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Thais Borges
Publicado em 21 de agosto de 2022 às 11:00
“Você não é gente como nós. Brasileiro de merd…. Aqui não é seu lugar”. É difícil encontrar um brasileiro vivendo em Portugal que nunca tenha ouvido ao menos alguma dessas frases. No final, todas acabam sendo variações daquele que talvez seja o insulto que parte dos portugueses mais frequentemente direcionam aos brasileiros: “volta para tua terra”.
Esse tipo de recepção não é necessariamente novidade, mas os indícios mais recentes são de que a xenofobia tem feito uma escalada dramática no país - e, assim, os brasileiros, que representam o maior número de imigrantes por lá, acabam indo parar no centro do problema.
No último dia 6, em um dos episódios recentes mais graves, o baiano Douglas Rosa, 36, que mora no país há três anos, foi espancado em uma boate na cidade do Faro. “Eu gosto muito de Portugal, amo muito, mas não sei agora se é um lugar tão seguro”, diz a esposa de Douglas, a auxiliar de cozinha Gislaine Rosa, 33.
Para Douglas, porém, o seu caso trata-se de um caso isolado.“Minha vida no país não muda muito. Infelizmente, a noite em Portugal se torna um pouco violenta, mas no dia a dia, onde eu vivo com minha família, não chega nem perto daquilo que aconteceu”, conta, em vídeo enviado ao CORREIO na última sexta-feira (19). Ele diz esperar que as providências sejam tomadas. “Fora esse acontecimento, que foi devido a uma atitude covarde e isolada de seguranças que não justificam o nome que carregam, é trabalhar para buscar e alcançar o que viemos buscar aqui”, acrescenta.
No último relatório da Comissão para a Igualdade e contra a Discriminação Racial, divulgado este mês e referente a 2021, a entidade, que é ligada ao governo português, traçou um perfil das vítimas de 408 denúncias de discriminação racial recebidas ao ano passado. A maioria era de “pessoas de nacionalidade brasileira”, que respondiam por 109 queixas - 26,7% do total.
Em 2017, a nacionalidade brasileira era apontada como motivo de 18 queixas - 10,1% do total, ocupando a terceira posição. Ao todo, em cinco anos, as denúncias de xenofobia contra brasileiros aumentaram 505%.
Incentivo Ao mesmo tempo, o número de brasileiros em Portugal bateu recorde este ano. Só nos primeiros seis meses de 2022, o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) contabilizou 250 mil brasileiros vivendo legalmente no país. Esse número não inclui brasileiros com cidadania portuguesa ou de outro país da União Europeia, nem brasileiros sem documentação.
Em julho, o parlamento português aprovou novos vistos que devem facilitar ainda mais a permanência de brasileiros no país - inclusive uma modalidade que permite permanecer em Portugal por até seis meses procurando trabalho.
Somando também os turistas, a estimativa é de que a população brasileira em Portugal pode chegar até a 500 mil pessoas, como explica a professora Mariana Selister Gomes, doutora em Sociologia pelo Instituto Universitário de Lisboa e professora da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). “Sempre a população brasileira foi a mais preponderante em Portugal, principalmente por causa da língua, dessa proximidade cultural histórica. Mas especificamente esse aumento está relacionado à crise econômica, política e social que a gente vem enfrentando desde 2016. É uma crise em vários níveis, ao mesmo tempo que Portugal se reergue de uma crise”, explica. Dificuldades Muitos imigrantes têm dificuldade justamente com a língua, o que pode frustrar as expectativas. A população, de forma geral, não considera que os brasileiros falam a mesma língua que os portugueses. Nas universidades, são frequentes os relatos de estudantes que não podem escrever com o português brasileiro. Segundo Mariana, é algo que vai além de diferenças de sotaque.
“Eles dizem que a gente fala ‘brasileiro’, que não é a mesma língua, que não é a língua de Camões. Inclusive, dizem que a gente estragou a língua, que não entendem o que a gente fala. Muitas vezes, fazem questão de não entender”, pontua. Após a pandemia da covid-19, porém, a imprensa portuguesa noticiou que muitos pais estavam preocupados com a influência de youtubers brasileiros na fala de seus filhos.
Há, ainda, outro tipo de problema. Não é incomum que proprietários se recusem a alugar imóveis para brasileiros. Outros cobram muitos meses de antecedência para ‘garantir’ o pagamento, como explica a pesquisadora Cynthia Luderer, do Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade da Universidade do Minho, que fica em Braga. “Se liga para ter informações e expressa o sotaque do Brasil, é grande a chance de receber muito mais ‘não’. Trabalho, a depender da área, também é complicado. Mas na restauração já ouvi muitos elogios em relação aos brasileiros, assim como na construção. Mas em algumas áreas, devido à questão da língua, as barreiras são bem complicadas”, admite ela, que tem estudos sobre consumo alimentar, hospitalidade e lufosonia.Para Cynthia, há um certo de ‘cheiro’ de nacionalismo no ar, que poderia contribuir também para o aumento da xenofobia. No período de maiores restrições da covid-19, por exemplo, havia campanhas em favor de uma ‘portugalidade’ e os objetos ganharam selos com as cores da bandeira portuguesa mais recentemente. Até em mercados, há um estímulo a um ‘consumo local’.
“Ainda que seja uma bandeira sustentável, podemos vincular esses discursos a um apelo que já se percebe no campo político com o avanço do partido de extrema direita, que se sobressaiu na última eleição”, diz.
História Para as mulheres, a xenofobia muitas vezes se apresenta como assédio sexual. Na sociologia, isso se explica pela chamada colonialidade de gênero, de acordo com a professora Mariana Gomes, da UFSM. No período colonial, as mulheres eram vistas como corpos disponíveis. As negras e indígenas seriam disponíveis para o trabalho e para atividade sexual. As brancas eram corpos disponíveis sexualmente, mas também reprodutores.
Já os homens negros eram os corpos disponíveis para o trabalho. “Então, nós temos aí uma intersecção dessas dimensões raciais e de gênero. Há uma estrutura de dominação simbólica, cultural e psicológica de exploração física sobre as mulheres e principalmente, as mulheres negras e indígenas”, afirma.
Essa opressão se reproduz ao longo dos anos de modo que, hoje, em Portugal, todas as mulheres brasileiras são vistas como corpos coloniais disponíveis. Segundo ela, que desenvolve o conceito em sua tese de doutorado, é por isso que brasileiras são comumente vítimas de assédio em Portugal, independente de suas características, idade ou realidade. “Isso se reflete até hoje nessa colonialidade, que é essa visão que o português tem de superioridade sobre os brasileiros. Quando isso é atravessado por gênero, como a gente já tem uma sociedade patriarcal, onde os homens em geral veem as mulheres como sua propriedade, a gente tem isso duplamente afetando as mulheres brasileiras”, acrescenta. De acordo com a pesquisadora Juliana Iorio, doutora em Geografia Humana - Migrações, a imigração brasileira para Portugal teve ondas. Entre os anos 1980 e 1990, por exemplo, o país teve a chegada de brasileiros bem qualificados, incluindo profissionais como publicitários e dentistas. Já alguns anos depois, foi a vez de uma nova leva de imigrantes brasileiros, no final dos anos 1990 e início dos anos 2000, que foram para trabalhar em setores como a construção civil e o comércio.
Com a recessão que Portugal enfrentou a partir de 2008, as taxas de desemprego subiram, enquanto o Brasil ainda vivia expansão econômica. Assim, muitos brasileiros que lá moravam retornaram, segundo a investigadora científica do Instituto de Ciências Sociais e do Instituto de Geografia e Ordenamento do Território, ambos na Universidade de Lisboa.
“Mas foi também a partir de 2008 que a comunidade de estudantes brasileiros no ensino superior passou a ser a maior comunidade de estudantes estrangeiros em Portugal. Por um lado, houve incentivos do governo brasileiro para se estudar no exterior e, por outro lado, houve políticas de internacionalização das universidades portuguesas, já que estas precisavam dos estudantes internacionais para se manterem”, explica. .
Penalidade Pela lei portuguesa, é crime cometer atos de discriminação de origem racial, religiosa ou sexual. De acordo com o advogado Dartagan Luedy, especialista em advocacia de imigração, dentro desse espectro, é possível reconhecer o crime de xenofobia, com penas que variam de seis meses a oito anos. Já o assédio sexual seria considerado crime de importunação sexual. “A lei não prevê especificamente uma pena para o assédio sexual derivado da xenofobia, mas não há impedimento de que estes dois tipos penais sejam reconhecidos em um ato contínuo, podendo o acusado ser tornar-se arguido pela justiça para responder pelas duas práticas”, afirma ele, que é natural de Vitória da Conquista e vive em Portugal desde 2018. A pena pode ser de até um ano de prisão. O advogado explica que o primeiro passo, ao ser vítima de uma situação de xenofobia, é denunciar às autoridades policiais e solicitar o registro da ocorrência. A denúncia deve ser compartilhada com a Cicdr, que vai garantir o acompanhamento da aplicação da lei. Para ele, a investigação das denúncias desses crimes ocorre em várias etapas e depende também da mobilização das vítimas. Se isso não acontecer, é possível que sejam arquivadas.
“O desfecho da investigação, para além de depender do acompanhamento do processo pela vítima, é significativamente alterado de acordo com a percepção pública sobre o caso. Este pormenor se mostra evidente quando personalidades artísticas estrangeiras sofrem com xenofobia em Portugal. Nestes casos, a relevância da vítima junto aos meios de comunicação social, oportuniza que a prática criminosa esteja presente nos noticiários, e por sua vez, receba uma atenção maior das autoridades responsáveis”, completa.
Confira os depoimentos de cinco brasileiros que vivem em Portugal
‘Esperava ouvir para voltar para o Brasil, não que tentassem matar meu esposo’
"Todo estrangeiro aqui sofre um pouco. São casos de senhorio que não querem arrendar apartamento porque você é brasilero. As portuguesas de mais idade têm ciúmes de brasileiras porque, na antiguidade, diziam que brasileiras vinham para cá tomar marido. Então, eu já esperava sentir isso. Mas eu não esperava esse nível de agressão, de tentativa de homicídio, que foi o que ocorreu. Esperava ouvir 'volta para o teu Brasil', mas não de tentar matar meu esposo. Para mim, o que faz piorar é a falta de punição. Ele foi agredido por seguranças de uma discoteca. Apesar de eu chamar a polícia na hora, de ter um agressor, de ter testemunhas ao redor que viram chutando o rosto do meu esposo, continuaram lá. Gislaine e Douglas moram em Portugal há três anos; ele é natural de Ilhéus, ela de Santo Antônio de Jesus (Foto: Acervo pessoal) Os vistos facilitaram para brasileiros, mas muitos vieram e já voltaram, porque, quando chegam aqui, levam um susto. A gente trabalha nove, dez horas por dia. A gente aqui tem vida melhor, mas trabalha mais.
No Brasil, a gente tinha uma vida já. Ele tinha oito anos nas Lojas Americanas, trabalhava como supervisor, meus filhos estudavam, mas a área que a gente morava era um pouco perigosa, em Ilhéus. Morava em um lugar complicado, de o pessoal andar com arma na mão e meus filhos terem que ver aquilo. A gente abriu de tudo pela segurança, para ter uma educação melhor. Não me arrependo de ter vindo, mas tem que ter mais justiça para esse tipo de crime que, infelizmente, existe muito.
Fui ver os comentários do caso dele e vi muitas situações iguais. Outras pessoas falando que já passaram por situações assim.
Olha que eu gosto muito de Portugal, amo muito, mas não sei agora se é um lugar tão seguro. Portugal, nas pesquisas, sempre aparece como terceiro ou quarto país mais seguro no mundo, mas você assiste os jornais e vê que tem muito caso de morte, de violência doméstica.
Agora eu não sei se a gente migra para outro país ou se a gente tenta pelo menos esquecer essa fase e ver como os meninos vão se comportar, porque acho que para eles é pior que para a gente. Meu filho mais novo teve um surto emocional quando meu esposo chegou em casa com o rosto muito inchado. Ele desmaiou, teve vômito. Temos que ver como eles vão reagir daqui em diante”.
Gislaine Rosa, 33 anos, auxiliar de cozinha e esposa de Douglas Rosa. Vive em Portugal há três anos com a família
‘Muitos clientes não querem ser atendidos por brasileiros porque acham que vamos fazer algum tipo de trambique’
“Cheguei a Portugal no final de 2016 com o objetivo de estudar. Entrei no país por Lisboa, para fazer um curso de Proteção Civil na cidade de Tomar. Fiz o curso por um ano, quando surgiu uma oportunidade de trabalho em Lisboa. Em meados de 2017, me mudei para a capital, onde comecei a trabalhar na empresa que estou até hoje.
Já cheguei aqui sabendo que o povo português é bastante frio - pelo menos as pessoas do Sul do país, no caso, de Lisboa. Com o passar do tempo, a gente se acostuma ainda mais com essa frieza, amargura e drama dos portugueses de Lisboa e a alegria do povo do Norte, no caso, Porto, Braga, Guimarães, etc.. Talvez isso seja explicado por conta do alto número de idosos da parte Sul, e da quantidade de jovens da parte Norte.
Esperava situações de xenofobia, mas não imaginava que, nesses quase seis anos, pudesse acompanhar de perto um crescimento descomunal da xenofobia, principalmente contra brasileiros, povo que é considerado ‘irmão’.
Trabalho numa empresa de telecomunicações, a NOS, que é como a Oi, a TiM ou a Vivo no Brasil. Trabalho com relacionamento ao cliente e é uma atividade um tanto complicada, porque a gente tem que lidar com situações de avarias, satisfações, é um relacionamento ao cliente mesmo. Eu já peguei muitos clientes que não gostam, de fato, de serem atendidos por brasileiros porque acham que nós, pela cultura, vamos fazer algum tipo de trambique ou enganá-los de alguma forma. E não é nada disso.
Fora isso, as humilhações, xingamentos, ‘volte para o seu país’, ‘brasileiro de merd…’, ‘aqui não é o seu lugar’. Já aconteceu de eu pedir para a minha coordenação a gravação da chamada para poder agir, para levar o cliente ao tribunal por declarações xenófobas, mas não tem uma lei específica para isso. Dá liberdade para que as pessoas façam dessa forma, veja o que aconteceu com os filhos de Bruno Gagliasso e Giovanna Ewbank. Já aconteceu comigo, com outras pessoas que chegam aqui para a gente. Comigo foi basicamente uma situação de xingamentos e você fica impotente. Não é só contra brasileiros, indianos, pessoas da África, outras nacionalidades também. Bruno já passou por situações de xenofobia no trabalho (Foto: Acervo pessoal) Todas as situações marcam, pois acabam por mexer com sentimentos. As que mais doem são quando dizem para ‘voltarmos para o nosso país de m...., onde só existem favelas e favelados’. Dizem que só estamos aqui para passar tempo e acabar com o país deles.São vários fatores para a xenofobia. Mas creio que, no caso dos brasileiros, isso se explica pelo alto número de pessoas que migraram para cá nos anos 70 e 80. Dizem, no caso das mulheres, que eram prostitutas, que vieram para fazer vida e ‘roubar’ o marido das portuguesas; no caso dos homens, falam da questão dos golpes aplicados na praça. De acordo com alguns amigos portugueses, muitos brasileiros que vieram pra cá nessa época e que ainda vivem por aqui enriqueceram de forma ilícita, através desses golpes, principalmente em idosos.
O número de brasileiros aumentou bastante. A crise econômica do Brasil e a pandemia ajudaram muito no aumento da imigração. Mas, se algum dia decidir me mudar daqui, não vai ser por conta de xenofobia, até porque na Europa inteira existem casos. Se um dia vier deixar Portugal será para adquirir novas experiências e conhecer outras culturas”.
Bruno Amaral, 37 anos, jornalista e supervisor empresarial da operadora NOS
‘Fui convidada, no ponto do ônibus da universidade, para uma casa de prostituição após me ouvirem falar’
“Estava morando na Argentina há mais de um ano e decidi vir para cá fazer um mestrado, em 2017. Os primeiros anos foram bastante difíceis. Há um abismo cultural muito forte que tendemos a relativizar por falarmos a mesma língua, mas os portugueses são absolutamente diferentes de nós. Tive muitas questões com portugueses que conduziam seu tratamento a partir de um estereótipo de mulher brasileira. Manuella se mudou para fazer um mestrado (Foto: Acervo pessoal) Achei que por estar em um ambiente acadêmico, estaria blindada, mas isto é uma grande ilusão pois a academia em Portugal é excessivamente conservadora. Fui convidada mais de uma vez no ponto do ônibus da universidade para uma casa de prostituição e isso ocorreu após me ouvirem falar e constatarem que eu era brasileira. Também fui abordada por um senhor na padaria na rua da minha casa que me disse que sabia que eu era brasileira e se convidando pra subir no meu apartamento para um programa.
A xenofobia existe para todo cidadão estrangeiro, entretanto é muito potencializada em Portugal para cidadãos naturais das ex-colônias portuguesas. Portugal até 1974 ainda estava na condição de colonizador e a cultura colonial ainda é muito arraigada na população, que tende a nos olhar como povos inferiores que existem para servi-los.A ideia para os livros veio porque estávamos extremamente incomodados com o crescimento da extrema direita em Portugal, e por consequência, desta lógica fascista crescendo nas ruas também, muito parecido com o que ocorreu no Brasil. Manuella organizou duas antologias chamadas 'Volta para tua terra' (Imagem: Reprodução) Decidimos que seria importante um livro que trata sobre esta subjetividade do cidadão estrangeiro que vive aqui, abordar temas que são espinhosos, como esta questão do racismo e principalmente desta memória colonial, para além da importância de juntar poetas e escritores num circuito de produção imigrante independente.
A frase ‘volta para tua terra’ é um grande contrassenso, principalmente em Portugal que é um dos países mais envelhecidos da Europa e necessita dos imigrantes, que são quem sustentam a economia do País. Sem os imigrantes, Portugal não seria nada, porque não há mão de obra. Porém, ouve-se isto na rua o tempo inteiro, como se tivéssemos roubando os empregos deles, empregos que eles, no geral, não querem. Manda-se voltar para tua terra todos, inclusives os portugueses racializados, nascidos e criados aqui, como é o caso do ator Bruno Candé, que morreu assassinado aos gritos de Volta para tua terra, mas que era português, mas era negro e por isto estaria no país errado. Este país desabaria sem a imigração de uma população que eles seguem estimulando que venha, enquanto política de estado, e explorando de forma precarizada, ao mesmo tempo que mandam voltar.
A xenofobia cresceu muitíssimo, mas atribuo este fenômeno ao crescimento da extrema direita na política. Desde o Trump, vemos uma crescente disto em todo mundo. Aqui em Portugal, quando cheguei em 2017, havia apenas um parlamentar da extrema direita, o ‘Bolsonaro Português’. Hoje, há 14 deles eleitos no parlamento. Esta crescente se reflete nas ruas. Quanto mais se legitima o discurso institucionalmente, mais o cidadão nas ruas se sente à vontade para agir e atuar. Nos dois primeiros anos, eu queria ir embora todos os dias, hoje em dia eu só quero mesmo ficar aqui dizendo muitas coisas incômodas, chateando e ocupando os espaços que não é suposto que imigrantes ocupem. Não vou embora, não, só se me expulsarem. Eles que lutem”. Manuella Bezerra de Melo, 39 anos, escritora, investigadora e curadora independente. Organizou dois volumes da antologia Volta Para Tua Terra, publicados em 2021 e 2022, com escritos de autores estrangeiros residentes em Portugal
‘Uma vizinha me parou na rua e perguntou como eu pagava as minhas contas’
“Decidi, em 2018, fazer as minhas malas e seguir o sonho de trabalhar com cinema. Já tinha anos trabalhando no ramo da moda e decidi começar esse novo caminho. Então, ao chegar aqui, já cheguei legal, com visto, e comecei a estudar Cinema Documental em Lisboa.
Quando eu cheguei aqui, sentia alguns olhares, principalmente de homens. Tinha também a falta de informação para com os imigrantes. Eu tinha medo de ir (nos órgãos de) na segurança social, de ir nas finanças, porque eu sabia que eles não iam ter paciência comigo. Não olhavam no meu olho. Eu senti que eu era um fardo ali, tirando meu NIF, meu número da segurança social, por exemplo. Amanda vive com o filho Caetano em Portugal; ela dirigiu documentário sobre mulheres imigrantes (Foto: Acervo pessoal) As pessoas desconfiam muito quando uma brasileira, mãe de um menino de dois anos, como é o meu caso, mora sozinha. Uma vizinha uma vez me parou na rua e perguntou como eu pagava as minhas contas. Esse tipo de pergunta não se faz, do nada. Eu sabia que aquela pergunta tinha um significado por trás.A situação que mais me deixou assustada foi quando eu estava em um Uber. Já eram 23h, eu tinha estado com alguns amigos e, na hora de ir pra casa, como eu estava com meus equipamentos e notebook, decidi ir de Uber. A viagem ia durar 40 minutos, porque moro fora de Lisboa. O Uber no início parecia ok. De repente, ele mudou a rota e estava me levando pra algum lugar que eu não sabia onde. Na hora, entendi o que estava acontecendo, agarrei as minhas coisas e, com o carro em alta velocidade, eu saltei. Cai no chão duro do asfalto, com a chuva no meu rosto, em choque. Um casal parou o carro e disse que era pra eu entrar, por que eles viram tudo. Me deixaram em casa. Eu poderia estar morta hoje.
O que eu acho da xenofobia? Um retardo social. Eu decidi fazer o documentário Voz porque teve uma época da minha vida que eu conheci mulheres maravilhosas. Mulheres que abandonaram tudo no Brasil e hoje estão aqui em Portugal trabalhando para conseguir dar uma vida digna para quem ficou no Brasil. Eu estou falando de mães, de mulheres que têm sonhos de estudar, de crescer, de ter segurança. A ideia sempre foi trabalhar com cinema que incomoda, cinema ‘pé no chão’. Se o meu filme causar algum tipo de desconforto, aí eu estou fazendo certo.
E o que causa mais desconforto, senão um documentário de 15 minutos, com cinco mulheres soltando a voz, desenrolando tudo o que estava preso durante anos, meses? Os preconceitos que sofreram até para conseguir alugar um quarto. E ele (o filme) incomodou, inclusive, foi censurado em alguns locais. Atualmente estou produzindo um novo, que é sobre Mães Solteiras. Espero que incomode também, e não é só incomodar, é mostrar algo que precisa ser mudado.
Não penso em sair de Portugal, por enquanto. Eu tenho um filho de dois anos, Caetano. Ele estuda aqui, tem uma ótima educação. A família dele está aqui, então vou ficar”.
Amanda Boussard, 30 anos, assistente de direção e produção de cinema. Escreveu e produziu o documentário Voz, sobre imigrantes brasileiras em Portugal
‘Minha vizinha disse na minha cara que ia me expulsar de Portugal’
“Faço dez anos em Portugal agora em setembro. Vim na época que minha irmã estava fazendo mestrado aqui. Já estava fazendo arquitetura no Brasil e experimentei me candidatar por transferência a algumas universidades. Passei em algumas e vim para Lisboa, porque era onde minha irmã estava. Nesse momento, já concluí o curso, o estado de admissão na ordem dos arquitetos e já trabalho como arquiteta.
Já tinha ouvido falar na questão da discriminação com brasileiros, mas confesso que na época eu estava muito verde. Quando eu estava na época ainda da faculdade, eu nunca me senti sendo tratada mal por ser brasileira, até porque o pessoal mais jovem se comporta de outra maneira em relação a esse assunto, mas obviamente de vez em quando eu escutava alguns comentários. Quando tínhamos alunos estrangeiros de países como Inglaterra, Itália ou onde quer que fosse, que acabava por falarmos em inglês, vinham com comentários tipo ‘ah você é brasileira e fala também inglês? ah, você nem parece brasileira'. Gabriela mora há quase dez anos em Lisboa (Foto: Acervo pessoal) Teve uma situação que aconteceu no meu apartamento que foi delicada. Me mudei para esse apartamento, que foi comprado pelos meus pais. Mal eu me mudei, até antes de eu me mudar, tenho uma vizinha que me persegue a nível de xenofobia muito forte. No início, ela reclamava muito de barulho, só que eu não fazia barulho.
Ela dizia que era eu e havia muita discussão. Ela me chamava de nomes, investigou minha vida, descobriu o endereço dos meus pais no Brasil, mandou cartas para eles, foi uma perseguição autêntica. A coisa estava tão insustentável que eu fiz queixa na polícia e tive que arranjar uma advogada para colocá-la no tribunal. Ela foi condenada pelo crime de injúria, apesar de ter sido denunciada por mais de dois crimes que foram arquivados, que foram de devassa da vida privada e discriminação racial. Apesar de terem sido arquivados, ficou na nota do processo que o crime de injúria tinha realmente cunho racista e xenófobo porque ela me chamava de nomes.
Ela dizia coisas do tipo 'volta para sua terra, você não é gente como nós'. Teve um momento em que ela perguntava muito se eu era portuguesa, ou seja, se eu tinha a cidadania portuguesa. Cheguei a ouvi-la conversando com a polícia dizendo que já tinha tentado ir ao SEF, que é o serviço de imigração, para me expulsar de Portugal. Inclusive, ela já tinha dito que ia me expulsar de Portugal na minha cara. Teve uma série de coisas direcionadas ao fato de eu ser brasileira. Ela diminuiu, mas nunca parou.
Quando eu comecei a estagiar, diria que meu terceiro dia de trabalho, estava todo mundo na copa e teve uma mulher que começou a partilhar um vídeo como se fosse engraçado. Era do programa do Ratinho. Eram várias mulheres fazendo perguntas e respostas. Elas respondiam tudo errado e eram perguntas super bobas. Eu não achei engraçado, mas estava todo mundo rindo disso e uma das pessoas disparou a falar, começou dizer ‘as brasileiras são assim. São muito bonitas, são muito boas, são simpáticas, mas são muito burras’. Depois, outra pessoa começou a dizer ‘cuidado, não pode mais fazer piada com brasileiro, a menina nova é brasileira’.Acho que pode ter a ver com o perfil que somos associados, como também a imagem que o Brasil vende para o exterior. Isso é conflituoso, porque obviamente eu quero que o Carnaval tenha visibilidade, que o futebol, a festa, a alegria tenham, mas eu gostaria que outras coisas também tivessem, como o investimento em tecnologia, em pequenas em novas empresas, em iniciativas sociais. Mas essas coisas não vêm à tona e acabamos ficando estereotipados”.
Gabriela Carvalho, 30, arquiteta morando em Lisboa