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Fernanda Santana
Publicado em 5 de fevereiro de 2022 às 16:00
- Atualizado há 2 anos
Um pedreiro trabalha diariamente para reerguer o Bar Jangadeiro. Tudo lá são retalhos, como os pensamentos do dono, Humberto de Jesus, 69 anos, que passa o dia atrás do balcão entre o “foi” e o “será”. Há coisas que continuarão sem remendo e nada que ele ou o pedreiro façam mudará isso: memórias não podem ser recuperadas.
O som da reconstrução, mais de um mês depois das enchentes que devastaram o sul da Bahia, é ouvido pela cidade de Dário Meira. Outros consertos não seriam possíveis por mais habilidosos que fossem os profissionais contratados. “Eu tinha fotos antigas do município, sinos de igrejas, o prefeito queria até que eu doasse algumas coisas para fazer um museu. Eram coisas que só existiam aqui. Minha cabeça ainda está a mil por hora”, conta Humberto, o maior colecionador local.As enchentes do fim do ano passado levaram com elas a história memorial de cidades. Dário Meira, onde há 10,3 mil habitantes, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, é uma das mais simbólicas: 90% do município foi atingido, mais de 50 casas desabaram e o arquivo do cartório se perdeu. A água devastou registros oficiais de famílias, como se elas nunca tivessem existido.
Procure fotografias antigas, reconheça seu rosto em familiares, revire cartas esquecidas. Visite a materialidade do passado e imagine perdê-la. Assim talvez seja possível entender o que, coletivamente, acontece em Dário Meira.
As perdas do passado O Bar Jangadeiro leva o nome do condutor de uma jangada. À beira do Rio Gongogi, que corta a cidade, faz sentido que ele tenha esse nome. “Quando o rio enchia, a gente via daqui, mas nunca aconteceu nada parecido [como as últimas enchentes]”, conta Humberto.
O estabelecimento, criado há 16 anos, funcionava também uma espécie de minimuseu, com 40 objetos históricos de Dário Meira - como fotos antigas do lugar e dos moradores. Quando a água abaixou, restaram três deles. Humberto e o Jangadeiro (Foto: Acervo pessoal) Havia rostos impressos na parede que só existiam lá. Pelas estantes, estavam objetos que só no Jangadeiro se via. Até que o rio encheu e o bar com nome de barco foi junto. “Vou tocando as coisas devagar”, diz Humberto, que reabriu o bar neste mês. Ele tem pedido doações que possam contar novas histórias, mas conseguiu apenas uma câmera - quase ninguém tem sobras para doar.
No anexo da sua padaria, Uberlan Barbosa, 49, mais conhecido como Berg, guarda, mesmo estragados pela água, álbuns de fotografias. A suíte onde mora, quando não está na roça com a esposa e o filho, ficou submersa pela metade e lá se foram cartas, documentos e fotos antigas, como as dos pais.
O pai, um homem forte e moreno, e a mãe, uma mulher baixinha, estão com as fisionomias desfiguradas. O casal é falecido e cresceu numa época em que não havia fotos digitalizadas.
Aqueles eram registros históricos da família: a juventude de José e Hilda estava impressa nas imagens hoje manchadas. Berg define seus pais em detalhes na mocidade, mas não é possível ver, apenas imaginar a partir das lembranças dele.“Essas fotos valiam muito. Comigo, não sobrou nada. Como eu vou voltar a ter uma foto dessa?”. A desorientação diante da perda de registros físicos da memória faz sentido: ela é um dos elementos que constituem identidades. Quem são nossos pais, avós, irmãos, quem deixamos de conhecer, o que temos ou não, tudo isso importa para a subjetividade ser construída.“Você não se torna um sujeito totalmente fragmentado por conta disso, por causa dessas conexões”, explica Rafael Patino Orozco, psicólogo, pós-doutor em Memória Social pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro e professor da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB).Uma cidade que foi varrida pela água vê uma das partes significativas da memória ser apagada - a materialidade, um fio do passado com o presente que pode ser visto e tocado. “Os objetos são, de alguma forma, carregados de afetos. Toda memória é construída com o afeto numa posição central”, justifica Orozco.
O objeto, seja documentos ou fotos, representa acontecimentos que significam a vida de um sujeito. “E cada sujeito, no caso de uma enchente como essas, vai ter perdido objetos que fazem parte da sua história, que representam o carinho pela família. É como se você perdesse a materialidade das suas vivências”.A reconstrução dos registros As perdas impõem uma reconstituição de si.Todos os dias, antes do sol firmar, há uma fila em frente ao Serviço de Atendimento ao Cidadão (SAC) móvel montado para oficializar a existência de pessoas que perderam seus documentos para a água. “Por dia, atendemos pessoas que perderam RG, CPF ou que perderam tudo”, explica Jorge Ferreira, gerente do serviço. Mais de três mil pessoas foram atendidas no sul da Bahia.
Sem documentos, o acesso a serviços públicos básicos, como programas sociais, é prejudicado. Não há levantamentos que mostrem quantas pessoas foram afetadas pela falta de documentação. A Defensoria Pública do Estado pretende levar o serviço aos municípios atendidos pelas enchentes para verificar se há depoimentos como esses.
Em Dário Meira, até meados de janeiro, 22 pessoas solicitaram novas certidões de nascimento no cartório da cidade, cujo acervo foi destruído. “Estamos no momento em fase de recuperação”, diz Jardel Siqueira, oficial de registro. A perda é tamanha que ainda não dá para ser calculada exatamente.
A tentativa de restauração se estende por todos os lados. Diariamente, funcionários da Prefeitura reconstroem, num trabalho de pesquisa, telefonemas e visitas, o histórico de famílias atendidas pelo Centro de Referência de Assistência Social (Cras). Quase tudo foi perdido.
O Cras atende famílias em vulnerabilidade social, com dificuldades de sobrevivência, cuidados com os filhos e situações de violência, como a doméstica. As enchentes levaram consigo os registros delas. “Temos uma maratona aqui. A gente se desdobra para conseguir o cadastro e nessa perspectiva de finalizar”, conta Claudiane Santos, uma das funcionárias envolvidas no levantamento dessa memória perdida.Um pendrive guarda cadastros dos últimos quatro anos e há e-mails com informações, mas o principal foi perdido.
A construção de um novo presente Enquanto reconstroem registros oficiais, os funcionários repassam suas memórias perdidas. Há seis anos a mãe de Claudiane faleceu. Uma das fotos favoritas que ela tinha da mãe e do pai, abraçados, se perdeu. “Eu tinha um apego de olhar essas fotos”, conta.
Parte delas tinha sido levada pela enchente de abril em 2020, menor em proporção, mais violenta o suficiente para causar estragos. A voz de Claudiane, pelo telefone, confunde-se com a de colegas que perderam álbuns de casamento, de formaturas, documentos da família.
Pelas ruas, também num trabalho diário, professores de uma das quatro escolas que submergiram com a água visitam a casa de alunos para incentivar a matrícula.“Muitos alunos perderam os documentos. A gente está fazendo a matrícula mesmo sem esses documentos, esperando eles ficarem prontos, no dia 18 [de fevereiro]”, conta Dalila Arruda, 36, uma das professoras da campanha de matrícula.Em Dário Meira, das cinco escolas, quatro foram destruídas. A vida escolar dos alunos foi perdida. Numa sala da escola onde Dalila trabalha, estão armazenados materiais e documentos ainda com marcas de lama, desfigurados. Haverá uma reunião para definir o que será feito daqueles itens e como acontecerá a recuperação do histórico dos alunos. Registros escolares perdidos (Foto: Acervo Pessoal/Dalila Arruda) Eles precisam do histórico escolar para se transferirem de escola ou, no futuro, para se inscreverem em vagas de cursos ou empregos. “Se estava nos computadores, mas a gente perdeu os computadores”, lamenta Dalila.
A própria Dalila acumula perdas: foram-se os álbuns, o trabalho de conclusão de curso em Pedagogia, documentos, computador. As fotos da mãe sumiram com a água. Por essa perda, Dalila chora, nem quer se lembrar. Uma prima tem a ajudado a catalogar fotos da mãe que foram postadas em redes sociais - sobre as antigas, apenas analógicas, não haverá o que fazer.
Entre as descobertas, estão uma foto de Dalila com a mãe, abraçadas. Sozinha, a professora também faz buscas por registros esquecidos. Novas memórias surgem dessa pesquisa: fotos com as amigas, registros dos dois filhos ainda bebês, lembranças de festas. É tempo de reconstruir.