campeã olímpica.
E quando vocês estão no ringue, como é a dinâmica? Tem muita bronca?
Vai completar 13 anos que eu faço parte da comissão técnica da equipe olímpica. E nesses últimos oito anos como head coach [treinador principal] da equipe principal, eu tenho muitas lutas com diversos atletas, inclusive com a Bia. A Bia já passou das 150 lutas comigo. Hoje, Bia está num nível de maturidade como atleta que a gente tem um diálogo super franco sobre estratégia, sobre parte emocional, sobre controle de peso. Diminuímos muito aquela relação de grito, de motivação, de briga, sabe? Que precisava no início de carreira. Hoje, Bia é uma atleta muito mais consciente, mais madura. Então, tem muitas vezes que a gente consegue dialogar sobre como ela está vendo a luta, como está a parte estratégica.
Se você pudesse definir a Bia em uma palavra, qual seria?
Fenômeno. Antes de ser campeã brasileira, antes de ser campeã mundial, ela continua sendo a mesma pessoa, tem a mesma essência, que é uma pessoa humilde, bondosa e, principalmente, a Bia tem um carisma com criança que é algo fora da realidade. Ela tem uma questão com criança, que onde tem criança que chega perto, se vira um formigueiro em cima da Bia. É uma coisa impressionante essa energia. Ela tem uma energia de menina dentro de uma mulher vitoriosa. Uma alma de pureza.
O senhor acha que essa influência da Bia com criança pode influenciar nas gerações futuras do esporte?
Se a Bia fosse de uma modalidade que tivesse mais visibilidade, ficaria muito mais nítido o quanto ela poderia atrair esse público infantil. O boxe olímpico realmente não tem tanta [popularidade] e não entra tanto na mídia porque também é um esporte difícil de se vender na televisão. Mas, a Bia poderia sim trazer esse público infantil muito mais para a sua modalidade do que tem atualmente, com esse carisma que ela tem com as crianças.