Receba por email.
Cadastre-se e receba grátis as principais notícias do Correio.
Paulo Sales
Publicado em 21 de novembro de 2019 às 14:27
- Atualizado há 2 anos
Imagino a História como uma carreta desgovernada, sem freio e sem motorista, descendo uma serra. Na sua trajetória errática, ela destrói placas de sinalização, flerta com o abismo e arrasta consigo quem estiver no lugar errado e na hora errada. Não importa se descambe para a direita ou para a esquerda da pista, o resultado é invariavelmente próximo do caos. A História não tem compaixão. Diante dela, o indivíduo é apenas a engrenagem mais vulnerável, quase sempre levado a reboque por uma força sobre a qual não exerce qualquer influência. Que o digam os indivíduos que viveram o século 20 e sobreviveram – ou não – a ele. A era dos extremos, como bem definiu Eric Hobsbawm, foi pródiga em fazer pó de milhões de seres humanos, relegados à vala dos acontecimentos.
É sobre essa era dos grandes “ismos”, onde a humanidade avançou e matou como nunca, que fala Vida e Destino, de Vassili Grossman. Mais precisamente, sobre um momento crucial para o desenrolar da civilização: a Segunda Guerra Mundial. Nela estão condensados praticamente todos os conflitos e tragédias essenciais para se entender o século passado. Atravessei semanas me embrenhando nas mais de 900 páginas do romance. E voltei à tona com a sensação de ter conhecido a zona abissal, o centro da Terra, o cerne do que somos como civilização. Um romance polifônico (centenas de personagens em diferentes lugares e situações), de narrativa francamente realista e impiedoso com os totalitarismos.
É provavelmente o maior painel literário já escrito sobre o conflito – no caso, por alguém que esteve no front como correspondente, vivenciando o horror e o heroísmo da Batalha de Stalingrado, que é o lastro da narrativa. Russo-ucraniano de origem judaica, Grossman constrói um libelo contra a destruição do ser humano por essa carreta que chamamos de História. Nele, paira acima de tudo o valor de cada indivíduo: os que morreram nos campos de concentração ou de batalha, os injustiçados pelos expurgos stalinistas, os que perderam suas casas e parentes, os que passaram fome, os que guerrearam em condições desumanas, os que sobreviveram e prosseguiram com imensos espaços ocos na alma.
Não deixa de ser sintomático que até mesmo o autor tenha sido vítima das artimanhas da História: Vida e Destino foi confiscado pela KGB, considerado anti-soviético, e Grossman morreu em 1964 sem vê-lo publicado, o que é particularmente doloroso. Foi o sentido da sua vida e do seu trabalho. Apenas nos anos 80 essa obra-prima foi publicada na Europa e nos Estados Unidos. Na Rússia, só após a chegada de Gorbatchov. Aqui no Brasil chegou em 2014, numa edição de altíssimo nível da Alfaguara, traduzido por Irineu Franco Perpetuo. É um dos maiores romances já escritos, talvez o melhor que li na vida. Caudaloso como o Volga, repleto de momentos de beleza e barbárie que revelam toda nossa grandeza e toda nossa miséria, ele é uma ode e ao mesmo tempo uma elegia ao ser humano. Único, frágil e insignificante em meio à avalanche.
Trecho:“O mundo vai se afogar em sangue no dia em que o fascismo estiver inteiramente seguro de seu triunfo definitivo. Se o fascismo ficar sem inimigos armados na Terra, os carrascos, assassinos de crianças, mulheres e velhos, não vão conhecer limites. Pois o maior inimigo do fascismo é o ser humano.”